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II O Estado Novo e o desporto: ideologias e instituições

Introdução

No dia 10 de Junho de 1944 foi inaugurado, no Vale do Jamor, o Estádio Nacional. Numa Europa destroçada pela II Guerra Mundial e num país a braços com uma vaga de protestos sociais e políticos, aquela obra concretizava a promessa feita por Salazar aos desportistas portugueses, como António Ferro fez questão de sublinhar aos microfones da Emissora Nacional nesse mesmo dia. Poucos meses depois da aprovação da Constituição de 1933 e do Estatuto Nacional do Trabalho, traves mestras, juntamente com o Acto Colonial, da arquitectura jurídica do Estado Novo, no discurso dirigido aos clubes de Lisboa, António de Oliveira Salazar retribuiu os votos formulados pelo Congresso dos Clubes Desportivos, reunido em Lisboa, em Dezembro daquele mesmo ano, com o compromisso de construção “em breve” do Estádio Nacional. Nesse mesmo discurso, “o filho do campo, criado ao murmúrio das águas de rega e à sombra dos arvoredos” revelou a sua pena por saber “os cafés cheios de jovens, discutindo os mistérios e problemas da baixa política, e ao mesmo tempo ver deserto esse Tejo

maravilhoso, sem que nele remem ou velejem, sob o céu imparável, aos milhares, os filhos deste país de marinheiros”. O Estádio Nacional seria a primeira concretização do objectivo de “dar aos Portugueses, pela disciplina da cultura física, o segredo de fazer duradoura a sua mocidade em benefício de Portugal”.268

O concurso para o projecto do recinto foi lançado a 1 de Março de 1934. Nesse mesmo ano, a Itália fascista de Mussolini organizou o Campeonato Mundial de Futebol, que a sua selecção nacional conquistou. Dois anos mais tarde a Alemanha nazi, liderada por Adolf Hitler, declarou o seu ressurgimento na cena internacional com a organização dos Jogos Olímpicos de 1936, realizados em Berlim. O impulso definitivo para o arranque do projecto foi dado pelo germanófilo Duarte Pacheco, Ministro das Obras Públicas e Comunicações, no quadro de uma estratégia mais geral englobada no aprofundamento da intervenção do estado na economia e na extensão das funções do estado no período entre guerras, que se fazia sentir em diferentes contextos políticos. Tratava-se de uma estratégia relacionada com a construção de infra-estruturas, mas também com o aprofundamento do planeamento urbano e das politicas sociais urbanas. Entre o primeiro concurso para a elaboração do projecto, em que todas as propostas se viram recusadas269, e a fixação mais ou menos definitiva do mesmo, em 1939, intervieram arquitectos como Jorge Segurado, Caldeira Cabral, em colaboração com Konrad Wiesner, que esteve ligado à construção do Olímpico de Berlim, e Miguel Jacobetty Rosa, o último responsável pelo projecto.Com estes atrasos na definição do projecto, as obras do estádio, cuja inauguração estava inicialmente

268 Oliveira Salazar, Discursos, 1928-1934 (Coimbra: Coimbra Editora,1935), 267-271. No dia

03/12/1933, o Diário de Lisboa dedicou toda a sua primeira página, ilutrada com duas fotografias à parada dos clubes desportivos. Podia ler-se no periódico «A parada dos clubes desportivos que se realizou hoje, por entre filas compactas de povo, desde o Parque Eduardo VII até ao Terreiro do Paço, teve um alto significado constituindo uma manifestação desportiva digna de ver-se. A legião de gente de desporte, praticantes e dirigentes, que trabalha ignoradamente em prol do desenvolvimento físico da raça mostrou hoje o seu valor, a sua força e a sua grandeza. E isto é tanto mais notável, quanto é certo que a obra desportiva até hoje efectuada tem sido produto exclusivamente do esforço de todos os clubes portugueses». «A parada dos clubes desportivos revestiu-se de grande importância», Diário de Lisboa, 3 de Dezembro, 1933, 1. Na última página da mesma edição, anunciou-se em letras garrafais que «O chefe do Governo afirmou hoje que teremos em breve um estádio nacional», num artigo em que se transcreveu na integra o discurso de Salazar aos desportistas de Lisboa. «O chefe do Governo afirmou hoje que teremos em breve um estádio nacional», Diário de Lisboa, 03 de Dezembro, 1933, 8.

269 Apresentaram propostas Carlos Ramos, associado a Jans Wils, projectista do Estádio Olímpico

de Amesterdão, concebido para os Jogos Olímpicos de 1928, e Cristino da Silva, este com Constantino Constantini, autor do Forum Mussolini em Roma, construído para receber o Mundial de 1934.

prevista para 1940, de forma a coincidir com a exposição do Mundo Português, arrancaram apenas em 1939.

