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O futebol no Algarve e o desenvolvimento do sector conserveiro: um estudo de caso

O afastamento das competições oficiais por parte de um clube claramente identificado com uma certa elite social como era o CIF deu-se no ano de 1924, novamente num ano em que um outro clube conotado com outro tipo de grupos sociais, o Olhanense, venceu pela primeira e única vez na sua história o Campeonato de Portugal. O crescimento do futebol na cidade de Olhão, como no resto do Algarve, acompanhou as transformações na estrutura produtiva regional e a integração de um “imenso mundo rural” numa divisão intersectorial de trabalho à escala nacional, assente numa lógica de especialização centrada na indústria das conservas e na cortiça, como refere Joaquim Manuel Rodrigues.171 Entre o final do século XIX e o final da I Guerra Mundial, Portugal transformara-se no maior produtor mundial de conservas de peixe. Estas, por sua vez, num dos mais importantes produtos de exportação da economia portuguesa.172 Em muitas localidades do litoral português, onde o futebol conheceu um rápido desenvolvimento, de Espinho a Matosinhos, passando por Setúbal, Portimão e Olhão, a indústria conserveira tornou-se um dos sectores fundamentais das economias regionais. Para se entender o triunfo do Sporting Clube Olhanense, no ano de 1924, e os seus principais personagens, é indispensável uma breve digressão pela história da indústria conserveira naquela vila. É justamente o carácter ideal típico desta história que oferece um modelo concreto para interpretar a expansão do futebol em Portugal.

No último quartel da década do século XIX, a estrutura produtiva de Olhão assentava no sector das pescas, na secagem e comércio internacional de peixe, sal e frutos secos, para além de outras actividades artesanais e comerciais relacionadas com a construção naval, fabricação de anzóis e olarias. A instalação

171 Joaquim Manuel Rodrigues, «A indústria de conservas de peixe no Algarve» vol. 1 (dissertação

de mestrado em História do Século XX, Lisboa, Faculdade de Ciências sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1997), 374.

172 Pedro Lains, A Economia Portuguesa no Século XIX (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da

de duas fábricas de conservas na cidade, no início da década de 1880, verificou-se num momento em que se intensificava a emigração olhanense para Angola e para o Brasil. A escassez de peixe nas águas da Bretanha levou a que vários industriais conserveiros franceses, rapidamente seguidos por empresários espanhóis e italianos, procurassem no Algarve, em Lagos e Vila Real de Santo António primeiro, e depois em Olhão, não somente uma fonte de matéria-prima, mas também um lugar para onde deslocar as suas unidades de produção.

Segundo Antero Nobre, em 1901, vinte anos depois de instaladas as primeiras duas empresas, encontravam-se na cidade 8 fábricas de conservas de peixe, nas quais trabalhavam 316 homens (entre os quais 88 soldadores) e 306 mulheres.173 Nas duas décadas seguintes, a indústria cresceu de forma assinalável, com o aumento da procura das conservas algarvias durante a I Guerra Mundial. Entre 1915-16 e 1917-18 o movimento do armazém geral de Olhão quintuplicou.174 Em 1917, o distrito de Faro possuía 239 estabelecimentos industriais, empregando 10.186 operários dos quais 5.064 mulheres (50%) e 1.793 menores (18%).175 Os concelhos de Olhão (53 fábricas), Vila Real de Santo António (36), Faro (32) e Alportel (28), eram os mais industrializados. Este parque industrial assentava essencialmente nas fábricas de conservas de peixe e de cortiça.176 No mesmo ano, Olhão já se havia transformado no maior centro conserveiro algarvio, com 34 fábricas e 2638 operários. Apesar de uma ligeira diminuição do número de estabelecimentos industriais no pós-guerra, e da crise que se abateu sobre o sector na segunda metade da década de 1920, a sua importância continuou a aumentar até 1933, ano em que 3300 operários de ambos os sexos trabalhavam nas 47 fábricas existentes.177 Assente em ciclos económicos curtos e na exploração de mão-de-obra barata, o desenvolvimento do sector era também inseparável das políticas cambiais, crescendo nos períodos de desvalorização da moeda e recuando nos períodos de valorização cambial, como sucedeu a partir de 1924, com a reforma financeira iniciada por Álvaro de Castro.178

173 Antero Nobre, História Breve da Vila de Olhão da Restauração (Olhão: A voz de Olhão,

1984), 127.

