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A clínica com objeto de trabalho reduzido acaba tendo uma função protetora – ainda que falsamente protetora – porque “permite” ao profissional não ouvir uma pessoa ou um coletivo em sofrimento e, assim, tentar não lidar com a própria dor ou medo que o trabalho em saúde pode trazer (BRASIL, 2009, p. 18).

O Ministério da Saúde tem buscado implantar no SUS a atenção integral e humanizada às pessoas que sofreram ou sofrem violências. Essa “atenção está pautada no território e no vínculo, que devem ser construídos de forma intersetorial, interinstitucional, multiprofissional e interdisciplinar no âmbito das políticas sociais” (BRASIL, 2011, p. 17), além do sistema de proteção e garantia de direitos humanos.

Reichenheim, et al. (2011) apontam que o grande desafio para o enfrentamento da violência contra mulher [e de outros tipos de violências] reside na implementação e avaliação específica dos planos de ação já existentes nas políticas públicas. Nesse sentido, a intervenção dos serviços de saúde tem papel de destaque no atendimento de pessoas em situação de violência, e na garantia de seus direitos humanos, haja vista que a maioria por, ser usuária do sistema de saúde, vai procurar o serviço em algum momento, mesmo que por razão distinta da agressão, devendo ser considerada sua possibilidade. Um exemplo disso verificamos na fala de E4:

P- Mas por exemplo, pensando na criança e no adolescente, como você suspeitaria de uma violência sexual?

E4- É, tipo assim, no caso de adolescente... que quando eu busco por suspeita de violência, era chegar inclusive na minha equipe pedindo um exame de gravidez. No caso assim, a gente pergunta se ela fez planejamento familiar, se ela tem parceiro fixo. A maioria das vezes a gente sabe a vida todinha do pessoal nosso aqui, principalmente do adolescente; aí eu vou e pergunto o porquê do motivo do Beta HCG, que é o exame de gravidez. A gente pede no caso esse exame e aí ela acaba falando. Já aconteceu comigo no Santos Reis [bairro] quando eu trabalhei lá. Eu perguntei a uma adolescente de 12 anos de idade: por que você está fazendo o exame de sangue, quem te orientou pedir ele? Aí [ela] falou assim: não, foi uma colega minha mais velha que pediu pra mim fazer, porque meu pai, ele, ele abusou de mim e ele chegou até a sentir prazer comigo e tal, e ele vem fazendo isso comigo há muito tempo. Aí, através dessa pergunta... eu pergunto por que ela diz que é o pai que tinha relação há muito tempo e que fazia relação com ela.

Diferente da maioria, esse profissional (E4) não se limitou a prescrever o exame pedido, houve uma “escuta” e um “olhar” diferenciado, que o levou a estranhar o pedido de exame, acabando por descobrir um abuso intrafamiliar incestuoso, que geralmente fica no silêncio; um segredo da vítima. Mas essa escuta diferenciada não faz parte da rotina de trabalho. Nesse sentido, Alvin (1997), a partir de sua experiência no acolhimento de crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, em um serviço médico especializado no Hospital Bicêtre, na França, aponta que o número de atendimento das emergências médico-legais, caracterizadas geralmente por abuso extrafamiliares, é apenas a ponta do iceberg, uma vez que as histórias de agressões sexuais podem emergir durante uma anamnese, paralelamente a outros motivos que levaram o adolescente ao hospital:

Os motivos que levam a vítima ao hospital (para uma consulta ou internação) não têm, na maior parte das vezes, nenhuma ligação aparente com a situação incestuosa. Percebemos que só a posteriori uma relação mais ou menos direta quase sempre aparece (ALVIN, 1997, p. 75).

Nesse sentido, o setor saúde precisa ser sensibilizado e capacitado constantemente, tanto na atenção primária (ESF) quanto nos outros níveis de atenção e nos serviços de emergências, para darem conta de identificar a violência sexual; o acolhimento e a escuta sensível são imprescindíveis para isso. O acolhimento é uma das diretrizes de maior relevância da Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS (BRASIL, 2005, 2009), implantada em 2003. Para que tal ocorra é necessário, por parte dos profissionais da saúde, uma “escuta” capaz de dar credibilidade ao depoimento da pessoa em situação de violência (que depois será confirmado ou não).

M3- [...] mas você consegue perceber sim, às vezes demora uma ou duas consultas, vai depender de cada criança ou do tempo que você vai avaliar, mas a gente consegue sim, o profissional tendo atenção naquilo ali, ele vai identificar sim que a criança está passando por algum problema.

Diferente dos demais profissionais pesquisados, a fala de M3 demonstra, antes de mais nada, uma abertura, uma predisposição desse profissional para identificar os possíveis casos de violência sexual contra crianças e adolescentes: [...] mas você consegue perceber sim [...] tendo atenção naquilo ali, ele vai identificar sim que a criança está passando por algum problema. Além disso, podemos notar o cuidado e o conhecimento do profissional sobre o tempo de revelação que, de forma geral, não se faz ou não se constrói em uma consulta, e varia com os sujeitos: [...] às vezes demora uma ou duas consultas, vai depender de cada criança ou do tempo que você vai avaliar. Esse profissional, diferente dos outros 08 (oito), foi o único que teve experiência em outro serviço que atendia vítimas de violência, o que provavelmente contribuiu para essa sua postura.

