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A Lista do Patrimônio Mundial: a busca por equilíbrio e representatividade

2 A PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO NATURAL NO CAMPO CULTURAL

2.1 A UNESCO E O PATRIMÔNIO MUNDIAL

2.1.3 A Lista do Patrimônio Mundial: a busca por equilíbrio e representatividade

Desde a criação da Lista do Patrimônio Mundial a Unesco já se preocupava com equilíbrio das inscrições, a fim de que houvesse harmonia entre os tipos dos bens (natural ou cultural) e a distribuição geográfica. Mesmo assim, em 1978, primeiro ano de operação, foram inscritos 8 bens culturais e 4 bens naturais. Quatro regiões foram beneficiadas: a América Latina, a América Anglo-Saxônica, a Europa e a África40. No ano seguinte, em 1979, a concentração de bens culturais se acentuou ainda mais, pois dos 44 novos bens foram inscritos: 34 como culturais, 7 como naturais e 3 como misto. Essa tendência foi mantida nos anos seguintes. O Gráfico 2.2 mostra a evolução das inscrições ao longo das quatro décadas.

40 A Unesco divulga seus dados fazendo referências a 5 regiões: África, Estados Árabes, Ásia e Pacífico, Europa

Gráfico 2.2 - Evolução das inscrições do Patrimônio Cultural, Natural e Misto

Fonte: Unesco (2015b). Organizado pela autora.

O Gráfico 2.2 destaca que houve aumento pronunciado de inscrições de bens culturais em relação às outras categorias de patrimônio. O Gráfico 2.3 apresenta o percentual de bens inscritos até 2015, de acordo com os tipos: cultural, natural e misto. Quando observamos a distribuição percentual fica bastante evidente a concentração de bens culturais.

Gráfico 2.3 - Desequilíbrios entre Patrimônio Cultural, Natural e Misto

Fonte: Unesco (2015b). Organizado pela autora.

A Europa41 tem um peso relevante nessa disparidade, os 24 Estados-membros europeus possuíam 402 bens culturais inscritos na Lista – o que representava 50% do total dos bens culturais. Essa mesma região possuía 41 bens naturais, sendo que 09 deles estavam em territórios europeus ultramarinos – representando 20,8% do total do patrimônio natural (UNESCO, 2015b).

41 Segundo a classificação da Unesco, também contam como parte da Europa os países do Cáucaso (Geórgia,

Armênia e Azerbaijão), a Turquia, Israel e Rússia. 0 200 400 600 800 1000 1200 Cultural Natural Misto Total 78% 19% 3% Cultural Natural Misto

As outras regiões apresentam melhor distribuição entre patrimônio natural e cultural. A África42, por exemplo, tem a situação mais equilibrada: 48 bens culturais e 37 bens naturais, pertencentes a 33 Estados-membros (UNESCO, 2015b).

Sobre esse desequilíbrio entre patrimônio cultural e natural poderíamos inferir que os Estados-membros, por razões que lhes são próprias, vão privilegiar a proteção do patrimônio cultural e demandar, sobretudo, a inscrição de bens culturais. Cameron e Rössler (2013) apontam que na década de 1990 entre 80 e 90% das candidaturas apresentadas pelos Estados eram de bens culturais. Outra explicação para o número maior de bens culturais reside no fato de existirem outros instrumentos e formas de cooperação internacional para tratar da proteção das áreas naturais (como por exemplo, as Reservas da Biosfera e os Sítios Ramsar). Dessa forma, os sítios naturais estariam incluídos em outras formas de proteção e seriam menos cotados para a Lista do Patrimônio Mundial.

Esse desequilíbrio também pode ser explicado pela ausência de sítios de natureza selvagem, beleza paisagística e importância geológica expressiva o suficiente para serem considerados pela Unesco como bens de valor universal excepcional. Outra explicação, pode ser a falta de instrumentos adequados de proteção devido a própria configuração dos sítios naturais que, em geral, são mais extensos que os culturais e demandam mais recursos. Além disso, a inscrição dos sítios naturais na Lista do Patrimônio Mundial implica um rigoroso controle desses territórios e impede a implementação de muitas atividades que poderiam alterá-los.

A Lista apresenta outro desequilíbrio que nos importa entender e analisar: o desequilíbrio geográfico. A análise visual da Figura 2.2 ressalta a concentração de inscrições na Europa. O Gráfico 2.4 mostra a distribuição do patrimônio mundial por continentes e o Gráfico 2.5 por nível de desenvolvimento socioeconômico.

