• Nenhum resultado encontrado

O Brasil teve a inserção da violência na agenda do Sistema Único de Saúde em 2001, através da Portaria n.º 737/GM, de 16 de maio de 2001, que instituiu a “Política Nacional de Redução da Mortalidade por Acidentes e Violências”. Essa Política “estabelece diretrizes e responsabilidades institucionais, nas quais estão contempladas e valorizadas medidas inerentes à promoção da saúde e à prevenção desses eventos, mediante o estabelecimento de processos de articulação com diferentes segmentos sociais” (MS, 2001, p. 2), com o objetivo de reduzir a mortalidade por acidentes e a violência no Brasil. O Ministério da Saúde justifica que a inclusão do tema violência pela saúde faz parte de um conceito mais ampliado de saúde, abrangendo “não só as questões médicas e biomédicas, mas também aquelas relativas a estilos de vida e ao conjunto de condicionantes sociais, históricos e ambientais nos quais a sociedade brasileira vive, trabalha, relaciona-se e projeta seu futuro” (BRASIL, 2001, p. 3). Especificamente com relação à violência, o documento contempla a existência das várias formas de violência (física, sexual, psicológica e institucional) contra segmentos mais vulneráveis da população como a criança, o adolescente, o jovem, a mulher e o idoso e enfoca o impacto dessas violências como agravos para a saúde. Aponta que na infância o ambiente doméstico é o local principal dos agravos e, na adolescência, é o espaço extradomiciliar, classificando por isto a violência em

violências domésticas (maus-tratos físicos, abuso sexual e psicológico, negligência e abandono) e violências extra-domiciliares (exploração do trabalho infanto-juvenil e exploração sexual, além de outras originadas na escola, na comunidade, nos conflitos com a polícia, especialmente caracterizados pelas agressões físicas e homicídios), bem como as violências auto-infligidas (como a tentativa de suicídio) (BRASIL, 2001, p. 10).

O Ministério da Saúde enfatiza nesse documento a gravidade desse tipo de violência, pelas consequências imediatas ou tardias que desencadeiam na criança e no adolescente. Coloca por isso a violência contra a criança e o adolescente como alvo prioritário de atenção por estar relacionada com a violência social, estando na gênese de sérios problemas, como população de rua, envolvimento

em atos infracionais e o aumento da exploração sexual decorrente de necessidade econômica e de sobrevivência desses indivíduos (BRASIL, 2001).

Outro aspecto destacado são as violências sofridas por mulheres, entendendo-as como resultante de relações de gênero estruturadas em bases desiguais. Em tais casos o atendimento a ser prestado às mulheres pelos serviços de saúde deverá contemplar o fortalecimento delas, de modo a identificarem soluções “em conjunto com a equipe multiprofissional dos serviços, para a situação vivenciada, assim como para a prevenção de comportamentos violentos, buscando-se romper os elos dessa cadeia” (MS, 2001, p. 10).

No caso de nossa pesquisa, a violência contra mulher, como revela E4, é identificada, mas não notificada pelos profissionais, principalmente pelos profissionais ACS. Uma das razões que pode explicar tal prática está ligada ao medo de envolvimento legal dos profissionais ao terem que notificar um caso de violência, pois terão que assumir todos os desdobramentos do caso, como foi relatado por 62,2% dos profissionais entrevistados na pesquisa de Luna et al. (2010).

E4- [...] Acontece condição de violência e espancamento contra mulher, mas de violência sexual ainda nesses seis meses que eu to aqui ainda não presenciei, entendeu. Já tive em outro local.

Resultante da Política Nacional de Redução da Mortalidade por Acidentes e Violências, o Ministério da Saúde lançou a Portaria nº 1.968/2001 (Mistério do Estado da Saúde, 2001), tornando obrigatório em 2001, para todas as instituições de saúde pública e/ou conveniadas ao Sistema Único de Saúde, em todo o território nacional, o preenchimento da Ficha de Notificação Compulsória e seu encaminhamento aos órgãos competentes (Conselhos Tutelares ou Varas da Infância). Em 2001 o Ministério da Saúde lançou a norma técnica nº 167: “Notificação de maus-tratos contra crianças e adolescentes pelos profissionais de saúde: um passo a mais na cidadania em saúde” (BRASIL, 2002), que orientava os profissionais de saúde sobre a notificação compulsória, fazendo cumprir os cuidados e a proteção de crianças e adolescentes previstos na Constituição Federal Brasileira (BRASIL, 1988) e, no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), com relação à obrigatoriedade da notificação de maus-tratos. A notificação da violência contra crianças e adolescentes foi também respaldada na Portaria nº 2.406/GM (05/11/2004) do Ministério da Saúde, que institui o serviço de notificação, aprova o instrumento e o fluxo de atendimento.