174 Rodrigues, «A indústria...», 150. 175 Nobre, História Breve..., 151. 176 Rodrigues, «A indústria...», 151-152. 177 Rodrigues, «A indústria...», 90-91. 178 Rodrigues, «A indústria...», 177.

O reduzido investimento necessário para montar uma empresa de conservas de peixe possibilitou a proliferação de pequenas unidades de carácter muitas vezes artesanal, “verdadeiramente improvisadas nas instalações e apetrechamento, sem organização eficaz e sem suporte financeiro suficiente”,179 apoiadas na sazonalidade da produção, em elevadas taxas de feminização de mão- de-obra e explorando o trabalho infantil.180 Os seus efeitos noutros sectores económicos da região fizeram-se sentir sobretudo em indústrias subsidiárias, como a litografia, a latoaria e a construção naval181, tendo igualmente contribuído para a “industrialização” da pescas locais.182 É, porém, necessário referir que não constituíram um motor de modernização da estrutura produtiva e das unidades industriais existentes. Uma parte importante dos lucros foi canalizado para despesas sumptuárias. Outra, num contexto de depreciação constante do escudo, foi depositada em bancos estrangeiros. A crise instalou-se no sector, na segunda metade da década de 1920, consequência da quebra de procura internacional, e da reorganização económica de diversos países europeus, mas também da maior concorrência de empresas italianas, espanholas e francesas em parte resultado da baixa qualidade do produto e das múltiplas fraudes praticadas pelos empresários portugueses durante a guerra.

Com a crise da pesca na costa algarvia terão fechado, em 1925, 90% das fábricas de conservas em Olhão, tendo sobrevivido apenas uma parte das perto de 80 unidades que laboravam na cidade no final da guerra.183 O ciclo de crescimento foi, contudo, retomado com a II Guerra Mundial. Então, cresceram novamente e de forma significativa os lucros das empresas conserveiras.184 Pese embora a fragilidade deste processo de industrialização, dependente de flutuações conjunturais de mercado e estruturalmente dependente de matérias-primas secundárias importadas, as consequências culturais deste incremento significativo na indústria das conservas durante os “anos loucos”, integrando um processo mais

179 Nobre, História Breve.... Para uma descrição mais detalhada das condições de algumas destas

empresas veja-se Rodrigues, «A indústria...», 96-102.

180 Rodrigues, «A indústria...», 175.

181 Como refere Rodrigues, «há ainda a destacar o impulso transmitido a outras indústrias, como

por exemplo, a salineira, a serralharia e a caixotaria, fabrico de chaves, grelhas, pregos, cerâmica refractária e construção civil». Rodrigues, «A indústria...», 96.

182 Nobre, História Breve..., 88. 183 Nobre, História Breve..., 109.

geral de transformação das estruturas produtiva e social portuguesa, foram manifestas, mesmo que lentas e por vezes contraditórias.

O número de operários a nível nacional não parou de aumentar entre os últimos anos do século XIX e o final da I Guerra Mundial. Entre 1890 e 1896 cresceu 195%, entre 1896 e 1912 perto de 200%, para aumentar novamente 155% até 1917. Para o Algarve, e apesar da dificuldade em quantificar de forma exacta estes valores, Joaquim Manuel Rodrigues, avança a hipótese de o proletariado ter crescido uns impressionantes 890% durante o mesmo período, constituindo 53,6% do total do número de operários a nível nacional, em 1917.185 Trata-se, para mais, de um volume bastante mais considerável do que o aumento populacional em Olhão durante o mesmo período, um indicador de proletarização das populações. Nos primeiros trinta anos do século XX, a população de Olhão cresceu de 10.009 habitantes para 13.394. Incremento que se sentiu sobretudo ao longo da década de 1920, já que a emigração nos primeiros anos do novo século e mais tarde a I Guerra Mundial e o surto de pneumónica influenciaram de forma decisiva a demografia local. 186

