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A capacitação dos profissionais para o enfrentamento da violência: preencher protocolos

O Ministério da Saúde, no documento da “Política Nacional de Redução da Mortalidade por Acidentes e Violências” (BRASIL, 2001), salienta ser um grande desafio para o setor de saúde o enfrentamento da violência, pela dificuldade de se diagnosticar tal evento “por fatores de ordem cultural, pela falta de orientação dos usuários e dos profissionais dos serviços, que têm receio em enfrentar os desdobramentos posteriores” (BRASIL, 2001, p. 10). Por isso, essa política contempla a capacitação de profissionais da saúde para “identificar[em] maus-tratos, acionar[em] os serviços

existentes visando à proteção das vítimas e acompanhar[em] os casos identificados” (BRASIL, 2001, p. 18).

Em nossa pesquisa, quando indagados sobre o conhecimento que tinham acerca da violência sexual contra crianças e adolescentes, principalmente os médicos, disseram ter informações por leituras e na prática. Apenas um agente comunitário disse não ter informações sobre o assunto. Um enfermeiro e dois auxiliares de saúde citaram a capacitação oferecida pela Secretaria de Saúde do município. A interpretação dos profissionais investigados acerca da capacitação recebida foi protocolar, por ter como objetivo principal o preenchimento da ficha de notificação, exemplificada na fala de E1:

E1- Já li, mas capacitação que eu me lembre, eu participei de uma pela Secretaria de Saúde, e já tem um tempo. Orientou como era feito o preenchimento do papel, pra onde você tinha que mandar a vítima, como era o fluxo. Mas não é um tema que é feita capacitação continuamente não. E1- [...] a gente acaba aprendendo na prática.

A2- E... eu já tive um treinamento na secretaria de saúde , que aliás eu não sei se posso chamar de treinamento, foi alguma coisa que eles passaram pra gente. A2- foi só um dia...

Esse entendimento dos profissionais acerca da capacitação não é contrário à informação dada pela coordenadora da ESF (E2), que entende ter havido uma capacitação com foco no preenchimento da notificação compulsória, como vemos abaixo:

E2- [...] Então eles tiveram capacitação de como tentar lidar com essa situação, o que precisa e quem que eles deveriam estar acionando pra ajudar a resolver essa situação. Então eles são capacitados, os enfermeiros e os médicos, foram capacitados, a respeito...

P- O foco da capacitação foi o preenchimento da ficha?

E2- Foi mais o preenchimento da ficha. O preenchimento da ficha e pra quem eles tinham que remeter; foi mais o preenchimento da ficha.

Um dado que diverge da fala da coordenadora está relacionado ao número de profissionais capacitados. Nenhum dos 02 (dois) médicos citou a capacitação, apesar de já trabalharem no ESF na época em que foi oferecida pela SMS, o que nos leva a crer que não participaram. A capacitação foi citada por 01 (um) enfermeiro e 02 (dois) agentes comunitários de saúde. Além disso, pela fala de E1, a duração da capacitação foi de apenas um dia e ocorreu há dois anos. Resumindo, houve uma “capacitação” de breve duração (um dia), poucos profissionais participaram (de 09 profissionais entrevistados, apenas 03 a citaram), e seu objetivo foi interpretado como protocolar. Esses dados apontam que a capacitação não foi eficiente na visão dos profissionais para dar conta da complexidade e amplitude do fenômeno da violência seja sexual contra crianças e adolescentes, ou de

gênero. Essa visão crítica fica explícita na fala de A2: [...] não sei se posso chamar de treinamento, foi alguma coisa que eles passaram pra gente.

De acordo com Santos; Dell´Aglio (2010, p. 334) “é necessária uma capacitação permanente, com atualizações sistemáticas, a respeito do que se tem produzido em termos de conhecimento nessa temática”, para que o profissional se sinta qualificado e amparado. O documento “Saúde da Família: uma estratégia para a reorientação do modelo assistencial” do Ministério da Saúde (BRASIL, 1997) afirma a importância de um processo de capacitação contínua e eficaz. Nesse documento esse tipo e capacitação é denominada de educação continuada, e tem como objetivo fazer com que a equipe da ESF possa atuar de forma adequada frente à diversidade dos problemas, além de ser “um importante mecanismo no desenvolvimento da própria concepção de equipe e de vinculação dos profissionais com a população, característica que fundamenta todo trabalho do PSF” (BRASIL, 1997, p. 21).

Nesse sentido, a capacitação deve ir para além do treinamento com protocolos ou “guidelines” que, de acordo com Cunha (2004, p. 103), são “roteiros de perguntas e exames que devem ser seguidos diante de uma queixa, sintoma ou suspeita clínica” para produzir um diagnóstico. O perigo de tal procedimento, de acordo com o mesmo autor, é que os profissionais passam a ficar presos às evidências, passam a escutar e a perguntar apenas sobre o que está previsto. “Com o tempo e a experiência tudo que não está “nos caminhos” dos diagnósticos produz insegurança no profissional, de forma a comprometer a relação clínica e principalmente a possibilidade do diálogo e do reconhecimento da singularidade do sujeito” (CUNHA, 2004, p. 103). Essa visão crítica aparece na fala de E1:

E1- [...] Quando você vai acompanhar não é como você lê o manualzinho de violência, ta lá claramente que com 12 anos é uma violência, mas a menina quis, entendeu?

Nessa fala, a profissional E1 usa da ironia (manualzinho) demonstrando o sentimento de impotência experimentado pelo profissional quando se depara com situações complexas e contraditórias, que exigiriam um suporte institucional para seu encaminhamento. No caso, ela tem consciência da legislação que criminaliza o envolvimento com menores de 14 anos (estupro de vulnerável art. 217 do CP), obrigando sua notificação ao Conselho Tutelar; no entanto tal envolvimento é desejado pela adolescente. Como proceder?

Nessa linha de raciocínio, seguir um protocolo para fazer uma notificação de violência não é suficiente e não dá respaldo ao profissional para que ele dê atenção integral e humanizada às pessoas ou famílias em situação de violências, como preconiza o Ministério da Saúde na “Política Nacional de Redução da Mortalidade por Acidentes e Violências” (BRASIL, 2001), apesar da notificação ser considerada como o primeiro passo. Entendemos que a notificação compulsória deve

ser decorrente de outras ações anteriores, como o acolhimento e vínculo, pressupondo uma concepção de clínica ampliada, que extrapola a protocolar. Mas isso acontece?

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