A monumentalidade da obra, que expressa algumas das tensões entre o primeiro modernismo da arquitectura portuguesa e um vocabulário historicista e regionalista que definiu boa parte da produção arquitectónica do Estado Novo, mas também as influências clássicas, comuns a outros projectos arquitectónicos desportivos de regimes congéneres, e patentes, por exemplo, na continuidade entre as bancadas e a paisagem envolvente ou nos materiais utilizados, fizeram do Estádio Nacional, apesar do atraso na inauguração, uma das obras icónicas do Estado Novo. Mais do que um mero recinto desportivo, destinado a acolher espectáculos desportivos, o estádio encerrava outro tipo de ambições. O significado político de tal obra não pode, por isso mesmo, deixar de ser articulado com o desenvolvimento de uma cultura de massas, mesmo que a sua expressão fosse ainda de certo modo incipiente no Portugal da primeira metade do século XX, e com fenómenos de estetização e ritualização da política e das suas manifestações mais comuns à época. A entrada em forma de ferradura aberta para o anfiteatro natural, amplificava naturalmente o efeito cénico dos grandes cortejos, possibilitando observar a entrada das formações no estádio e o seu desfile pelo vale. A distracção do povo, proporcionada também pelos espectáculos desportivos e as grandes manifestações políticas, não era, porém, suficiente. A arquitectura do recinto, bem como a sua localização, exprimia, justamente, uma ambição pedagógica. As transformações que os projectos originais foram sofrendo, algumas por razões conjunturais, não deixam de revelar as preferências dos autores da encomenda no debate entre os defensores do modelo do anfiteatro romano, um recinto fechado localizado no centro da cidade e orientado para o espectáculo, e o modelo do estádio grego, mais adequado aos planos de renovação urbana então em curso.270

É precisamente com base nesta dicotomia que o Capitão Quintino da Costa, no Boletim do INEF, defende o seu “Conceito de Estádio”. Ainda em

270 Sobre o Estádio Nacional veja-se Teresa Andresen, coord., O Estádio Nacional: um paradigma

da arquitectura do desporto e do lazer. Actas das jornadas Europeias do Património (Oeiras: Câmara Municipal de Oeiras, 2007); Ana Tostões et al, Do Estádio Nacional ao Jardim Gulbenkian: Francisco Caldeira Cabral e a primeira geração de arquitectos paisagistas (1940- 1979) (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003) e Luís André Cruz, «O Estádio Nacional e os Novos Paradigmas do Culto, Miguel Jacobetty Rosa e a sua Época» (tese de mestrado em Arquitectura, Lisboa, Universidade Lusíada, 2005).

1943, e sobre o já construído, mas ainda por inaugurar, recinto desportivo, o Capitão defendia a necessidade de o recinto estar não somente “aberto para todos, mas principalmente que todos devem ter um estádio onde se exercitem. Isso se pretende com o grandioso movimento da educação física moderna”, cuja genealogia o deveria levar a aproximar-se “ainda mais dos ginásios de Atenas”. Em consonância com este programa de nacionalização e estatização da prática desportiva, que até esse momento se havia desenvolvido sob a tutela da iniciativa privada do movimento associativo, o projecto original contemplava não somente a perspectiva de centralização do universo desportivo português mas também a construção de equipamentos - o Hipódromo, Piscina Olímpica, Centro Náutico, Parque Público - destinados à educação desportiva da população, que permaneceram, todavia, por concluir durante largos anos. Ainda mais, Quintino da Costa pugnava, já em 1943, por um “urgente estudo de uma ampla rede de Estádios Municipais onde o povo português encontre um mínimo de condições para o seu desenvolvimento físico e conservação da saúde.”271 O carácter inacabado, o lento crescimento e esparsa utilização do equipamento projectado para centralizar o universo desportivo português, onde foi inaugurada em 1954 a sede do INEF também desenhada por Jacobetty Rosa, e as próprias dificuldades sentidas pelo Estado português na difusão de equipamentos para a prática desportiva por todo o país, não podem deixar de constituir um incentivo para uma análise mais detalhada da política desportiva do Estado Novo, não somente do ponto de vista dos seus valores e ideologias, mas também das políticas e instituições. Entre a norma e a prática, entre o projecto e a sua concretização, como teremos oportunidade de examinar, mediou uma certa distância.

Todavia, sobre aquele 10 de Junho de 1944, António Lopes Ribeiro, o “cineasta do regime”,272 autor de obras como Bailando ao Sol (1928), A Revolução de Maio (1937) e Feitiço do Império (1943),273 para além dos clássicos da comédia portuguesa como O Pai Tirano (1941), contou a história de uma “obra

271 Quintino da Costa, «Conceito de estádio», Boletim do Instituto Nacional de Educação Física,

n.º 4, 1943.