Como refere Manuel Villaverde Cabral, a propósito da composição de classe e organização política do proletariado regional, “apesar da pequena dimensão das implantações industriais e da irregularidade do emprego, a difusão da relação salarial, a divisão do trabalho e a continuidade urbanística da costa fizeram do Algarve uma das regiões que mais depressa e mais ardentemente aderiram ao sindicalismo revolucionário”.187 A emergência de uma estrutura de classes de uma sociedade industrial e capitalista encontrou correspondência no desenvolvimento lento, parcial e desigual de associações recreativas e desportivas, sindicatos e partidos políticos, infra-estruturas rodoviárias e sanitárias modernas, enfim, de uma morfologia social, económica, política e cultural e de um conjunto de infra-estruturas que materializavam as dinâmicas de um processo de modernização.

Os lucros resultantes do aumento extraordinário do volume de negócios relacionados com a indústria conserveira – 11.542% de crescimento dos valores

185 Rodrigues, «A indústria...», 209. 186 Nobre, História Breve..., 196.

187 Manuel Villaverde Cabral, O Operariado nas Vésperas da República (Lisboa: Editorial

da exportação da conserva de sardinha entre 1914 e 1924188 - não se repercutiram, contudo, na melhoria rápida das condições de vida dos trabalhadores. Entre 1920 e 1923, por exemplo, durante o pico dos lucros da indústria conserveira, para além das inúmeras greves de diferentes grupos profissionais locais – pescadores, soldadores, padeiros, funcionários dos correios, operários da construção civil e aguadeiros -, que reflectiam uma complexificação da composição de classe do proletariado algarvio, em pelo menos dois momentos, 1920 e 1922, observaram-se “assaltos populares aos estabelecimentos comerciais de géneros alimentícios” e em particular, em 1922, às padarias.189 Luta pelo pão num contexto inflacionário que, como sublinha Villaverde Cabral, não deixava de reflectir os salários e o poder de compra de uma parte substancial dos operários portugueses.190

Por outro lado, também não se pode considerar que os lucros tenham sido reinvestidos numa modernização industrial ou que tenham contribuído para uma melhoria sensível das condições de uma cidade historicamente reconhecida como uma das mais insalubres cidades do país. À entrada da década de 1920, e depois do surto de pneumónica, Olhão continuava, ainda, e de modo mais saliente, a ser reconhecida pelo seu proverbial mau cheiro, resultado também da porcaria que se acumulava nas ruas, ainda por asfaltar, cheias de poeira no verão e lama no inverno. Apenas na segunda metade da década de 1920, durante o mandato do monárquico Capitão João Carlos Mendonça na Câmara Municipal de Olhão, foi levado a cabo um conjunto de obras que permitiram à população o acesso a saneamento básico, água potável ou electricidade. Se as infra-estruturas físicas conheceram, durante este período, algum desenvolvimento, o insuspeito António de Oliveira Salazar na sua visita de 1931 aos centros conserveiros algarvios, guiado pelo Eng.º Sebastião Ramirez, que seria o seu primeiro Ministro do Comércio, Indústria e Agricultura, traçava um retrato social da região e do investimento que os industriais nela haviam feito: “nem cantinas, nem bairros operários, nem qualquer forma de assistência na fábrica ou fora dela...”.191

A estrutura de classes local manifestava-se na constituição da sociedade civil e reproduzia algumas das suas divisões e fronteiras. Uma das mais claras era

188 Rodrigues, «A indústria...», 162. 189 Nobre, História Breve...

190 Cabral, O Operariado... Em especial o Capítulo VI, «Salários, ‘nível de vida’ e horário de

trabalho», 105 – 121.

