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Os primórdios do desporto em Portugal: uma prática distintiva

A difusão inicial dos desportos modernos relacionou-se, de forma próxima, com a geografia dos interesses coloniais, económicos e políticos britânicos. Na última década do século XIX, a revolução dos jogos passou pela divulgação do críquete no subcontinente indiano, na Austrália, nas Caraíbas e na África do Sul. Por seu lado, na Europa continental e na América do Sul, o desporto, e em especial o futebol, foi transportado por agentes integrados nas rotas comerciais e educativas daquele império. Noutros terrenos, como nos Estados Unidos da América, a invenção de tradições desportivas nacionais relacionou-se com necessidade de ruptura simbólica e cultural com o império britânico, através da construção de práticas desportiva autónomas.51

A prática desportiva representava, em finais do século XIX, um elemento importante para a definição de uma posição social, que identificava o lugar dos seus cultores no topo de uma hierarquia de classe. Mais do que uma filiação nacional, o desporto, enquanto manifestação sensível de um espírito cultivado, de

49 Thorstein Veblen, The Theory of the Leisure Class (Nova Iorque: Penguin, 1994). 50 Elias, A Busca...

51 Allen Guttman, Games and Empires (Nova Iorque: Columbia University Press,1995); J.A.

um corpo racionalmente construído e de uma moral capaz de domesticar os seus impulsos primordiais, apresentava um significado específico que se encontrava ainda, em quase toda a parte, longe da popularização. O olimpismo, orientado para a superação de recordes e para a inovação tecnológica, espelhava esses padrões sociais das sociedades industriais e alguns dos seus valores centrais, como a competição ou o progresso. Para além disso, as competições olímpicas representaram, no quadro da construção do Estado Moderno e da sua identificação com a nação, um dos terrenos de afirmação das potências emergentes ao longo do século XX. Alicerçadas numa adesão intransigente aos valores do amadorismo da prática desportiva, as olimpíadas constituíam um baluarte desta visão elitista do desporto. Esta concepção do mundo, socialmente desigualitária e civilizacionalmente hierárquica, conheceu, por exemplo, em 1904, nos Jogos Olímpicos de St. Louis, com os Anthropology Days, um dos seus momentos mais controversos.52

Tal como em outros países europeus, a introdução do desporto em Portugal foi feita por grupos sociais privilegiados e com forte influência britânica. Como mostra o trabalho de Manuela Hasse sobre corpo, lazer e desporto na transição do séc. XIX para o séc. XX, o acolhimento dos desportos fez-se no seio das elites. De notar que o primeiro acontecimento desportivo nacional terá sido uma regata de vela organizada em Paço d’Arcos, no ano de 1852, e promovida pelo conde de Alcáçovas. Num período em que a decadência física e moral da nação e a sua regeneração eram preocupações partilhadas por políticos, intelectuais e cientistas, “a navegação, o mar e o contacto com o ar marítimo eram

52 Num período de «performatividade polimórfica» em que o racismo científico se fundia com

representações populares na afirmação da superioridade europeia, foi pedido em St. Louis, a «actores», contratados para representar nas «aldeias vivas» da Exposição Mundial os modos de vidas das diferentes «raças», que se envolvessem nas provas desportivas. Organizados por James Sullivan, então uma das mais poderosas figuras do desporto americano, os Jogos Olímpicos Especiais colocaram, durante dois dias, Ainus do Japão, Ameríndios do México, Pigmeus da África Central, Sírios e Turcos, entre outros povos «selvagens», em confrontos desportivos. Estes foram distribuídos entre provas desportivas «europeias», como as corridas de velocidade ou os saltos em altura e comprimentos, e as provas «tradicionais». Nos intervalos, os «atletas» executavam diferentes tipos de performances culturais «típicas», com destaque para a dança. Apesar do relativo insucesso desportivo e comercial dos Anthropology Days, os fracos resultados obtidos pelos «indígenas» serviram sobretudo para legitimar e confirmar as ideias dominantes sobre a superioridade «europeia». Os «selvagens» foram considerados incapazes de compreender as regras das práticas desportivas, ou seja, as bases do comportamento «civilizado», aprendidas nas semanas imediatamente anteriores. Susan Brownell, ed. The 1904 Anthropology Days and Olympic Games, Sport, Race and American Imperialism (Lincoln e Londres: University of Nebraska Press, 2008).

apontados como formas de higiene e terapêutica, um processo excepcional de fortalecer a saúde”.53 A natação e o remo, mas também o ténis, a equitação, a esgrima ou o tiro constituíam outras das práticas físicas integradas neste universo de actividades de lazer. A divulgação do desporto, ou do sport, como era então designado, não se limitava ao exército, à marinha e às instituições escolares, onde predominava a prática da ginástica e, no primeiros caso, o domínio das armas de combate.