272 Sobre a obra de António Lopes Ribeiro e a sua relação com o Estado Novo veja-se, por

exemplo, Piçarra, Salazar vai..., em especial o capítulo V, «O Cineasta do Regime: António Lopes Ribeiro», pp. 103-115. Note-se que António Lopes Ribeiro também colaborou com A Bola, tendo sido o responsável pela encomenda do logotipo do jornal a um designer alemão. Paula Machado, António Lopes Ribeiro, 1908-1995: Cineasta (Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 2004), 8.

273 Estas últimas, as duas únicas obras de ficção com intenções claramente propagandísticas

monumental, digna do Portugal ressurgido e pacífico”, definida pela sua “extraordinária beleza”, caracterizada pelo “equilíbrio dos volumes e pelo seu ajustamento à paisagem serena do Vale do Jamor”. Ainda na panorâmica sobre a construção do recinto, destacavam-se a auto-estrada de Cascais, a primeira da Península Ibérica, inspirada na moderníssimas auto-estradas alemãs, e a estrada marginal, “artérias verdadeiramente dignas da capital do império”, devedoras da “concepção e força criadora desse grande e malogrado ministro que foi o engenheiro Duarte Pacheco”.274 Nem só de agricultura e ruralismo se fazia a propaganda do Estado Novo.

A propósito da inauguração propriamente dita, era sublinhada, tal como na arquitectura, a monumentalidade do evento, quer do ponto de vista da sua organização e dos participantes, quer do ponto de vista dos espectadores que deram “o melhor exemplo de disciplina e entusiasmo”. Ao som do hino nacional “todo o público, multidão-público, saudou Carmona e Salazar”, o “campeão da pátria” que “era o campeão número um daquela festa de campeões”. A multidão foi acompanhada no renovado exemplo de ordem e disciplina pelos seus dirigentes que lhe ofereciam o espectáculo “à hora marcada, à hora exacta” e pelos desportistas e organizações que ao longo de horas desfilaram no relvado. Pela porta da maratona entraram sucessivamente “3600 filiados da Mocidade Portuguesa, 3600 rapazes saudáveis e confiantes, esperança do hoje e garantia do amanhã”, que entoaram o hino da MP e “60 mil espectadores concordaram com eles”, e as raparigas da FNAT, “marcando um novo e claro lugar da mulher portuguesa na vida nacional”. Mas não foram apenas os representantes das organizações estatais de enquadramento político e dos lazeres que se fizeram notar naquele dia.

A “parte apoteótica do festival” deu-se, seguindo a narrativa de António Lopes Ribeiro, quando uma dezena de milhar de atletas, representando todas as modalidades e clubes desportivos e todos os sindicatos nacionais, desembocaram no recinto, manifestando a adesão global da sociedade ao projecto de renovação nacional que o Estado Novo, com abnegação e sentido de missão, cumpria. A lista dos participantes revela, uma vez mais, o modo como o fascismo português procurava conciliar o futuro e o passado, a ambição de transformação e

274 As citações referentes a António Lopes Ribeiro e à inauguração do Estádio Nacional, foram

regeneração de um corpo político e social enfermo articulada com a necessidade de preservar uma ordem simbólica e cultural solidamente ancorada nas tradições. Assim, e antes dos praticantes dos desportos modernos - tenistas e esgrimistas, remadores e velejadores, corredores, saltadores, lançadores do peso, disco, martelo e dardo e todas as outras modalidades do atletismo, e para além dos atletas estudantes da academia coimbrã, envoltos nas suas capas negras, para seguirmos o relato de António Lopes Ribeiro, passaram pela pista do novo estádio “precedidos por insígnias simbólicas... os cavaleiros, os pescadores de linha, os caçadores, os atiradores, com as suas canas de pesca e as suas espingardas”. O final do filme de propaganda desenha precisamente esse renovado espírito nacional, actualizado pelos rituais do espectáculo fascista e materializados na obra de Salazar. Depois de concentrados os 10 mil atletas no relvado, desceram pelas bancadas do estádio os guiões da Mocidade Portuguesa, “produzindo um efeito deslumbrante. Ia ter lugar o momento culminante da festa: o agradecimento dos desportistas portugueses ao chefe da nação. Prémio espontâneo da nação, àqueles que tão firmemente nos conduzem através da tormenta da guerra, com mão segura e inteligência esclarecida de pensador, a inauguração do Estádio Nacional foi na vida portuguesa presente uma das mais gloriosas vitórias. Vitória da paz e unidade nacionais.” No último minuto do documentário, uma referência ao animado desafio entre Sporting e Benfica que “rematou a brilhantíssima festa.”

