• Nenhum resultado encontrado

3 DOAÇÃO DE ÓRGÃOS 3.1 BREVE HISTÓRICO

4. DOAÇÃO DE ÓRGÃOS POST MORTEM

4.2 SISTEMA ATUAL: “A LISTA ÚNICA DE ESPERA” 1 Como funciona a “lista única de espera”?

4.3.4 A impotência diante da comercialização de órgãos

A lei 9.434/97 e o decreto 2.268/97, que a regulamenta, destinou-se a coibir, ou melhor, a proibir o comércio de órgãos.

Dentre os dispositivos criados para esta tarefa, acredita-se que estão incluídos os dispositivos que vedam a escolha pelo doador do receptor de seus órgãos.

119 No sentido contrário: “a lista única é uma das formas de aplicação do Princípio da Justiça, pois assegura a distribuição equitativa dos órgãos”. In: SÁ, Maria de Fátima Freire; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. (Coord.) “Bioética, biodireito e o novo código civil de 2002”. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 107.

Inicialmente, cumpre salientar que a mercantilização do corpo humano não é novidade. Há muito o homem vem atuando de forma a evidenciar o comércio do corpo, prática, muitas vezes, não questionada no que tange aos seus valores éticos.

Nesse sentido, não há como negar que o trabalho remunerado constitui-se em venda da força de trabalho, e que é totalmente admitida na sociedade. Outrossim, a prostituição também é exemplo de mercantilização tolerada na sociedade.

Assim, nota-se que a discussão sobre a comercialização do corpo humano é antiga; a recente, no entanto, é a discussão acerca do comércio de órgãos.

Nesse sentido, a maioria da doutrina objeta a comercialização de órgãos. É que a dita comercialização vai esbarrar em questões éticas e, por conseguinte, ofender a pessoa em sua dignidade.

Para o filósofo Immanuel Kant120:

[no reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr, em vez dela, qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço e, portanto, não existe equivalente, então ela tem dignidade”.

Além destes dispositivos da lei 9.434/97, a Carta Magna de 1988, em seu art. 199, § 4º, também veda expressamente o comércio de órgãos ao dispor que:

“A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização”. (GRIFO NOSSO).

O Código Civil de 2002, em seu artigo 14, seguindo a linha do legislador constitucional, permite a disposição do corpo somente a título gratuito.

120

KANT, Immanuel. Fundamentos da Metafísica dos Costumes. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. [S.l]: Companhia Editora Nacional, 1985. Disponível em:

No âmbito internacional, a Organização Mundial de Saúde (OMS) já se manifestou no sentido de condenar tal prática: “o corpo humano e suas partes não podem estar sujeitos a transações comerciais”.

Insta frisar que o repúdio à prática da comercialização não é unânime. No Brasil, por exemplo, Caio Mário da Silva Pereira admite que “nada impede a cessão, mesmo onerosa, de partes que se reconstituem naturalmente, e de outras não reconstituíveis, desde que não se comprometa a vida ou a saúde”121.

No direito estrangeiro, Cifuentes pondera que:

Por outro lado, tudo o que se faz em torno da realização de transplantes é oneroso (os tratamentos e remédios, os honorários médicos e das equipes, os exames [etc.]), pelo que muitas pessoas obtêm vantagens econômicas importantes [...], mas como contrapartida a esse panorama, somente o órgão que se entrega deve ser gratuito, sem nenhuma compensação, e é o único elemento que permite efetuar a cirurgia que aproveita aos demais”122.

Em que pese os argumentos dos referidos autores, a mercantilização do corpo humano afronta sobremaneira a dignidade da pessoa humana, que passa a ser considerada sob a ótica mercadológica, como se coisa fosse. É a pior forma de comércio do corpo humano, porque ofende não só a dignidade de quem vende os órgãos, como também destrói todo o sentimento altruístico que tal ato deveria ter.

121 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 159.

122 CIFUENTES, Santos. Elementos de derecho civil: parte general. 4. ed. Buenos Aires: Astrea, 1997, p. 72. In.: BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos da

personalidade e autonomia privada. Coleção Prof. Agostinho Alvim. Coord. Renan Lotufo. São

Sobre o tema, vale citar o desabafo de Junges123:

[existem formas seculares de mercantilização desenvolvidas pela escravidão e a prostituição. O corpo do ser humano é instrumentalizado a serviço do trabalho forçado e do prazer sexual. Hoje, elas adquirem formas mais perversas, porque atingem o corpo ainda frágil das crianças como instrumento para o trabalho infantil e o turismo pedófilo. Essa mercantilização chega a sua máxima sofisticação quando se trata de compra e venda de partes do corpo humano.

Nelkin e Andrews apud Belinguer124 aduz que: “a transformação do corpo humano em mercadoria viola a integridade do corpo, explora pessoas privadas de poder, intromete-se nos valores da comunidade, distorce os programas da ciência e mina a confiança nos cientistas e nos clínicos”.

Outrossim, na prática, percebe-se que nem mesmo a existência de legislações proibitivas, consegue coibir o comércio de órgãos.