42 Segundo a classificação da Unesco não contam como parte da África os países do Magreb, pois estes são

Gráfico 2.4 - Distribuição do Patrimônio Mundial, segundo os Continentes

Fonte: Unesco (2015b). Organizado pela autora.

Gráfico 2.5 - Distribuição do Patrimônio Mundial, segundo o desenvolvimento econômico

Fonte: Unesco (2015b). Organizado pela autora.

Interessante ressaltarmos que o Gráfico 2.4 mostra que o Continente Europeu continua concentrando os bens reconhecidos como patrimônio mundial, enquanto que o Gráfico 2.5 mostra a distribuição que, a priori, pode parecer equilibrada entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, mas esconde que o grupo dos países desenvolvidos é formado por 51 países e o dos em desenvolvimento por 112 países.

Como explicar essa desigualdade entre regiões? Poderíamos levantar algumas suposições. Primeiro, podemos inferir que as regiões pouco representadas podem não possuir bens culturais e naturais suficientemente importantes para satisfazerem os critérios relativos ao valor universal excepcional. Scifoni (2006a, p. 03) discute essa hipótese e tece a seguinte afirmação, com a qual concordamos:

os números da lista não devem ser interpretados como produto de uma maior importância da história europeia frente às demais regiões do mundo ou de uma maior disponibilidade de bens de relevância, mas sim como reflexo da capacidade e da disposição interna de cada estado-parte no trato da questão.

0 100 200 300 400 500

Oceania África América Ásia Europa

Misto Natural Cultural 0 100 200 300 400 500 600

Países Desenvolvidos Países em Desenvolvimento

Mistos Natural Cultural

Outra explicação seria a de que as regiões pouco representadas na Lista possuam bens significativos, mas talvez não estejam suficientemente preservados ou então não possuam instrumentos jurídicos, científicos, técnicos, administrativos e financeiros que atendam as determinações estabelecidas pela Unesco para a inscrição na Lista, uma vez que nem todos os Estados têm condições para preparar e dispor de todas essas medidas. Ou então, podemos apontar a falta de capacidade técnica dos Estados para a elaborar os dossiês de candidatura, mesmo que exista assistência internacional, caso seja interesse do país.

Outra explicação para a desigual distribuição do patrimônio mundial pode estar relacionada com a noção de patrimônio. A maneira como a sociedade ocidental aborda o patrimônio cultural serviu como base para a fundamentação da Convenção de 1972 e direcionou as atividades da Unesco, pelo menos até os anos 1990, desfavorecendo a visão plural de patrimônio e, em especial, causando a dificuldade para os Estados orientais inscrever seus bens, uma vez que a autenticidade exigida impedia a inscrição de edifícios produzidos em materiais perecíveis, como a madeira, que exigem restaurações constantes e ferem o valor da autenticidade (CHOAY, 2006).

Essa desigualdade espacial também pode ser explicada pela falta de interesse de muitos países na Convenção. Para alguns países a Lista do Patrimônio Mundial não é uma questão capital, como é o caso da Grécia e do Egito, que possuem bens inscritos, mas poderiam ter seu número de inscrições ampliado devido à quantidade de bens culturais herdados de suas civilizações pretéritas (GRAVARI-BARBAS, 2015). Dessa forma, a quantidade de bens reconhecidos como patrimônio mundial de um país pode ser resultado dos projetos territoriais que esse Estado desenvolve, pois o que está em jogo não é apenas a participação em uma rede internacional de proteção do patrimônio mundial. O território também é valorizado em função da marca “patrimônio mundial” e alguns países aspiram beneficiar-se dessa notoriedade.

Scifoni (2006a, p. 03) afirmou existir “uma inquestionável hegemonia europeia” na Lista do Patrimônio Mundial. Quando analisamos os dados de 2015 dos 10 países com maior número de bens inscritos, constatamos que, salvo algumas alterações, a Europa continua a predominar, conforme evidenciado no Quadro 2.4. Para Costa (2010, p.82) os desequilíbrios geográficos presentes na Lista são a expressão de “nossa sociedade altamente complexa, fragmentada e extremamente desigual”.

Quadro 2.4 - Países com maior número de inscrições na Lista do Patrimônio Mundial Países Nº de Inscrições Itália 51 China 48 Espanha 44 França 41 Alemanha 40 México 33 Índia 32 Reino Unido 29 Rússia 26 Estados Unidos 23

Fonte: UNESCO (2015a). Organizado pela autora.