O entusiasmo em relação ao desporto e o alargamento para fora das esferas institucionais militares e de ensino resultavam da sua importação para um quadro mais amplo de actividades identificadas como práticas de distinção, entre as quais se destacavam as regatas. Ainda segundo Manuela Hasse, foi entre os frequentadores das estações balneares mais prestigiadas - Cascais, Paço d’Arcos, Algés, Aveiro, Figueira da Foz -, muitos deles parte das elites estrangeiras residentes, que se verificou “uma efervescência particular na promoção deste tipo de provas”, que representavam um “símbolo essencial na mobilização do interesse pela vida, forma conspícua de verdadeira afirmação social exemplo de filantropia e civilização.”54 Luís Trindade referencia igualmente esta dimensão mimética da prática desportiva, através da qual as elites portuguesas procuravam emular, nas provas hípicas da Palhavã e nas regatas de Cascais, as corridas de Ascot ou as regatas de Henley, divulgadas através da Illustração Portuguesa.55

A sociogénese do desporto em Portugal, ligada à aristocracia, e com um declarado carácter lúdico e distintivo, por vezes associado a intenções beneficentes, concorreu para o frágil grau de estruturação e formalização destas práticas, quase sempre dependentes de entusiasmos pessoais, irregulares e muitas vezes fugazes. Apesar de se terem formado rapidamente as primeiras associações dedicadas ao sport, que se multiplicaram ao longo da segunda metade do século XIX56, a organização de eventos desportivos era algo errática e a formalização das provas pouco definida, gerando muitas vezes divergências entre organizadores e

53 Manuela Hasse, O divertimento do corpo: corpo, lazer e desporto na transição do séc. XIX para

o séc. XX em Portugal (Lisboa: Editora Temática, 1999), 316.

54 Hasse, O divertimento..., 327.

55 Luís Trindade, «A imagem do Sportsman e o espectáculo desportivo», em Uma História do

Desporto em Portugal, Corpos, Espaços e Media, coord. José Neves e Nuno Domingos, vol. I, Corpos, Espaços e Media (Vila do Conde: Quid Novi, 2011).

56 Entre as mais significativas encontravam-se a Real Associação Naval (1956), Real Gymnasio

Clube Português (1875), Club dos Aspirantes da Marinha (1888), Centro Nacional de Esgrima (1897).

participantes. Parte dessas discordâncias resultava do carácter ainda indistinto das actividades desenvolvidas.

Na transição do século, uma prova de vela e de natação assumia-se sobretudo como uma festa e um momento de socialização entre as classes privilegiadas, mesmo que em diferentes ocasiões atraísse alguns milhares de espectadores, sobretudo quando as actividades eram desenvolvidas nas frentes ribeirinhas. O programa de uma dessas festas, bastante participadas pelas mulheres, podia incluir uma corrida de barcas chatas ou a caça ao pato.57 Esta presença feminina contradizia os argumentos de alguns divulgadores dos sports, que excluíam as mulheres de muitas das suas actividades, limitando-as ao papel de espectadoras e de adorno dos verdadeiros sportsman. O desporto era um marcador emergente de virilidade masculina.58

Vítor Costa, debruçando-se em maior detalhe sobre a velocipedia na passagem do século XIX para o século XX, relata atitudes semelhantes, não somente em relação às questões de género, mas também relativamente a uma tendencial indiferenciação entre o evento social e a prática desportiva, “apanágio de meios restritos e inserido num calendário mundano”59. Assim, e apesar de em muitos sectores se procurar diferenciar o verdadeiro sportsman do diletante, levando mesmo o Jornal da Noite, dirigido por Vítor Pontes, futuro presidente do Comité Olímpico Português, a defender a necessidade de uma “verdadeira cruzada de desinfestação”,60 a ideia de recreação e de festa associados ao sport persistiam.

