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Ainda antes das organizações de enquadramento, o sistema educativo e em particular a escola, “a sagrada oficina das almas”, apresentou-se como o terreno privilegiado para a implementação de um conjunto de políticas educativas e pedagógicas adequadas à formação do “homem novo”. A “política do espírito”, ou seja, a construção de uma concordância entre as categorias de classificação, esquemas de percepção e disposições individuais e a organização do mundo, a base do processo de naturalização da ordem política e social, passava também pela disciplina dos gestos e dos movimentos, essenciais para a reabilitação das consciências.

Desde muito cedo ficou patente, nos mais diversos quadrantes, que esses objectivos se defrontavam com limitações. Dez anos depois do primeiro congresso da União Nacional, onde se projectaram as instituições e políticas que haviam de permitir “dar aos Portugueses, pela disciplina da cultura física, o segredo de fazer duradoura a sua mocidade em benefício de Portugal”, no II Congresso, realizado em Maio de 1944, era já possível realizar um balanço de mais de uma década de Estado Novo e do impacto das organizações que haviam entretanto sido criadas. De entre os 49 estudos apreciados na 16ª sub-secção do Congresso, apresentados por 45 congressistas, 27 discorriam sobre temas relacionados com educação física e 22 diziam respeito a assuntos de saúde escolar. As restantes comunicações debatidas no painel presidido pelo Tenente- Coronel Álvaro Salvação Barreto, Director Geral dos Desportos entre 1942 e

325 Para um relato mais detalhado sobre as relações da Legião Portuguesa com outras instituições e

organismos do Estado Novo, veja-se, Rodrigues, «A Legião...», em especial o capítulo 6, «A Legião no campo político nacional: ‘um organismo apenas tolerado’», 199-229.

Março de 1944, trataram, com excepções – dedicadas a práticas como o campismo, vela, remo ou esgrima - do papel da educação física nas forças armadas e nas organizações de enquadramento entretanto criadas.

As conclusões desta secção, dedicada à educação física e desportos, claramente dominada pelos militares, apontaram algumas dessas dificuldades organizativas e materiais. Preconizava-se, na primeira conclusão, uma direcção única para a educação física nacional “com o fim de eliminar os inconvenientes da pluralidade de orientações”. Em segundo lugar, considerava-se urgente “a regulamentação de todas as actividades físicas e consequente revisão dos programas escolares e da legislação com elas relacionada”, para além de implementar definitivamente “a obrigatoriedade da educação física em todos os graus de ensino”. Acrescentava-se, a seguir, a premência em “resolver o problema da educação física no ensino primário”. A solução destes problemas passava por três vias. À Direcção-Geral de Educação Física, Desportos e Saúde Escolar, criada em 1942, deveria ser atribuída a unificação, “sem prejuízo da suficiente autonomia de execução para as organizações”, da “direcção única para a educação física nacional”. O Instituto Nacional de Educação Física, fundado em 1940, deveria tornar-se o “principal centro irradiador de doutrina” e de formação dos técnicos, a quem caberia supervisionar e promover a prática da educação física e dos desportos. Os problemas materiais seriam resolvidos por via de um modesto “plano geral de apetrechamento material”. Sem se identificarem prazos concretos, estipulavam-se, no ponto VII das conclusões, as bases para uma carta desportiva nacional.

No mais, reforçavam-se, ora pela rejeição ora pela reiteração, algumas das linhas fundamentais da política desportiva do Estado Novo. Atribuiu-se, por exemplo, “particular significado patriótico e pedagógico à prática da aviação sem motor”. Num momento em que a classe médica perdia peso na determinação dos programas de educação física, definiu-se “como indispensável a colaboração médica na educação física”, que se deveria concretizar “no estabelecimento dos preceitos higiénicos, na vigilância e condicionamento das actividades desportivas”. Na XI e última conclusão do congresso, uma nota sobre o desporto competitivo e o estatuto do atleta desportivo: “Só o conceito de amador no desporto é compatível com o transcendente significado deste meio de educação física na formação da pessoa. Deve ser claramente definida a situação dos

indivíduos cuja actividade desportiva constitua modo de vida, a fim de se evitar um «profissionalismo» encoberto que representa a negação dos princípios morais do desporto.”326