Naquela representação de António Lopes Ribeiro, naquela obra e nos acontecimentos daquele dia, tudo parece convergir num mesmo sentido. Arquitectura, organizações de enquadramento de massa, rádio, cinema contribuíam em simultâneo, e em consonância, para construir uma experiência política ritualizada e uma sensibilidade cultural específica. A inauguração do Estádio Nacional, como outros marcos na história do Estado Novo, demonstra a competência do regime para projectar uma forma de dominação, para além das técnicas repressivas, alicerçada na capacidade de mobilização de diferentes grupos sociais a partir de cima e na imersão desse sujeito político, a massa corporativamente organizada, num quotidiano totalitário, no qual as diferentes formas de produção cultural, coordenadas a partir de organizações de propaganda centralizadas, se conjugavam hegemonicamente para dirigir as práticas sociais e anular possibilidades de leitura e interpretação alternativas da realidade. Na narrativa de António Lopes Ribeiro, a narrativa do regime, não era somente o

Estado e as suas instituições que se aglutinavam em torno de Salazar. Era toda a sociedade, ali representada pelos clubes desportivos e pelos sindicatos nacionais, e acima de tudo pelo público-massa, que, naquele dia, se rendia ao Presidente do Conselho e à obra do Estado Novo.

Nesse projecto político, o confronto entre o desporto enquanto prática higiénica e disciplinar - subordinado a uma razão de estado, e considerado como um meio para atingir um determinado fim - e o desporto competitivo, que tomava a prática, e em especial a competição desportiva como um fim em si mesmo, também parecia ter sido mitigado. A formação de um campo desportivo autónomo havia passado nas décadas anteriores pela afirmação das práticas comerciais e associativas. Estas haviam sido regularmente criticadas por determinadas segmentos do campo desportivo, nomeadamente aqueles mais próximos de uma concepção elitista do desporto, e que se organizavam em torno do Comité Olímpico Português. E se para a configuração do campo desportivo português foram fundamentais os processos de comercialização mas também de autonomização da sociedade civil, é importante reiterar que o desporto em Portugal cresceu largamente à margem das instituições estatais. Esse espaço relativamente autónomo encontrava-se agora, na cerimónia de inauguração do Estádio Nacional, simbolicamente integrado na orgânica do regime. A instauração da ditadura militar, a 28 de Maio de 1926, e a sua subsequente institucionalização sob a designação de Estado Novo, em 1933, intimamente associadas um projecto de aprofundamento da intervenção estatal em todas as esferas da vida social, permitem colocar questões políticas ao desenvolvimento do desporto, e em particular, do futebol português.

É precisamente esse projecto de subordinação do universo desportivo ao salazarismo que importa aqui interrogar. Mais do que presumir a identidade entre um e outro, para se interpretar o desenvolvimento do futebol durante o Estado Novo é fundamental compreender a forma como o regime se relacionou com este universo desportivo autónomo e identificar o lugar do desporto e da educação física no programa ideológico e político do Estado Novo. O triunfo do fascismo resultou, portanto, não somente da sua capacidade repressiva, mas também da sua competência para integrar, colonizar e disciplinar os diferentes sectores autónomos do espaço social. A análise do lugar do desporto nas diversas estruturas de enquadramento da ocupação de tempos livres para diferentes

categoriais sociais - a Mocidade Portuguesa, a FNAT ou as Casas do Povo - permite uma primeira abordagem às concepções desportivas do Estado Novo, durante a década de trinta. A criação do Instituto Nacional de Educação Física (1940) e da Direcção Geral dos Desportos (1942), permite interpretar, por outro lado, uma vontade política de regulação de um universo desportivo a partir da apreensão quer das lógicas de formação de técnicos e instituições de regulação, enquadramento e vigilância do campo desportivo, seja na vertente escolar e da prática física, como no quadro dos desportos federados e espectadorizados.

Pretende-se, assim, nesta segunda parte situar a intervenção destas instituições e da doutrina que produziram e conhecer a forma era concebida a sua actividade e os quadros ideológicos que a balizavam. Procuraremos apreender os mecanismos através dos quais esses processos de acomodação e repressão das práticas e organizações desportivas instituídas foram levados a cabo, as áreas sobre as quais esses dispositivos de poder interferiram e a extensão dessa mesma intervenção. Nesse sentido, a instituição fundamental para ponderar a forma como o Estado Novo lidou com o universo desportivo é a Direcção Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, o organismo criado para regular a educação física fora das instituições de ensino, da Mocidade Portuguesa e da FNAT, precisamente o terreno onde os desportos se haviam implantado em Portugal.

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