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A imprensa e a produção de uma narrativa desportiva

A imprensa desempenhou um papel fulcral entre as diferentes instituições, grupos e organizações que divulgaram o desporto em Portugal e construíram os seus formatos dominantes. Acompanhando o processo de desportivização em curso, os periódicos desportivos do primeiro quartel do século XX abandonaram gradualmente o olhar complacente sobre os estilos de vida das classes ociosas. À medida que o desporto se popularizava, o relato da vida mundana deu lugar, como refere Vítor Costa a propósito dos retratos dos ciclistas, à descrição dos percursos competitivos, sublinhando características como a força, o poder ou a robustez, de atletas de origem pequeno-burguesa, quase sempre filhos de modestos comerciantes ou lojistas.230 Os discursos políticos sobre as intenções e objectivos desportivos estatais, sem se materializarem numa capacidade reguladora, limitação, aliás, decorrente da fragilidade da rede escolar, foram secundarizados nas páginas da imprensa. Por outro lado, tornaram-se mais raras as notícias sobre o espectáculo desportivo como evento beneficente, apesar da insistência de alguns sectores do campo desportivo em formação neste género de actividades e do empenho que a imprensa generalista colocava neste tipo de iniciativas. Em comparação com os critérios editoriais implementados pela imprensa especializada, em títulos como o Diário de Notícias e no Século, à entrada dos anos 20, subsistia uma atenção desproporcionada, aos eventos relacionados com actividades atléticas como a natação ou a ginástica, às quais eram atribuídas propriedades regeneradoras. A constituição da primeira equipa nacional de futebol, em 1921, “não foi assunto empolado pela imprensa”, como sublinha Homero Serpa na biografia de Cândido de Oliveira.231 Alguns anos mais tarde os encontros da selecção nacional seriam objecto de outro tipo de tratamento na imprensa generalista.232 Naquele momento, todavia, o futebol, como o desporto, vivia apenas num “canteiro interno”, para utilizar uma expressão de Homero

230 Costa, «O desporto...», 111-112.

231 Homero Serpa, Cândido de Oliveira, uma Biografia (Lisboa: Caminho, 2000), 38. 232 Coelho, A Equipa...

Serpa. Fora desse canteiro, as colunas desportivas da imprensa generalista encontravam-se nas mesmas páginas onde se tratava da vida artística, ainda parcialmente associadas à vida mundana, partilhando com elas um estilo e um formato noticioso.

A narrativa desportiva caminhava, porém, rumo ao relato autonomizado do evento desportivo, dirigido a um público cada vez mais alargado, que formava a comunidade de leitores destes periódicos.233 Na entrada dos anos vinte, em paralelo com a extensão das competições desportivas, que se apresentavam cada vez mais estruturadas em calendários regulares, observou-se uma verdadeira explosão no número de títulos dedicados àquelas actividades. Se entre 1870 e 1900 haviam surgido 37 periódicos desportivos, na década de 1920 editaram-se 166 novos jornais desportivos. No decénio seguinte esse volume desceu para as 123 publicações, para na década de quarenta baixar novamente para 66.

A transformação não foi apenas quantitativa, manifestando-se também no tipo de publicações dominantes em cada década. Até 1910 predominou a imprensa especializada, ligada essencialmente à velocipedia, à tourada, à caça e ao automobilismo, fazendo-se sentir ainda o tom mundano da cobertura noticiosa e a mistura entre artes, literatura, turismo, desporto e lazeres. Entre 1910 e 1930 dominou a imprensa desportiva generalista para, a partir da década de 1930, passarem a ser predominantes os novos títulos, boletins e jornais ligados a clubes e instituições desportivas, revelando o crescimento da esfera associativa e a necessidade de outras formas de comunicação entre os sócios e adeptos dos clubes desportivos.234

Na narrativa que os periódicos desportivos das décadas de 1920 e 1930 construíam verificava-se um equilíbrio na cobertura noticiosa das diferentes modalidades. As páginas das publicações desportivas como o Sporting (1921- 1953), Os Sports (1926-1945), a revista Stadium (1932-1951) e O Norte

Desportivo (1934-1983) encontravam-se preenchidas com os relatos de combates

de boxe, corridas de ciclismo, provas de atletismo, natação, rugby, andebol,

233 Sobre a evolução desta narrativa veja-se Nuno Domingos e Rahul Kumar, «A grande narrativa

futebolística – história da notícia desportiva em Portugal no séc. XX», em Sociologia da Leitura em Portugal no Século XX, dir. Diogo Ramada Curto (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006).