De uma breve leitura das conclusões da Secção de Educação Física é possível deduzir as dificuldades observadas ao longo de quase dez anos de vigência do Estado Novo na regulamentação das actividades físicas, na revisão dos programas escolares, na efectiva implementação da obrigatoriedade da educação física em todos os graus de ensino e na resolução dos problemas de apetrechamento material das escolas. A comunicação do Capitão Quintino da Costa, subordinada ao problema da educação física na escola primária elementar, permite detalhar a natureza e a dimensão desses obstáculos. Mesmo reconhecendo “os esforços dispendidos há longos anos pelos poderes públicos”, para Quintino da Costa “a educação física no ensino primário elementar não corresponde ainda de qualquer modo às necessidades da formação da pessoa”. Os programas, continuava o Capitão, apresentavam-se “insuficientes, inadaptados e desarmónicos, inconvenientes agravados pela falta de habilitação dos agentes de ensino e pela dualidade da direcção”. Para além dos problemas curriculares, também a formação dos professores, os primeiros responsáveis pela aplicação dos programas de educação física, era considerada deficitária, já que “o programa de educação física actualmente em vigor nas Escolas do Magistério Primário não corresponde às necessidades de formação do professor primário, por impossibilidade de aplicação futura dos conhecimentos adquiridos, necessariamente muito deficientes por inadaptação do programa ao regime escolar.”327

A par das lacunas na formação dos professores e do desajustamento do conteúdo dos programas curriculares de Educação Física, outro problema fundamental para a concretização do projecto educativo do Estado Novo traduziu- se nos equipamentos escolares e na massificação do acesso ao ensino primário. O censo de 1930 calculava em 3.549.321 o número de analfabetos no país, ou seja 51,9% do total da população residente. Naquele ano, apenas 40% da população com idade igual ou superior a 10 anos poderia ser classificada como alfabetizada,

326 «Relatório e Conclusões da 16.ª Sub-Secção do II Congresso da União Nacional», Boletim do

Instituto Nacional de Educação Física, n.º 1-2-3, 1944.

327 Quintino da Costa, «A educação física na escola primária elementar», Boletim do Instituto

independentemente da sua escolaridade.328 A tentativa de ampliar as qualificações escolares dos portugueses ganhou fôlego em 1940 com o programa de construção de escolas primárias e a reorganização da rede escolar incluída no Plano dos Centenários, onde se anunciava a construção de 7200 escolas primárias em dez anos. Concluído praticamente dez anos depois do previsto, apenas em 1961, o plano ficou muito aquém dos seus objectivos iniciais, tendo sido construídas 3952 escolas, ao longo de praticamente vinte anos.329 Este investimento em equipamentos escolares reflectiu-se, não obstante as limitações apontadas, numa gradual redução das taxas de analfabetismo no país. Em 1940, a alfabetização entre população portuguesa com mais de dez anos ascendia aos 48%, para atingir os 58% em 1950 e os 67% em 1960.330

A evolução do ensino liceal não deixou, no entanto, de denunciar as assimetrias sociais que conduziram este projecto, o qual manteve o papel da escola como instrumento de selecção social. Entre 1930 e 1960 o número de alunos a frequentar o ensino primário duplicou, de perto de 422 mil para cerca de 887 mil, em larga medida devido ao incremento da oferta pública.331 No caso do ensino liceal, o crescimento do número de estudantes resultou da expansão do ensino privado mais do que do investimento público sistemático na rede de liceus. Partindo-se de uma limitada base de 19 268 estudantes liceais em 1930 atingiu-se, em 1960, os 111 821 estudantes. Esta evolução do número de efectivos resultou de um significativo incremento na procura feminina, que, sendo perto de um terço da masculina, em 1930, passou a ser praticamente homóloga em 1960. Em 1930 encontravam-se matriculados nos liceus 14 523 rapazes e 4745 raparigas. Em 1960 esses valores subiram para os 56 367 rapazes e as 55 454 raparigas.. Mais de metade desses estudantes, 65 761, encontravam-se inscritos em estabelecimentos

328António Candeias, Ana Luísa Paz e Melânia Rocha, dir. e coord., Alfabetização e Escola em

Portugal nos Séculos XIX e XX: os Censos e as Estatísticas (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004), 145.