Alguns autores apontam como incentivadores do comércio de órgão o problema do desequilíbrio entre a oferta e a procura de órgãos. Nesse sentido, pode-se citar o posicionamento dos autores Pessini e Barchifontaine125:

[a falta de órgãos gerou uma busca desesperada e desenfreada. Muitos pacientes viajam para outros países, na esperança de conseguir um transplante. Nessa busca angustiante de salvar a própria vida. Vê-se que as pessoas não estão muito interessadas em questões éticas, como, por exemplo, saber de que modo o órgão foi obtido.

123 JUNGES, José Roque. “Bioética: perspectivas e desafios”. São Leopoldo, RS: Unisinos, 1999. p. 212.

124 BERLINGUER, Giovanni. “Bioética cotidiana”. Trad. Lavínia Bozzo Aguilar Porciúncula. Rev. Técnica. Volnei Garrafa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004. p. 208.

125 BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de; ZOBOLI, Elma Lourdes Campos Pavone. (Orgs.)

Só no Brasil, no ano e 2007, existiam trinta e duas mil pessoas na espera de um transplante de rins. O receptor pode esperar de três a dez anos para receber o órgão126.

Em São Paulo, no ano de 2008, foi registrado um total de 70 mil pessoas na lista de espera para um transplante127.

Nesse contexto, uma matéria vinculada na Revista Veja aponta a existência de venda de órgãos e mostra anúncios em jornais de grande circulação fornecendo dados para venda de órgãos.

Outro fato comum é a ocorrência de tráfico de órgãos, inclusive no âmbito internacional. No México, por exemplo, ficou comprovada a existência de tráfico de órgãos infantis.128

Séguin129 afirma que:

[as leis do comércio ensinam que onde há desequilíbrio entre a oferta e a demanda surgem distorções que deságuam em delitos para suprir a necessidade. No Brasil, é notória a dificuldade em conseguir órgãos para transplantes. O desequilíbrio entre doadores e receptores gera uma estrutura de comercialização, contrabando, tráfico ou comércio clandestino em função dessa dificuldade.

Como se pode depreender do quanto dito acima, o modelo escolhido pelo legislador não resolveu o problema da comercialização de órgãos no Brasil, é dizer,

126 Dados fornecidos pela reportagem na Revista Veja. O CORPO à venda: com a ajuda da internet e sem a fiscalização do governo, cresce no país o criminoso comércio de rins. Veja, Salvador, 23 de maio de 2007.

127 Matéria obtida junto ao Estadão on line. FILA para transplantes no Brasil tem 70 mil

pacientes. Estadão online, São Paulo. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/geral,fila-para-transplantes-no-brasil-tem-70-mil-

pacientes,248647,0.htm>. Acesso em: 07 jul. 2009. 128

Organización Mundial contra la tortura, in processo 907, 21.03.1994. In.: SÉGUIN, Elida.

“Biodireito”. 4.ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 143.

viu-se que proibir que o falecido ou seus familiares destinem seus órgãos à pessoa determinada não tem impedido o comércio de órgãos.

Em que pese os argumentos contra a liberdade de escolha pelo doador na doação de órgãos post mortem, na prática, tal proibição tem se mostrado um estorvo no caminho das doações.

Tem-se como exemplo o caso chocante que ocorreu no ano de 1998, em Florianópolis - SC, trazido por Sá130, em que a mãe de uma menina de seis anos de idade não autorizou a doação dos órgãos da filha ao saber que a córnea da menina não poderia ser doada para sua sobrinha.

Sá, de igual forma, critica tal dispositivo131, ao afirmar que:

[o aproveitamento do órgão em pessoa da família, ou em amigo desta, pelo fato de não respeitar a lista única, poderia ser questionado? Imagine-se, por exemplo, o duplo desespero do pai que perde um filho e que, ao mesmo tempo, não pode designar que determinado órgão daquele, que já se encontra em morte cerebral, sirva para outro filho que dele necessite. A proibição de desrespeito à lista única haveria de incluir os próprios legitimados à recusa de retirada de órgãos? E a recusa poderia ser qualificada? Ou teria de ser pura e simples? Ou não teriam os familiares o direito legal à preferência, independentemente de lista, exatamente por não sujeitos a ordem de prelação? Por óbvio entendemos que em tais casos referida lista poderia ser desrespeitada sem motivação.

Igualmente, a própria lei já tratou de coibir o comércio de órgão no capítulo V, Seção I, ao criminalizar a conduta nos arts. 14, § 1º e 15132, razão pela qual não há justificativa para negativa de escolha pelo doador.

130 SÁ, Maria de Fátima Freire. “Biodireito e direito ao próprio corpo: doação de órgãos incluindo o estudo da Lei n. 9.434/97”. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p.201.

131

Id., Ibidem, p.201.

132 CAPÍTULO V - DAS SANÇÕES PENAIS E ADMNISTRATIVAS. SEÇÃO I - Dos Crimes. Art. 14. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições desta Lei: Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa, de 100 a 360 dias-multa. § 1.º Se o crime é cometido mediante paga ou promessa de recompensa ou por outro motivo torpe: Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 100 a 150 dias-multa. Art. 15. Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano: Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação.