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A influência do petrarquismo na tematização do amor

Capítulo I O amor no Ocidente

1.1. Perspetivas sobre o amor e sua tipologia

1.1.4. A influência do petrarquismo na tematização do amor

Como referimos anteriormente, o petrarquismo é profundamente influenciado pelas conceções de amor que têm vindo a ser exploradas. De facto, o poeta italiano Francesco Petrarca (1304-1374) está ligado ao movimento literário que se expande por toda a Europa, representando a transição entre os trovadores provençais e os poetas do “dolce stil nuovo” e a poesia do Renascimento.

Tendo como impulsionadores Matteo Boiardo (1441-1494) e Jacopo Sannazaro (1456-1530), o petrarquismo, que compreende o período relativo aos séculos XV e XVII, caracteriza-se por uma retoma da temática amorosa, dos recursos estilísticos e do vocabulário utilizados por Petrarca.

A obra, que se torna referência da poesia lírica deste poeta, é Il Canzoniere (1336-1374), cuja temática central é o amor, dedicado a Laura (1310-1348). Laura é a mulher a quem o poeta presta homenagem e o ideal que o mesmo procura alcançar, como modelo de virtudes e de beleza10.

Tida como uma autobiografia, que em Santo Agostinho tem o seu paradigma, Il

Canzoniere representa o conflito interno do poeta entre a atração pelos prazeres terrenos e o

amor por Laura e a propensão em direção a Deus. O amor em Petrarca constitui, deste modo,

10 É interessante que laurus se refere à planta associada a Apolo (filho de Zeus e de Leto), deus do sol e da verdade, da

perfeição, da harmonia, do equilíbrio e da razão e patrono da poesia, podendo considerar-se que “coroa” a poesia (laura), principal criação de Petrarca.

o meio que o poeta utiliza para fundamentar liricamente a complexidade dos seus sentimentos, um amor que passa de sonho a elegia (composição poética melancólica ou complacente).

Petrarca apaixona-se à primeira vista por Laura, já casada, a qual recusa as tentativas do poeta, sendo que o amor se torna doloroso, porque não correspondido, evocando o amor desejado e à volta do qual é desenvolvida a análise psicológica de Petrarca: graças aos poemas inspirados por Laura, o poeta aspira alcançar a glória.

O amor é, deste modo, visto como o processo que transporta o enamorado a um estado de elevação, provocando, no apaixonado, não só o gosto da dor amorosa, mas podendo conduzi-lo também à luta entre a razão e o desejo ou à perturbação perante a amada. O amor pode ainda provocar uma análise introspetiva sobre os paradoxos do sentimento amoroso.

O petrarquismo atinge o seu apogeu, no século XVI, com o veneziano Pietro Bembo (1470-1547), que lança uma edição de Il Canzoniere e que apresenta a linguagem simples de Petrarca como um modelo da linguagem poética, transformando-se a obra daquele poeta num exemplo de perfeição formal e da nova sensibilidade lírica.

Na verdade, Petrarca recebe influências de Dante Alighieri (1265-1321), o primeiro poeta da língua italiana, que, juntamente com um grupo de poetas, introduz o “dolce stil nuovo”, expressão que designa o movimento da poesia italiana, que surge entre a segunda metade do século XIII e o início do século XIV. Sucessor da poesia trovadoresca, este novo movimento apresenta novas características, tanto a nível de conteúdo como a nível de forma.

No que se refere ao conteúdo, a mudança consiste em três ideias fundamentais.

A primeira ideia funda-se numa conceção de amor, distinta do antigo modelo de vassalagem, inerente a uma sociedade feudal, que, de acordo com o novo estilo, se baseia nos princípios da gentileza, conforme determina o modelo da sociedade burguesa das cidades italianas. A gentileza, uma qualidade do espírito, não é transmitida pela linhagem, mas pela virtude individual, permitindo que o verdadeiro amor se instale nos corações puros e nobres.

A segunda ideia diz respeito a uma nova conceção da mulher amada, vista como um ser angélico que, com o seu olhar, provoca no homem o desejo de bondade, de perfeição moral e de elevação espiritual.

A terceira ideia remete para o estado de espírito do enamorado que, pela recordação da beleza e da imagem angelical da dama, procura encontrar equilíbrio entre o encanto do coração e o receio de ser abandonado ou de se ver privado da graciosa figura.

