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2 A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO NATURAL NO CAMPO CULTURAL

2.1 A UNESCO E O PATRIMÔNIO MUNDIAL

2.1.1 A Inclusão da Natureza no Patrimônio Mundial

A Convenção do Patrimônio Mundial faz referência ao patrimônio cultural e natural. É considerada inovadora porque buscou considerar os dois tipos de patrimônio, tentando dissolver a dicotomia cultura e natureza (BATISSE, 2003). De acordo com Cameron e Rössler (2013), a combinação era pouco comum na década de 1970 quando a maior parte dos países tratavam em departamentos separados os assuntos relacionados à cultura e à natureza. E isso ocorria mesmo dentro da Unesco, que possuía setores diferentes para tratar desses dois temas que eram de sua competência.

A convergência dos dois campos na Convenção de 1972 não foi um acontecimento espontâneo, muito pelo contrário, essa associação não foi fácil de ser estabelecida no nível internacional. Primeiro porque a elaboração de uma Convenção envolve diversas fases e atores, com diferentes perspectivas e interesses. Segundo porque as etapas internas na própria Unesco até que se chegue ao conteúdo e ao texto final de uma Convenção são numerosas e longas, são fundamentadas em estudos técnicos, interesses diversos e discussões entre especialistas e representantes políticos. Terceiro porque, no caso da Convenção do Patrimônio Mundial, em especial, duas iniciativas, em paralelo, começaram a

ser delineadas, sendo que as duas, em maior ou menor grau, abordavam tanto o patrimônio cultural como o natural (CAMERON e RÖSSLER, 2013). Uma das propostas estava sendo elaborada pela antiga divisão dos Museus e Monumentos na Unesco e dava ênfase aos monumentos históricos. Outra, partiu da UICN e dava ênfase aos parques nacionais e ecossistemas.

A proposta da UICN estava baseada na Lista das Áreas Protegidas e Reservas Equivalentes, de 1962. Em 1965, ano da Cooperação Internacional, foi definida na Conferência da Casa Branca, a proposta de estruturar um World Heritage Trust, isto é, promover a proteção daqueles sítios de grande valor para a humanidade, por meio da cooperação entre os países. Nesse sentido, Cameron e Rössler (2011) atribuem aos Estados Unidos e à tal Conferência um papel importante para o estabelecimento do conceito do Patrimônio Mundial, uma vez que a ideia de formar uma cooperação entre os países para a proteção de sítios naturais foi incorporada à proposta da UICN. A convocação para a Conferência de Estocolmo, em 1972, motivou a UICN a elaborar um instrumento para a conservação do patrimônio mundial, com destaque para as áreas naturais, mas que também incluiria o patrimônio cultural.

Batisse (2003) acredita que se não fossem os esforços para unificação da proteção do patrimônio cultural e natural sob uma única convenção, haveria, no final de 1972, uma convenção intitulada Patrimônio Mundial, que teria sido adotada na Conferência de Estocolmo e não faria mais do que menções modestas ao patrimônio cultural, e uma segunda Convenção que trataria estritamente dos bens culturais, que teria sido adotada pela Conferência Geral de Paris, como estava previsto desde o início (BATISSE, 2003).

A opção por duas convenções poderia ser mais simples, de acordo com Batisse (2003), pois haveria a vantagem de cada uma delas exigir apenas uma esfera da administração dos Estados, o que facilitaria os trâmites. Além disso, os Comitês e delegações dos Estados seriam compostos por especialistas de único assunto, o que facilitaria as discussões. O autor ainda argumenta que a existência de duas convenções poderia mobilizar fundos maiores. Apesar disso, para Batisse (2003, p. 41, tradução nossa) a inclusão da natureza na Convenção do Patrimônio Mundial foi positiva, pois “introduziu esta nova ideia de que a natureza é também parte de nosso patrimônio e não apenas o nosso meio”. Além desse reconhecimento, é preciso entender a Convenção como o produto de um contexto mais amplo conduzido por uma série de mudanças na forma com que a sociedade e a ciência encaram, se relacionam e se apropriam da natureza, conforme discutido no capítulo 1.

As discussões para a união do patrimônio natural e cultural em um instrumento foram intensas. Nesse processo, a influência dos Estados Unidos foi significativa para a formatação do texto final da Convenção. Pelo fato de possuir áreas naturais expressivas, o país tinha interesse em uma convenção internacional que abordasse o patrimônio natural. Em função de ter sido o principal colaborador da Campanha de Núbia, era esperada a participação dos Estados Unidos para a constituição do fundo de proteção ao patrimônio mundial. Também era desejada a participação de outros países desenvolvidos e com importantes áreas naturais, tais como a Austrália e o Canadá.