No caso específico da violência sexual contra crianças e adolescentes, para que as vítimas quebrem o silêncio e revelem os abusos sofridos é necessário que haja alguém disponível para escutá-

las e acolhê-las, tomando as providências necessárias para sua proteção, e a notificação legal da violência sexual é uma delas. O momento da revelação é muito difícil tanto para a vítima quanto para os familiares, por diversos fatores, como a culpa, a vergonha, o medo, principalmente se for um abuso incestuoso, pelo risco de rompimento dos vínculos familiares e seus desdobramentos. O estudo feito por Santos; Dell’Aglio(2010), com publicações que trabalhavam o momento da revelação dos abusos sexuais, aponta que a maioria das revelações de abusos é feita às mães, de forma direta, verbalmente pela criança/adolescente ou descobrem o abuso através de outros recursos, como o comportamento da criança, ou ainda através de informações obtidas junto aos profissionais. Constatou-se também que as mães que dão suporte emocional às crianças/adolescentes amenizam o impacto negativo do abuso para a vítima. Nesse sentido, “a rede de proteção pode atuar como um moderador, auxiliando a mãe frente a essa situação de ter uma criança vítima de abuso sexual” (SANTOS; DELL’AGLIO, 2010, p. 331). O mesmo estudo aponta que as vítimas de abuso percebiam como positivas as atitudes dos profissionais que as atenderam pois demonstravam apoio, compreensão, considerando o abuso como algo sério, sem duvidar do relato das vítimas, o que lhes trazia sensação de bem-estar, de alívio, de confiança. Essa postura de acolhimento, exemplificada na fala de M3, é resultado de um vínculo construído entre o profissional e o vitimizado ao longo do tempo, mas não é comum entre os profissionais. Apenas um profissional (M3) teve essa fala:

P- e como você confirma a violência?

M3- algumas é necessário o exame ginecológico pra gente confirmar, mas são várias consultas pra criança te mostrar, te contar o que realmente aconteceu. Depois de umas consultas, elas têm a segurança, porque primeiro ela tem que ter segurança no profissional. Muitas vezes você não pode ter a mãe perto; por ser menor de idade é difícil você pedir a mãe pra se retirar, então quando ela [a criança] começa a confiar, ela começa a se abrir aos poucos pra gente que está tendo abuso sexual em casa.

O mesmo estudo indica que as atitudes dos profissionais, consideradas como negativas pelas vítimas incluíam a percepção de falta de apoio e compreensão no momento da revelação; atitude de questionamento da veracidade do fato e, expressões emocionais de choque ou surpresa dos profissionais. Essas atitudes negativas geraram sentimentos de raiva, traição e desconfiança nas vítimas (SANTOS; DELL’AGLIO, 2010).

Em nossa pesquisa, a prática da maioria dos profissionais do ESF tem sido a de um “olhar-vigiar”, sem “escuta” ou “acolhimento” dos casos de violência.

M2- A última denuncia que eu tive, uma menina de 14 anos, foi na unidade básica, lá embaixo, que ela não estava amamentando adequadamente a criança, eu anotei na ficha e liguei pro Conselho Tutelar. Mas é igual tô te falando, são coisas que alguém passa lá e deixa solto, então não tem como comprovar, o Conselho Tutelar é que tem que ir lá.

P- [...] e nesse treinamento eles falaram sobre o que na Secretaria?

A2- O que tava em foco lá era sobre a questão de denúncia, que a gente tinha que denunciar; o treinamento foi pra falar sobre isso. Que a gente tinha que denunciar, denúncia anônima caso a gente soubesse de casos assim, violência sexual, violência contra idosos, violência doméstica.

A postura de um olhar-vigiar se verifica quando o profissional, ao identificar casos de maus-tratos ou violência, como na fala de M2 e M1, tem uma atitude que se resume a encaminhar os casos seja ao Conselho Tutelar, à polícia, ao serviço de referência, ou aos profissionais do NASF, em cumprimento a uma norma apenas.

M1- A rotina pra gente nestes casos é entrevistar a mãe ou o responsável e encaminhar essa criança para o hospital universitário, que é a referencia que a gente tem na cidade para esses casos de suspeita de abuso sexual; quando necessário a gente aciona também o Conselho Tutelar da criança, quando isso não é feito pelos pais e não raro, o próprio agente comunitário comunica ao posto de policia que tem aqui ao lado. Então a policia militar é parceira nossa, tanto a gente comunica com a policia militar como também ela nos traz demandas. Então a gente tem um trabalho conjunto, a gente tem muita parceria em torno da violência sexual da criança, com a facilidade que tem este posto de atendimento aqui do lado.

E1- [...] mas a gente aciona por meio do Conselho pra poder investigar e ver, porque esta parte de investigar e ver se realmente teve, é o Conselho e às vezes a polícia também, né.

Há uma desresponsabilização dos profissionais, que fica camuflada, quando aderem à linha “policialesca” do Sistema que privilegia a notificação de casos, como se o encaminhamento fosse a principal tarefa que caberia ao profissional de saúde para dar resolutividade aos casos de violência e, ainda assim, nem a notificação obrigatória fazem, apenas encaminham. Essa lógica baseada apenas no encaminhamento do problema diminui a busca por saídas mais humanizadas, demonstrando que há ainda uma predominância do foco do trabalho cotidiano em saúde estar na doença, não no sujeito e suas necessidades. Além disso, os Conselhos Tutelares não conseguem acompanhar todas as demandas, o trabalho é precário, tendo em vista as inúmeras deficiências financeiras, estruturais, de recursos humanos (FERREIRA, 2005), ficando as vítimas desprotegidas e desamparadas, necessitando do acompanhamento de saúde através de equipes multidisciplinares.

Predomínio de relação hierarquizada na equipe, sem trabalho em equipe, sem

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