Entre as primeiras actividades organizadas pela União Velocipédica Portuguesa, fundada em 1899, encontrava-se o excursionismo velocipédico, uma forma de cicloturismo institucionalizado, no qual, para surpresa de alguns, começaram a participar alguns membros de “grupos sociais menos favorecidos”.61 Pese embora uma certa componente conservadora dos sports, relacionada com o seu carácter elitista, foi justamente a sua dimensão recreativa que permitiu a participação dos mulheres nestes acontecimentos, “cujo espaço foi

57 Hasse, O divertimento..., 327.

58 George L. Mosse, The Image of Man, The Creation of Modern Masculinity (Oxford e Nova

Iorque: Oxford University Press, 1996).

59 Vítor Costa, «O desporto e a sociedade em Portugal, fins do Século XIX- Princípios do Século

XX» (tese de mestrado em História Social Contemporânea, Lisboa, ISCTE, 1999), 12.

60 Citado por Costa, «O desporto...», 5. 61 Costa, «O desporto...», 70.

progressivamente penetrado e ocupado pelo elemento feminino”.62 Como poderemos ver adiante, a velocipedia assumiu-se, antes de qualquer outra modalidade, como a prática recreativa e mundana que mais rapidamente foi dominada perante a pulsão do recorde.

Carlos Paula Cardoso dá conta, na sua obra sobre a história do atletismo em Portugal, de uma festa organizada pelo Campo Grande Football Club, em 1906, a qual incluía “corridas de cavalos, corridas de burros, corridas pedestres de velocidade e obstáculos e ainda um match de futebol”.63 Salazar Carreira, um dos nomes fundamentais da história do desporto em Portugal na primeira metade do século XX, salientou a exclusividade de um evento organizado pelo mesmo clube um ano antes.64 O acontecimento, mesmo apresentando uma dimensão competitiva, onde se registava a presença de cronómetros, foi “uma festa reservada a convidados”, “numerosos e finíssimos”, e aos quais se serviu um “finíssimo lunch”. Do programa desportivo constavam provas de atletismo e provas hípicas.65 Os preços de inscrição para o I Cross Country Nacional – organizado pela Liga Sportiva de Trabalhos Atléticos -, por exemplo, eram considerados “quase proibitivos”, oscilando entre os 2$50 para as inscrições individuais e os 10$00 para as colectivas. Deste modo, estabeleciam-se as fronteiras sociais que delimitavam o universo dos participantes, excluindo à partida atletas de origens mais modestas.66

O desporto, ainda sport, permanecia, portanto, o reduto de uma condição social privilegiada. A indefinição dos sports resultava ainda da sua inscrição num universo de práticas recreativas modernas. A sua integração num universo dos lazeres e dos tempos livres pouco especializado garantia-lhe um significado social particular. A sua presença ao lado das artes era comum em algumas publicações

62 Costa, «O desporto...», 87.

63 Carlos Paula Cardoso, História do Atletismo em Portugal (Lisboa: Clube do Coleccionador dos

Correios, 2000) 14.

64 Médico. Foi praticante de ginástica, esgrima, natação, andebol, râguebi e ténis, sempre pelo

Sporting Clube de Portugal, destacando-se no atletismo, em particular nas corridas de velocidade. Foi presidente do Sporting, da Federação Portuguesa de Atletismo, da Federação Portuguesa de Futebol, da Associação de Atletismo de Lisboa, da Associação de Râguebi de Lisboa e da Confederação dos Desportos. Foi, igualmente, inspector dos Desportos entre 1944 e 1964, para além de ter publicado diversas obras sobre desporto e colaborado com vários periódicos desportivos, com destaque para Os Sports. Foi um dos principais teorizadores da política desportiva do Estado Novo.