A cartografia do Patrimônio Mundial apresentada na Figura 2.2 permite identificar certa correspondência com os espaços luminosos (SANTOS e SILVEIRA, 2006). Os espaços luminosos são aqueles que “acumulam densidades técnicas e informacionais”, apresentam grande fluidez e estão melhor inseridos na ordem mundial e, portanto, são capazes de participar de convenções internacionais caso elas ofereçam vantagens aos seus territórios. Por outro lado, os espaços opacos (SANTOS e SILVEIRA, 2006) constituem aqueles que estão no hiato das redes, ou seja, são espaços pouco servidos de redes informacionais e com participação frágil ou tímida na ordem mundial, o que se reflete também na baixa participação na Convenção do Patrimônio Mundial.

Os desequilíbrios geográficos, cronológicos e tipológicos sempre foram objeto de preocupação para a Unesco. A década de 1990 foi marcada por tentativas promovidas pelo Comitê do Patrimônio Mundial em tornar a Lista mais equilibrada e credível, o que não resultou em uma melhora de representatividade, conforme pôde ser constatado nos gráficos e mapas apresentados.

O Estudo Global consistiu em uma pesquisa desenvolvida pelo Icomos, entre 1987 e 1993, para identificar os desequilíbrios da Lista. Tal Estudo reconheceu que a Convenção foi elaborada com base em uma noção estreita de patrimônio cultural, próxima à arquitetura monumental e aos locais de grande antiguidade e, dessa forma, excluía as culturas vivas, as paisagens e o patrimônio arqueológico e etnológico. Em 1994, os especialistas reunidos para elaborar a Estratégia Global propuseram uma noção de patrimônio cultural mais abrangente, antropológica e multifuncional, que abordasse novas temáticas como “os modos de ocupação do solo e do espaço, entre os quais estão o nomadismo e as migrações, as técnicas industriais, as técnicas de subsistência, a gestão da água, as rotas e a circulação dos homens e dos bens, o habitat tradicional e seu ambiente” (UNESCO, 1994, p.05, tradução nossa).

Essa mudança mostra que a Unesco, bem como o Icomos e a UICN, acompanharam as transformações em curso nas ciências (arqueologia, antropologia, história da arte). Além disso, deixaram de se concentrar apenas nos monumentos isolados e passaram a considerar outros aspectos para a constituição do valor do patrimônio cultural ou natural, inclusive os aspectos imateriais do patrimônio. Os órgãos passaram a considerar “os conjuntos culturais complexos e multidimensionais que traduzem no espaço as organizações sociais, os modos de vida, as crenças, os saberes e as representações das diferentes culturas passadas e presentes em todo o mundo” (UNESCO, 1994, p. 03, tradução nossa). Nesse sentido, a Unesco teve papel importante no alargamento da noção de patrimônio cultural ao adotar diversas definições nas suas recomendações e convenções internacionais.

O patrimônio mundial passou a incorporar novas sensibilidades, que deveriam também estar representadas na Lista. Para tal, os critérios de seleção dos bens foram reavaliados. Assim, a Estratégia Global visou corrigir os desequilíbrios relativos aos tipos de patrimônio (cultural, natural ou misto), às regiões, às culturas e às épocas, a fim de que a Lista pudesse se tornar de fato representativa, equilibrada e credível. O Estudo concluiu que a Europa estava super-representada em relação ao resto do mundo. Assim como as cidades históricas e edifícios religiosos estavam super-representados em comparação aos outros bens. O cristianismo estava super-representado em comparação as outras religiões e espiritualidades; os períodos históricos em relação à pré-história e ao século XX; a arquitetura elitista em comparação à arquitetura popular. Além disso, concluiu que todas as culturas vivas estavam muito mal representadas (UNESCO, 1994).

A partir desse diagnóstico, a Unesco e passou a interferir nas candidaturas, seja limitando as propostas dos Estados mais representados, seja encorajando os Estados menos representados a fazer parte da Lista. Nesse sentido, destacamos as diretrizes presentes na Resolução de 1999 e a Declaração de Budapeste em 2002.