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realçar que, no que concerne ao tom da expressão poética, Dante apelida-o de “doce” e “suave”, dado que as poesias devem refletir delicadeza, musicalidade e graça.

Aos dezoito anos, Dante conhece Beatrice Portinari (1266-1290), filha do banqueiro Folco Portinari, a qual serve de inspiração ao escritor. É sob o signo desse amor que Dante deixa a sua marca no “dolce stil nuovo” e em toda a poesia italiana, abrindo caminho aos poetas e aos escritores que se seguem e que desenvolvem a temática do amor. O amor por Beatrice aparece como a justificação da poesia e da própria vida, sendo esta figura feminina que guia o poeta no paraíso, parte integrante da obra Divina Commedia, um poema de estrutura épica e com propósitos filosóficos, que descreve a viagem de Dante através do inferno (1304-1307), do purgatório (1308-1313) e do paraíso (1314-1321), sendo, primeiramente, guiado pelo poeta romano Virgílio (70 a.C.-19 a.C.), autor do poema épico

Eneida11, e, posteriormente, por Beatrice.

A Divina Commedia apresenta três personagens principais: Dante, que representa o homem; Beatrice, que personifica a fé; Virgílio, que simboliza a razão. Esta obra termina de forma harmoniosa (no paraíso), opondo-se à comum tragédia, que terminava, normalmente, de forma dramática para as personagens.

Influenciados pelo ideal renascentista, que valoriza o ser humano, os autores portugueses deste período enriquecem a tradição trovadoresca, a partir dos contributos das obras de Dante e de Petrarca, as quais expressam a idealização do sentimento amoroso não correspondido pelo facto de as mulheres amadas serem consideradas símbolos da graça divina e cuja preponderância é evidente em todo o panorama da literatura europeia.

É este sentimento que vemos representado na novela de Bernardim Ribeiro (1482?-1552?), intitulada Menina e Moça ou Saudades (publicada, em 1554, em Ferrara – Itália; em 1557, em Évora e, em 1559, em Colónia – Alemanha), a qual representa um cruzamento de elementos do romance de cavalaria, do romance pastoril e da novela sentimental onde o amor configura uma expressão melancólica e dramática e em que se pretende narrar “[…] o desenrolar psicológico do enamoramento, dentro aliás daquele quadro do amor impossível, que já encontrámos nas éclogas […]” (Saraiva, 1966: 47).

11 A Eneida (século I a.C.), poema que exalta a glória e o poder do império romano, relata as aventuras de um troiano, Eneias

(filho de Afrodite e do príncipe troiano Anquises), o qual, após a destruição de Troia, viaja errante pelo Mediterrâneo até chegar à península itálica, procurando um sítio para fundar uma nova cidade, que será, mais tarde, Roma, fundada pelos gémeos Rómulo e Remo (filhos de Marte – deus da guerra – e de Reia Sílvia).

Esta obra apresenta uma jovem, que começa por evocar a deslocação e a mudança de vida a que foi sujeita, encontrando-se separada do homem que ama e que, como tal, se refugia na solidão da natureza, onde desabafa as mágoas, que estão na origem do livro.

Posteriormente, a “menina e moça” dialoga com a “dona do tempo antigo”, uma mulher infeliz, que conta à rapariga histórias de amor e de sofrimento, constituindo desdobramentos de uma infinita dor relativa a constantes desencontros amorosos.

As mulheres são, por conseguinte, evidenciadas no que respeita à sensibilidade e também à tristeza, dado que são expostas pelo autor as razões pelas quais o amor é mais profundamente sentido pelas mulheres relativamente aos homens, que revelam outros interesses contrariamente às figuras femininas, as quais, por sua vez, se alimentam dos próprios sentimentos.

É, primeiramente, narrada a história do cavaleiro Lamentor e da sua dama Belisa, que morre de parto, deixando Lamentor inconsolável, seguindo-se os amores de Binmarder e de Aónia, irmã de Belisa.