Tendo em vista a diversidade das propostas, a Unesco deixou claro que a conservação do patrimônio cultural e natural era uma questão de seu interesse e que estaria disposta a melhorar e ampliar seu projeto para incluir o patrimônio natural. Dessa forma, a Unesco não autorizou que fosse produzido um documento internacional sobre o patrimônio mundial na Conferência de Estocolmo (BATISSE, 2003). Assim, em junho de 1972, essa Conferência apenas reconheceu que os Estados deveriam considerar a possibilidade de colocar em operação um sistema de proteção do patrimônio mundial, no qual os países seriam capazes de obter assistência financeira e técnica da comunidade internacional para proteger seu patrimônio nacional de valor universal (ONU, 1972).

Em novembro de 1972, a Conferência Geral da Unesco propôs a Convenção do Patrimônio Mundial, que para dar igualdade à proteção do patrimônio cultural e natural, estabeleceu que o patrimônio cultural seria formado pelos

Os monumentos: obras arquitetônicas, esculturas ou pinturas monumentais, objetos ou estruturas de caráter arqueológico, inscrições, grutas e conjuntos de elementos, que possuem valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;

Os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas, que, em razão de sua arquitetura, de sua unidade ou de sua integração à paisagem, possuem valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;

Os sítios: obras do homem ou obras conjuntas do homem e da natureza, assim como as áreas que incluem os sítios arqueológicos, de valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico (UNESCO, 1972, tradução nossa).

E estabeleceu que o patrimônio natural seria formado pelos

Os monumentos naturais constituídos por formações físicas ou biológicas ou por conjuntos dessas formações que possuem valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico;

As formações geológicas e fisiográficas e as zonas estritamente delimitadas constituintes de habitat de espécies animais e vegetais ameaçadas, que possuem valor universal excepcional do ponto de vista da ciência ou da conservação;

Os sítios naturais ou as áreas naturais estritamente delimitadas, que possuem valor universal excepcional do ponto de vista da ciência, da conservação ou da beleza natural (UNESCO, 1972 tradução nossa).

Vale destacar que os representantes dos Estados Unidos propuseram emendas ao texto da Convenção e pressionaram para que os bens naturais fossem definidos de forma clara e que tivessem a mesma proteção e o mesmo prestígio que os bens culturais (CAMERON e RÖSSLER, 2013). No fim das contas, o equilíbrio entre os bens culturais e naturais se tornou um dos princípios da Convenção, e está inclusive presente no emblema do Patrimônio Mundial (Figura 2.1) adotado pelo Comitê em 1978, que simboliza a interdependência dos bens culturais e naturais. O quadrado central representa as criações humanas e o círculo representa a natureza, sendo que todos estão ligados e protegidos sob o escrito do Patrimônio Mundial (UNESCO, 2015c).

Figura 2.1 - Emblema do Patrimônio Mundial

Fonte: Unesco (2015c).

O reconhecimento da interdependência dos elementos culturais e naturais abriu a possibilidade para a reflexão sobre os bens mistos e as paisagens culturais que, apesar de não terem sido previstos na Convenção, passaram a ser aceitos como categorias do patrimônio cultural.

As discussões sobre a inclusão das Paisagens Culturais na Convenção tiveram início na década de 1980 pois, alguns países, em especial os europeus, apontaram que em seus territórios, já bastante modificados ao longo de séculos, não havia uma natureza selvagem ou primitiva, mas sim uma natureza antropizada. Esses países possuíam paisagens rurais excepcionais, mas que não se encaixavam nos critérios estabelecidos para o patrimônio natural. Com base nessas ideias foi proposta a categoria de patrimônio misto e de paisagem cultural, que reuniria os elementos naturais e aqueles construídos pelo engenho humano.

Por meio da categoria da paisagem cultural poderiam ser protegidos tanto os grandes terraços de arroz filipinos quanto os vinhedos franceses. A partir de 1993, a paisagem cultural passou a ser aceita nas candidaturas ao patrimônio mundial (UNESCO, 1993). Como essa categoria foi somada ao patrimônio cultural ou misto, contribuiu para o aumento dos

desequilíbrios entre o número de bens reconhecidos como patrimônio cultural e como natural, assunto que será abordado mais adiante.