65 Salazar Carreira, «Evolução dos récordes nacionais, apontamentos para a história do atletismo

português», Boletim da Direcção Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, fascículos I, II, III e IV (1945), 23-24.

da época. Até meados da década de vinte, continuava a ser possível encontrar periódicos que se dedicavam ao relato desse universo de práticas elitistas, onde se incluíam a fotografia, o cinema, a literatura, o teatro e outras artes performativas, mas também o turismo e até mesmo a ciência.67

Oscilando entre o acontecimento desportivo, o evento social e a manifestação de determinada sensibilidade plástica corporizada na figura do

sportsman, os sports integravam-se num “processo de estetização geral de um

quotidiano invadido pelas imagens produzidas pelos novos mecanismos da cultura de massa. Imagens que, por outro lado, funcionavam decisivamente para se poderem pensar novas dimensões da existência e, sobretudo, um novo lugar do corpo na hierarquia das representações.”68 O corpo ideal deveria, assim, ser moldado por um justo equilíbrio entre elegância e resistência. Atraente, sólido e robusto, o corpo, imagem de força, energia, saúde e beleza, encarnava o espírito de aventura, o cavalheirismo, a gentileza ou capacidades como a coragem e o auto-controle, “garantia de poder enfrentar com sucesso os obstáculos da própria sobrevivência sem ser derrubado aos primeiros embates”.69 Estes encontravam-se aptos à reprodução das novas gerações e a preservação da raça, mas também “mais apropriados a garantirem as possibilidades de enfrentarem as exigências impostas por uma sociedade original a erguer e os esforços de natureza intelectual, física, psíquica e nervosa que uma economia mais sólida, e um trabalho de características diferentes, reclamavam”.70 A emergência do homem de

sport não deve, contudo, ser pensada somente como “um dos símbolos dessa nova

presença que era o corpo apenas na medida em que agora havia novas máquinas – a fotografia e o cinema – para o mostrar” mas também como o reflexo de um processo de “adaptação em que as elites tradicionais procuraram negociar o seu

67 Vejam-se apenas os títulos de algumas revistas e periódicos publicados até ao fim do primeiro

quartel do século, representativas de uma certa concepção de lazer. Em 1897, surgiu O campeão: revista theatral e de sport; em 1899, A mariposa: semanário literário e de sport; em 1902, O aristocrata: semanário literário, scientifico, illustrado e de sport; em 1904, O aventureiro. Semanário literário, crítico, theatral e de sport; em 1910, Lettras e Sport: revista literária, sportiva e theatral; em 1918, a Gazeta Teatral: teatro música, cinematografia, sport; em 1923, a Revista Portuguesa: literatura, crítica de arte, sport, teatro, música e vida estrangeira; em 1927, Arte e sport: Ilustrado; em 1928, A Ribalta: publicação literária de teatro, cinema, sport e tauromaquia.

68 Trindade, «A imagem...», 122. 69 Hasse, O divertimento..., 332. 70 Hasse, O divertimento..., 333.

estatuto no interior de novos hábitos”,71 (Trindade, 125) no âmbito de um processo de recomposição do campo das classes dominantes.

A descrição de uma nova figura, de contornos socialmente vincados, da paisagem urbana mobilizava o interesse da imprensa na passagem do século. Desde o Gymnasta (1882), passando pelo Tiro Civil (1901), até ao Tiro e Sport (1906), multiplicaram-se os debates, em torno do que caracterizava este novo tipo social moderno. Apesar dos inúmeros argumentos em jogo, um conjunto de critérios físicos, psicológicos, morais e, evidentemente, sociais, era partilhado por todos os proponentes. Em primeiro lugar, o possibilidade da prática do sport era ela mesma tida como um manifestação de um privilégio hereditário dependente de uma posição social anteriormente estabelecida. Por outro lado, o sportsman, era também definido, antes de mais, como alguém que se distinguia das classes populares – porque o sport era uma actividade dispendiosa, para a qual eram necessários determinados recursos económicos. O sport, como outros fenómenos mundanos, constituía um terreno privilegiado para a reconfiguração do campo das classes dominantes e a integração das novas elites. Um terreno de sociabilidade onde se diluíam, no caso português, as diferenças entre a aristocracia e a alta burguesia.

Continuava a predominar, no seio destes grupos sociais, uma visão do mundo centrada na prática desportiva como um fim em si mesmo, logo distintiva, e não como um meio para atingir a notoriedade ou a promoção social, ainda que fosse, necessariamente, a consequência dessa forma de expressão de um espírito e de um corpo cultivados ao longo de gerações. O sport, para o ser, deveria ser uma prática materialmente desinteressada e as vitórias conquistadas apresentavam um valor meramente simbólico. A hegemonia destes valores do amadorismo e do cavalheirismo, a tradução nacional da ideia de fair-play, foi contestada e rapidamente colocada em causa.