Com a Resolução sobre os meios de assegurar uma Lista do Patrimônio Mundial Representativa, de 1999, o Comitê criou duas linhas de estratégias para controlar as novas inscrições na Lista, uma voltada para os países pouco representados e outra para os países super-representados. Para incentivar as inscrições dos países pouco representados, o Comitê criou grupos de ajuda técnica para a elaboração dos dossiês de candidatura e propôs a realização de estudos temáticos regionais, como estudos da África e do Pacífico, para identificar possíveis bens a serem inscritos. Além disso, o Comitê convidou os Estados a prepararem suas Listas Indicativas, consolidarem parcerias de cooperação técnica e

participarem das reuniões do Comitê do Patrimônio Mundial para adquirirem conhecimento de como o processo de candidatura corre até que a inscrição se efetive (UNESCO, 1999b).

Para os países super-representados, o Comitê orientou que espaçassem ou suspendessem voluntariamente suas candidaturas. Ainda propôs que tais Estados candidatassem bens em que fosse possível a cooperação com as candidaturas apresentadas por um Estado com poucas inscrições (UNESCO, 1999b).

Outra proposição do Comitê, comum a todos os Estados, foi a de dar prioridade aos bens pouco representados, em especial, àqueles que destacassem as sociedades ou a interação dos seres humanos com o meio ambiente. O Comitê também impôs a limitação de 2 bens por país e o total de 45 propostas de inscrição por ano, respeitando a ordem de prioridades para inscrições:

i) dos Estados sem bens inscritos na Lista;

ii) de bens de Estados que possuem até 3 bens inscritos;

iii) de bens anteriormente excluídos devido ao limite anual de 45 propostas; iv) de bens do patrimônio natural;

v) de bens mistos;

vi) de bens fronteiriços/transnacionais;

vii) de bens dos Estados da África, do Pacífico e do Caribe; viii) dos Estados que assinaram a Convenção nos últimos 10 anos;

ix) dos Estados que não apresentaram candidaturas nos últimos 10 anos ou mais (UNESCO, 2015c, tradução nossa).

A Declaração de Budapeste, em 2002, foi outro esforço na tentativa de equilibrar a Lista, especialmente no que diz respeito à distribuição geográfica. Segundo esse documento, o Comitê do Patrimônio Mundial deveria ser norteado por quatro princípios: a credibilidade, a conservação, a capacidade e a comunicação (UNESCO, 2002). Durante a 16ª Sessão da Assembleia Geral foi adicionado o princípio de comunidade, cujo objetivo é valorizar o papel das comunidades na implementação da Convenção de 1972 (UNESCO, 2007).

Todas as correções de rumo e redefinições de estratégias apresentadas nos 20 ou 30 anos após a entrada em vigor da Convenção de 1972 mostram como esta foi evoluindo e revela que muitas das questões discutidas não tinham como terem sido antecipadas no momento em que a Convenção foi redigida. As tentativas de correção de rumo indicam que, para a Unesco, tanto a Convenção quanto a Lista do Patrimônio Mundial não funcionam do modo esperado. Apesar de todos os esforços, como a Estratégia Global e a Declaração de Budapeste, a Lista não é hoje mais equilibrada do que ela esteve no momento em que foram constatados os desequilíbrios, há pelo menos 30 anos.

Apesar de a existência de bens notáveis no território dos países ser um elemento considerável para a inscrição na Lista do Patrimônio Mundial, o componente político e o

econômico dos países são, até o momento, fundamentais. Isso explica em muitos casos a sobreposição entre os espaços luminosos e países com grande número de bens inscritos na Lista do Patrimônio Mundial. O componente político está diretamente relacionado com a capacidade dos países em se inserirem na ordem internacional, tanto no que diz respeito a sua própria organização frente à necessidade de estabelecer relações com outros países e órgãos internacionais, quanto em garantir (ou barganhar) por meio de negociações os benefícios que essas relações podem trazer para seus territórios.

O componente econômico pode ser apontado como a principal causa da corrida pela inscrição na Lista do Patrimônio Mundial na medida em que os países veem a Lista como uma importante estratégia para o desenvolvimento turístico, já que a marca patrimônio mundial se tornou uma garantia de qualidade dos bens culturais e naturais e é utilizada pelo marketing turístico para aumentar o prestígio e a atratividade dos destinos (MORISSET e DORMALS, 2011). A faceta economicista da Convenção promove sua mercantilização e turistificação (COSTA, 2010), um fenômeno “do nosso tempo que curiosamente os autores da Convenção não tinham pensado" (BATISSE, 2003, p. 39).