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3.1 O problema e as hipóteses da pesquisa

O fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes, apesar de sempre ter existido na história da humanidade, tem sido colocado em destaque na atualidade como resultado de lutas pela efetivação dos direitos humanos. Tais direitos incluem o reconhecimento de crianças e adolescentes24 como sujeitos com direito à proteção integral, com prioridade absoluta no atendimento de suas necessidades e direitos especiais decorrentes de sua condição de pessoas em processo de desenvolvimento, cuja garantia é de responsabilidade da família, da sociedade e do Estado, conforme preconizado na Constituição Federal do Brasil (BRASIL, 1988) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei nº 8069 de1990 (BRASIL, 1989). Fica garantido pelo artigo 5º do Estatuto que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punindo na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. E, no seu 13º artigo estabelece que “os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente [deverão ser] obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais”, com punições previstas para os profissionais que não o fizerem (BRASIL, 1989).

A violência em todas as suas formas, incluindo a sexual e a violência doméstica, foi considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2002 (KRUG et. al., 2002) e por seus países signatários, dentre eles o Brasil, como um problema de saúde pública que tem aumentado de forma significativa no mundo, gerando impactos no adoecimento, na morbidade, na mortalidade, nos altos custos pessoais, familiares, sociais, além da grande demanda ao setor de saúde (CFP, 2009, p. 59). Por isso o setor de saúde está incorporando gradativamente a questão da violência como uma questão de saúde pública, de forma que em 2001 o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Redução da Mortalidade por Acidentes e Violências (BRASIL, 2001), com o objetivo de reduzir a mortalidade por acidentes e violência no Brasil.

Ao incorporar os dois temas como problemas de saúde pública, o setor o faz, de um lado, assumindo a sua participação – com os outros setores e com a sociedade civil – na construção da cidadania e da qualidade de vida da população e, de outro, o seu papel específico, utilizando os instrumentos que lhe são próprios: as estratégias de promoção da saúde e de prevenção de doenças e agravos, bem como a melhor adequação das ações relativas à assistência, recuperação e reabilitação (BRASIL, 2001, p. 3).

24O Estatuto da Criança e do Adolescente define em seu artigo 2º que é considerada “criança, para os efeitos desta Lei, a

pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. [...] Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade” (BRASIL, 1990).

Decorrente da Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências, o Ministério da Saúde lança a Portaria nº 1.968/2001 (Ministério do Estado da Saúde, 2001) tornando obrigatório, em 2001, para todas as instituições de saúde pública e/ou conveniadas ao Sistema Único de Saúde em todo o território nacional, o preenchimento da Ficha de Notificação Compulsória e seu encaminhamento aos órgãos competentes (Conselhos Tutelares ou Varas da Infância), que foi parcialmente implantada. Em 2011, o Ministério da Saúde, em sua Portaria nº 104, de 25 de janeiro de 2011, define em seu artigo 2º que deverá haver notificação compulsória referente às doenças, agravos e eventos de importância para a saúde pública de abrangência nacional em toda a rede de saúde, pública e privada, e não apenas nos serviços sentinelas. A notificação de violência doméstica, sexual e/ou outras violências está inserida nessa lista de agravos à saúde (BRASIL, 2011). Fica assim previsto, dentre as ações do Ministério da Saúde, a promoção de vigilância e cuidado contínuo para com as situações de maus-tratos, tornando obrigatório aos profissionais da saúde notificar os casos de suspeita ou confirmação de qualquer forma de violência infligida a qualquer ser humano.

A criação do programa Estratégia Saúde da Família (ESF), antes denominado Programa de Saúde da Família (PSF), pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 1997), abre possibilidades mais concretas de atuação do Setor de Saúde com relação à questão da violência, costumeiramente tratada apenas de forma policialesca. Compreendida como porta de entrada do setor de saúde, a ESF deve aproximar as equipes e serviços de saúde das reais necessidades dos indivíduos e famílias, sendo estas seu principal foco de atenção. Para enfrentar as complexas questões da saúde coletiva, incluindo a violência, a ESF conta com as seguintes premissas metodológicas: “[...] A adscrição da clientela em território definido, o incentivo à integralidade das ações, o planejamento local baseado nas necessidades de saúde da população, a atuação intersetorial, a abordagem familiar e a humanização do atendimento” (ROCHA; MORAES, 2011, p. 3286). Contudo, o estudo de Rocha e Moraes (2011) objetivou estimar a prevalência e caracterizar a violência familiar contra crianças adscritas ao Programa Médico de Família de Niterói/RJ, com uma amostra de 278 crianças adscritas de 27 equipes de Saúde da Família. O estudo concluiu haver um baixo grau de identificação dos casos e consequente subnotificação aos Conselhos Tutelares dos casos de violência, levantando a possibilidade de que tal fato seja “decorrente das diferentes concepções e significados que os membros da equipe de Saúde da Família têm sobre a questão da violência familiar” (ROCHA; MORAES, 2011, p. 3294), indicando a importância de pesquisas que avaliem a percepção das equipes sobre o fenômeno.

Por isso, como primeira hipótese, presumimos que não há entre os profissionais que formam a equipe da ESF um compartilhamento da mesma compreensão do fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes (suas formas, causas e consequências), fazendo com que não ajam em sincronia frente à demanda de intervenção, seja na identificação, no acompanhamento e na condução destes casos.

Uma segunda hipótese seria a falta de um serviço especializado de referência que dê suporte às decisões e ao acompanhamento dos casos das equipes da ESF, tendo em vista a complexidade de questões que envolve os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, fazendo com que os profissionais se sintam inseguros na condução de tais casos. Assim, a falta de uma mesma concepção, acrescida da falta de apoio institucional colaboraria para a subnotificação de tais casos.

Diante dessas hipóteses, questionamos quais as práticas discursivas e institucionais existentes sobre o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes, presentes nos discursos dos profissionais da saúde inseridos nas equipes da Estratégia Saúde da Família, da cidade de Montes Claros/MG, que norteariam a identificação e condução desses casos.

3.2 Objetivos

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