Em 2011, o Ministério da Saúde, em sua Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011, define as terminologias adotadas em legislação nacional, conforme o disposto no Regulamento Sanitário Internacional de 2005, a relação de doenças, agravos e eventos em saúde pública de notificação compulsória em todo o território nacional e estabelece fluxo, critérios, responsabilidades e atribuições aos profissionais e serviços de saúde. Essa portaria estabelece em seu 2º artigo que deverá haver notificação compulsória referente às doenças, agravos e eventos de importância para a saúde pública de abrangência nacional em toda a rede de saúde, pública e privada, constantes no anexo I da Lista de

Notificação Compulsória. Nessa lista está inserida a notificação de violência doméstica, sexual e/ou outras violências. Passa a ser obrigatória em toda rede de saúde a notificação compulsória, não apenas pelas unidades sentinelas, como era anteriormente, estabelecendo no parágrafo 5º que os casos suspeitos ou confirmados da Listadeverão ser registrados no Sinan Net no prazo máximo de 7 (sete) dias, a partir da data de notificação. Em seu 7º parágrafo explicita que a notificação compulsória é obrigatória a todos os profissionais de saúde: médicos, enfermeiros, odontólogos, médicos veterinários, biólogos, biomédicos, farmacêuticos e outros no exercício da profissão, bem como os responsáveis por organizações e estabelecimentos públicos e particulares de saúde e de ensino.

Mesmo sendo a notificação compulsória em toda rede de saúde, ela não acontece nas equipes pesquisadas, pois nenhum profissional relatou ter feito uma notificação como exemplificado na fala abaixo de E1, apesar de esse profissional trabalhar a vários anos na ESF. Dados semelhantes foram encontrados na pesquisa de Luna et al. (2010), confirmando que a de notificação de maus-tratos não faz parte ainda da rotina dos profissionais das equipes da ESF.

P- Você disse que no curso que você fez tem uma ficha de notificação. Você a tem preenchido aqui [no ESF]?

E- Nunca preenchi...

P- Quem preencheria a ficha, o agente comunitário, você?

E1- Quem atende, quem realmente notificou aquele caso, quem atendeu aquele caso.

De acordo com o instrutivo de notificação de violência doméstica, sexual e outras violências (BRASIL, 2011, p.16), o preenchimento da ficha de notificação deve ser feito por quem atendeu a vítima. Nas situações de violência contra crianças e adolescentes uma comunicação ou uma terceira cópia da ficha de notificação deve ser enviada ao Conselho Tutelar, ou autoridades competentes (Ministério Público, delegacias, outros), conforme o ECA (BRASIL, 1990). No caso de violência contra pessoas idosas, uma comunicação ou cópia deverá ser encaminhada às autoridades competentes (Ministério Público, delegacias, outros).

A notificação das violências seja contra mulher ou contra crianças e adolescentes, idosos, ou qualquer outra pessoa, além de ser obrigatória por lei como vimos, é, em primeiro lugar, uma ação pontual de proteção à vítima, além de ser um instrumento em epidemiologia que ajuda a dimensionar o problema para o desenvolvimento de Políticas Públicas de combate às violências (FALEIROS, 2000; Brasil, 2011).

Todavia, como vimos, há uma subnotificação dos casos de violência detectada neste estudo. Uma das razões apontadas por Luna et al. (2010), que inclusive corrobora uma de nossas hipóteses de pesquisa, é a ausência de suporte institucional eficaz. Isso faz com que o profissional tenha medo de admitir a existência de casos de violência na área, se resguardando com relação à notificação de casos, como relata E4, que é também gestor de uma equipe da ESF, quando indagado sobre os encaminhamentos que daria para suspeita ou confirmação de casos:

E4- É igual eu falei antes, tem o pessoal do CRAS. Já comunica a eles, entendeu, e pede sigilo também porque as colegas da gente, as agentes comunitárias de saúde presenciam muito esse tipo de agressão, tanto a violência contra a mulher, como o abuso. Eles não falam por medo, entendeu? Porque geralmente a pessoa que faz isso não é normal, a pessoa tem um transtorno [...].

Essa falta de suporte institucional, na forma de supervisão de casos, por exemplo, colabora para manutenção de crenças errôneas, afetando a prática dos profissionais, como fica ilustrado na fala de E4, quando associa a presença de doença mental ao autor da violência contra mulher, ou abuso sexual contra crianças e adolescentes. Aqui transparece todo um desconhecimento e medo de um profissional da área da saúde com relação à área da saúde mental e que poderia ser tema para a capacitação.

Podemos considerar, então, que existe uma lacuna entre o arcabouço legal, jurídico e a política e a prática. Uma das formas para superação das dificuldades de atuação dos profissionais diante da violência contra crianças e adolescentes, que aparece na pesquisa de Silva et al. (2009, p. 60), é a construção de estratégias para o enfrentamento das violências junto com as instituições, como as capacitações por exemplo.

Outline

Documentos relacionados