A popularização do desporto no final do século decorreu deste processo contraditório, já que a espectacularização dos feitos do “sportsman aristocrático correspondeu assim à primeira explosão de popularidade do sport”.72 A espectacularização e a comercialização do sport, aquilo que Hargreaves chama de

71 Trindade, «A imagem...», 125. 72 Trindade, «A imagem...», 136.

espectadorização,73 desempenharam um papel preponderante na divulgação do desporto. A crítica do amadorismo foi, contudo, um dos traços desta trama, em grande medida guiada pelos meios de comunicação social, tendo implicado a reconfiguração da hierarquia entre diferentes modalidades. Estas alterações, mais do que indicarem um processo de difusão cultural e ideológica de cima para baixo, incitam a analisar esta questão a partir de outras linhas de análise.

A hegemonia do ideário amador na prática desportiva até ao primeiro quartel do século XX resultou da sua associação a grupos sociais privilegiados e da exclusão de elementos das classes populares de um determinado segmento do campo dos lazeres. O profissionalismo era sinónimo de uma posição social inferior, de uma forma impura, que pervertia o princípio do “amor à arte” como um fim em si mesmo, mesmo quando se encorajava, noutros contextos nacionais, a competição entre os melhores amadores e os profissionais.74 No âmbito deste quadro de valores, profissionalismo desportivo era tratado como uma impossibilidade lógica. O amadorismo condensava uma relação com a prática desportiva definida pelo fair-play, pelo desportivismo, pelos valores morais e educativos produzidos pela competição em espíritos representados como superiores. Idênticos valores poderiam, nos espíritos ditos menos preparados, instilar graves deformações morais. O espírito amador pretendia cultivar um carácter mais resiliente e voluntarioso ou inculcar valores de respeito pelo adversário e de identificação nacional. Isso implicava secundarizar a vitória e a relação agónica com os opositores, elementos indispensáveis nos processos de desenvolvimento do desporto competitivo.

Contudo, como refere Eric Hobsbawm, no contexto da análise da produção em massa de tradições na Europa entre 1870 e 1914, o desporto, associado às classes ociosas, transformou-se numa tradição das classes laboriosas. Se o conjunto de tradições a que se referem Hobsbawm e Ranger foram em grande medida inventadas pelo Estado Moderno, não deixaram também de ser construídas pelos movimentos sociais e pelas classes subalternas numa Europa em rápida transformação. O desporto, tal como, por exemplo, as manifestações do dia

73 John Hargreaves, Sport, power and culture, A social and historical analysis of popular sports in

Britain (Oxford: Polity Press, 1986).

74 Barry Smart, The Sports Star, modern sport and the cultural economy of sporting celebrity

do trabalhador, 1º de Maio, tornou-se numa importante manifestação cultural das classes laboriosas.

Segundo Hobsbawm, o futebol adquiriu em Inglaterra, entre os anos setenta do século XIX e o final da década seguinte, os traços institucionais e rituais que ainda hoje nos são familiares: o profissionalismo, o campeonato nacional, a Taça (com a sua peregrinação anual de demonstração do triunfo proletário à capital), o ritual de sábado à tarde, e as rivalidades, geralmente entre as duas metades da mesma cidade.75 Não se pode, todavia, considerar que este processo de popularização tenha seguido os mesmos ritmos e se tenha manifestado de forma semelhante em todos os contextos. Mesmo na Inglaterra da segunda metade do século XIX, a estrutura do futebol profissional era bastante diferente da de modalidades onde prevaleciam outros grupos sociais. Vejam-se os casos do râguebi, críquete ou do boxe, que faziam já parte de um universo de lazer das classes trabalhadoras.76

A análise da introdução e desenvolvimento do desporto em diferentes contextos deve, por conseguinte, concentrar-se, seguindo Hobsbawm, na politização destas actividades, e na sua relação com o trabalho organizado, ou, posto de outra forma, na sua relação com a estrutura de classes e diferentes instituições, como o estado, a igreja ou os sindicatos, por exemplo. No caso inglês, a invenção do desporto das classes médias e destinado a elas, combinou o elemento político e o social. Por um lado, contribuiu para a formação de uma nova elite que, de diferentes formas, complementou, competiu ou substituiu os anteriores modelos antistocrático-militares. Por outro, representou um esforço consciente por parte destas classes altas, conservadoras ou liberais, para fixar barreiras em relação às massas, ao destacar o amadorismo como o modelo ideal

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