234 Dados construídos com base na tabela apresentada por Francisco Pinheiro, «História da

imprensa periódica desportiva portuguesa (1875-2000)» (tese de doutoramento em História, Évora, Universidade de Évora, 2010), 588-592.

basquetebol ou motociclismo. Nestas publicações, como nas suas antecessoras, de duração efémera e reduzida sustentabilidade económica, era já o futebol que gerava os mais inflamados debates. Os periódicos, ainda antes da rádio, foram um agente activo na estruturação do campo desportivo dando conta, com entusiasmo e espírito de missão, da difusão das mais diversas modalidades para fora das grandes cidades, anunciando as competições, historiando o seu crescimento no país, divulgando os clubes e descrevendo as proeza dos seus atletas.235

Nos agitados tempos da República, os jornais, mais do que simples órgãos de informação, constituíam pólos aglutinadores da desorganizada cena desportiva portuguesa, contribuindo activamente para o seu crescimento. O futebol foi vernacularizado nas páginas de periódicos como a revista Foot-ball (1920-1923)

Gazeta Desportiva, de 1923, o Sport Ilustrado, de 1924, ou O AZ, de 1928 . Estas

publicações trabalharam para a divulgação das regras, construindo um espaço de reflexão sobre os modelos tácticos do jogo e de interpretação estética dos gestos. Aqui coexistiam preocupações pedagógicas, com a tentativa de formar um público conhecedor e dotado de instrumentos de percepção para interpretar o jogo, e a defesa da autonomização do campo desportivo. A imprensa não se limitou a construir um terreno de divulgação, debate e crítica sobre as actividades desportivas. Estendeu, desde logo, a sua actividade à organização de provas e torneios, de que o exemplo mais evidente será a Volta a Portugal em Bicicleta. Em simultâneo, fomentou as trocas desportivas entre as equipas portuguesas e internacionais, divulgando também com acentuado interesse o que se passava para além das fronteiras nacionais, sendo também responsável, por exemplo, pela organização dos Congressos Desportivos de 1933 e 1938.

A imprensa foi um agente estruturante do campo desportivo nas diferentes dimensões da prática, estabelecimento de regras, formação de clubes, associações e federações ou na organização de competições. A produção de espectáculos desportivos criava, antes de mais, matéria noticiosa, que interessava a um público crescente, ele próprio parcialmente formado pela imprensa. Isto é, a sustentabilidade dos periódicos desportivos dependia da regularidade e previsibilidade na calendarização das competições, que por sua vez beneficiavam

235 Rahul Kumar, «Da bancada aos sofás da Europa: apontamento sobre media e futebol no séc.

XX português», em A Época do Futebol- o Jogo visto pelas Ciências Sociais, ed. Nuno Domingos e José Neves (Lisboa: Assírio e Alvim, 2004).

da publicidade dos periódicos. Tal como se começava a verificar nos acesos debates em torno da remuneração dos praticantes desportivos, também os agentes que relatavam as actividades desse universo procuravam o seu lugar no jornalismo. A relativa indiferenciação de papéis entre os diferentes agentes do campo começava, sob o peso da procura de vitórias e do volume crescente de receitas, a dar lugar a uma especialização e profissionalização que colocava em causa a ética dominante no campo até à entrada da década de vinte. O debate sobre a profissionalização dos atletas acompanhava assim as discussões sobre a especificidade do jornalismo desportivo, a sua institucionalização e os seus códigos deontológicos.

Considerado à época uma especialidade menor, como continuaria a ser desconsiderado no futuro, o jornalismo desportivo manteve-se, também ele, parcialmente amador. Homens como Cândido de Oliveira, Ribeiro dos Reis e Ricardo Ornellas – todos com um passado casapiano – e outros como Tavares da Silva, Raul Oliveira, Salazar Carreira, Luís Raul ou Armando Rato definiram um novo tipo de jornalismo desportivo e contribuíam decisivamente para transformar a paisagem desportiva portuguesa. Tendo ocupado os mais diversos lugares no campo desportivo, como atletas, treinadores, fundadores de clubes e dirigentes desportivos, divulgadores, teóricos e críticos, quase sempre mantendo outras profissões, tomaram o lugar de José Pontes, pioneiro do jornalismo desportivo e impulsionador do movimento olímpico português.

No Jornal da Noite, ligado aos partidários de João Franco236, e nos Sports

Illustrados, Pontes continuou o seu trabalho em defesa de um desporto com

funções higiénicas, guiado por valores morais e em prol de fins beneficentes: da mocidade pobre, da recuperação dos mutilados da guerra, da criação das primeiras cantinas escolares. Esta nova vaga de jornalistas dinamizava, por seu turno, nos estádios, nos gabinetes dos clubes e nas redacções um outro movimento desportivo, orientado para o espectáculo, movido pela incerteza do resultado. Esta estruturação do campo desportivo, impulsionada por evidentes interesses comerciais que passavam pela imprensa, pela publicidade e pela procura social do espectáculo desportivo não se orientava, contudo, para modelos empresariais de

gestão das actividades desportivas, mas para um associativismo economicamente sustentável.

A selecção nacional nos Jogos Olímpicos de 1928

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