a que separava a Sociedade Recreativa Olhanense (1880), a recreativa rica, do Grémio Recreativo Olhanense (1888), redenominado Clube Recreativo Olhanense, nos anos trinta, a recreativa pobre. Na primeira, composta no final do século XIX pelas “figuras principais da sociedade olhanense, incluindo o Juiz de Direito, o Presidente da Câmara, etc.” podia encontrar-se um pequeno teatro e organizava saraus de musica clássica onde chegou a participar, em 1894, o pianista Viana da Mota. Empregados no comércio e na indústria nascente e funcionários públicos de baixa categoria compunham o corpo da recreativa pobre, onde também havia lugar para o teatro amador e para os bailes.192 Foi nas suas instalações que, em 1908, se exibiu pela primeira vez o animatógrafo, quatro anos antes da inauguração do Cinema-Teatro de Olhão. Faziam parte da sociedade por quotas responsável pela introdução do cinema na cidade “Eugênio Pestana, proprietário de uma estância de serração de madeiras e fabrico de caixotaria e Manuel Pereira Madeira, capitalista e proprietário do terreno, que pouco antes regressara do Brasil, para onde emigrara bastante novo e onde fizera razoável fortuna”.193

É entre os membros destes últimos grupos sociais que podemos encontrar os elementos que levaram o Sporting Clube Olhanense à notoriedade nacional. Do lado das elites de capitais mais consolidados, observava-se o investimento e a participação em iniciativas ocasionais de filantropia,194 em actividades políticas, particularmente acesas durante a I República, e em eventos culturais, com destaque para a música e o teatro. Do lado do operariado emergente, para além da criação de sindicatos195 e associações mutualistas, predominavam as associações

192 Joaquim Simões Júnior retrata da seguinte forma a relação entre as duas associações: «Em

Olhão há dois clubes recreativos: um dos ‘Ricos’ e o outro dos ‘Pobres’. O primeiro destina-se aos doutores, grandes industriais e comerciantes; o segundo a funcionários públicos de baixa categoria social, aos empregados comerciais e a operários estabilizados. Num e noutro não entram pescadores, descarregadores de cais, vendedores de peixe, padeiros, taberneiros e engraxadores, e as profissões mais humildes em geral.» Joaquim Simões Júnior, Antiga Crónica de Olhão (Olhão: Gráfica Algarve, 1996), 62.

193 Nobre, História Breve..., 165.

194 Vejam-se, por exemplo, os casos da construção de um hospital em Olhão, financiado

inicialmente pelo Juiz do Compromisso Marítimo, José Mendes; ou a tentativa em 1901, de constituição de um Corpo de Salvação Pública Olhanense (Bombeiros Voluntários) «tendo como primeiro e segundo comandantes, respectivamente, Eduardo Figueiredo e José Guerreiro Mendonça, moços das mais abastadas famílias locais. Nobre, História Breve..., 137.

195 O primeiro sindicato olhanense, a Associação de Classe dos Pescadores de Olhão, foi fundado

em 1898. Em 1901 foi criada a Associação de Classe dos Operários das Fábricas de Conservas, cujo primeiro presidente foi o soldador Francisco de Souza Pité. Em 1903 foi a vez da Associação de Classe das Operárias das Fábricas de Conservas, liderada por Adelina Rosa. A Associação dos Soldadores de Olhão foi criada em 1910, ainda com o nome de Sindicato dos Soldadores de

recreativas populares. Entre estes dois grupos, entre o lazer distintivo e as actividades beneficentes e as organizações das classes populares e as mais combativas organizações operárias196, entre as quais se destacava a categoria dos soldadores, um estrato intermédio da sociedade olhanense encontrou no comércio, no cinema e no futebol contextos para exprimir a sua trajectória social ascendente. A história da ascensão e declínio do clube é também a narrativa do destino deste grupo de olhanenses.

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