329 Jorge Castanheira de Oliveira, A Educação Física na Escola Primária do Estado Novo

(Coimbra: Tenacitas, 2002), 89.

330 Candeias, Paz, Rocha, Alfabetização e..., 163, 176 e 189.

331No ensino particular assistiu-se, pelo contrário, a uma redução no número de estudantes. De

perto de 51 mil inscritos em 1940 passou-se para 41 mil inscritos em 1960. António Nóvoa, «A educação nacional», em Nova História de Portugal, dir. Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques. vol. XII, Portugal e o Estado Novo (1930-1960), coord. Fernando Rosas (Lisboa: Presença, 1992), 481, 484.

de ensino particulares, quando em 1930 os estudantes do ensino liceal particular, 4289, representavam apenas cerca de um quinto do total.332

Dessa disparidade entre a expansão do ensino primário e a manutenção da vocação tradicional do Liceu, com o seu papel de preparação para o ensino superior, as suas finalidades culturais e o seu papel de selecção e preparação das elites, dá conta o ritmo de crescimento dos liceus e da população liceal em Portugal entre a década de trinta e a década de sessenta. Como refere Fernando Moreira Marques, “no período compreendido entre 1928 (data da criação da Junta Administrativa para o Empréstimo do Ensino Secundário) e 1952 (ano de conclusão dos últimos liceus do Plano de 38), a rede de estabelecimentos liceais mantém, no essencial, a sua matriz estrutural. Os poucos liceus situados fora das capitais de distrito já existiam antes de 1928, com excepção do Liceu de Oeiras. A este, o Estado Novo acrescenta apenas mais dois novos liceus nacionais, em Lisboa e no Porto, limitando-se a reagir ao aumento da população escolar na área de influência dos principais centros políticos, económicos e populacionais do país.”333 Apesar do papel dos renovados edifícios liceais na propaganda do Estado Novo,334 pode considerar-se que “entre 1936 e 1960 (...) se assiste a uma política deliberada de contenção da expansão da rede escolar no ensino liceal público, primeiro, até 1947, através de uma estratégica claramente ‘obstrucionista’, em seguida através de uma estratégia de ‘aliciamento’ para o ensino técnico”.335

O nivelamento por baixo das aprendizagens escolares, consubstanciadas na redução da escolaridade mínima obrigatória para três anos – apenas em 1956 seria de novo reposta em 4 anos – e na edificação de uma escola nacionalista, entendida «principalmente como uma agência, não de transmissão de conhecimentos (instrução) mas de formação da consciência (educação)»,336 dá conta das dificuldades em situar no campo escolar uma política desportiva consistente. Por falta de verbas, ficaram de fora da tipologia das construções das novas escolas primárias, que marcaram o imaginário arquitectónico, educativo e

332 Nóvoa, «A educação...».

333 Fernando Moreira Marques, Os Liceus no Estado Novo: Arquitectura, Currículo e Poder

(Lisboa: Educa, 2003), 60.

334Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 15 Anos de Obras Públicas (1932-1947)

(Lisboa: Comissão Executiva da Exposição de Obras Públicas, 1948).

335 João Barroso, Os Liceus, Organização Pedagógica e Administração (1836-1960) Vol. I

(Lisboa: FCG/JNICT, 1993) 577.

336 Maria Filomena Mónica, Educação e Sociedade no Portugal de Salazar (A escola Primária

político do Estado Novo, equipamentos tão essenciais como as residências escolares ou as cantinas.337 Ao contrário do que se verificou com os Liceus, tanto os poucos que foram construídos de raiz como aqueles, a maioria, que foram objecto de intervenções de requalificação, também os ginásios, tidos como indispensáveis para a implementação dos programas de educação física, se viram excluídos do programa construtivo. Apesar das indicações de Leal de Oliveira, no Congresso da União Nacional de 1934, das conclusões da Secção de Educação Física e Desportos do II Congresso da UN, que se propunha até ampliar o programa de construção de equipamentos desportivos para além da escola, no final da década de quarenta a Mocidade Portuguesa, apesar de reivindicar a construção de ginásios dotados dos aparelhos necessários para o desenvolvimento da educação física, salientava a possibilidade de as aulas daquela disciplina se realizarem nos pátios das escolas, desde que as condições climáticas o permitissem.338

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