Vindo de terras longínquas, este cavaleiro apaixona-se pela donzela, tomando o nome de Binmarder e a profissão de pastor, despertando um progressivo interesse por parte de Aónia. Todavia, o enamoramento da donzela pelo pastor termina de forma infeliz, pois a jovem casa-se, contra sua vontade, com outro cavaleiro e Binmarder, que não chega a receber as explicações que a mesma lhe enviara nem a promessa de manter inalterado o seu amor, abandona o local e desaparece para sempre.

Por fim, a velha mulher narra a história dos amores entre Avalor e Arima, filha de Lamentor e de Belisa. Arima vai para a corte onde o cavaleiro Avalor se apaixona pela jovem, deixando passar um ano sem ter coragem para lhe confessar o seu amor. Arima decide, no entanto, regressar a casa do pai, sendo seguida por Avalor, que se desloca num pequeno barco, o qual se despedaça contra uns rochedos junto à terra que, sem saber, é aquela que o cavaleiro procura.

Entretanto, Avalor, obrigado pelas leis da cavalaria, presta ajuda a uma dama, começando a contar-lhe um episódio passado com o seu pai. Porém, o texto é interrompido abruptamente e as histórias sobre o pai de Avalor e sobre o próprio cavaleiro ficam inacabadas.

O amor surge, assim, na obra bernardiniana, como uma meditação pessimista, em que ressaltam a separação, um perene descontentamento e a saudade, sobressaindo, de entre a prosa, um intenso lirismo pessoal, que representa a ligação entre o lirismo pueril das cantigas

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trovadorescas – “[…] dir-se-ia o desenvolvimento, em prosa rítmica, de uma cantiga de amigo […]” (Saraiva e Lopes, 2005: 229) – e a riqueza arquitetónica do lirismo renascentista.

Singular pelas particularidades apresentadas, o livro Menina e Moça, escrito por um autor masculino, mas que constitui uma das obras mais femininas da literatura portuguesa, representa, sobretudo, a atividade interior das personagens, a sua vida afetiva, sendo analisado o processo doloroso da alma humana, dominada pelo sentimento do amor insatisfeito, como causa de sofrimento.

O sentimento amoroso expressa-se, deste modo, numa paixão dominadora e inelutável, cuja infelicidade parece perseguir os que bem querem, o que origina uma inclinação para o passado, para a recordação do sentimento doloroso, para a procura das causas do sofrimento presente, dessa atmosfera triste e fatal: “[…] O fulcro da acção é inteiramente psicológico e exprime uma filosofia trágica do amor […]” (Saraiva e Lopes, 2005: 231).

De referir ainda a existência de uma evidente associação entre a livre expressão dos sentimentos e o ambiente campestre, contrariamente ao espaço da corte, de onde as personagens são retiradas por se tratar de um local caracterizado pelo boato e pela intriga. Do ambiente bucólico, sobressaem, efetivamente, os valores da pureza e da autenticidade.

Menina e Moça representa, enfim, o sofrimento e a nostalgia amorosa, sendo uma

narrativa que começa a diferenciar-se das convenções da ficção da época para se assumir como uma obra que remete para a solidão e para a saudade através da análise minuciosa do sentimento amoroso.

No âmbito da poesia, não podemos deixar de nos referir às composições de Luís Vaz de Camões (1524-1580), uma das mais insignes figuras da literatura portuguesa, um dos mais fortes símbolos de identidade de Portugal e um dos grandes poetas do Ocidente.

Efetivamente, Camões domina e pratica todos os géneros e estilos ligados à sua arte poética, elaborando versos à maneira tradicional, em redondilha (redondilha menor – versos com cinco sílabas ou redondilha maior – versos com sete sílabas), cultivando, igualmente, as formas clássicas, como a écloga virgiliana (poema pastoral, que apresenta a forma de diálogo ou de solilóquio); a ode horaciana (composição poética, que se divide em estrofes semelhantes entre si, quer pelo número, quer pela medida dos versos) ou ainda a canção (composição poética destinada ao canto, composta por cinco ou mais estrofes com igual número de versos) e o soneto petrarquianos (poema composto por catorze versos, distribuídos por duas estrofes de quatro versos e duas estrofes de três versos), sendo que as suas composições oscilam entre duas vertentes: a poesia de pura arte, em que o poeta procura

transpor os sentimentos e os temas a um plano formal e o lirismo confessional, em que o poeta expressa a sua experiência íntima, cujo ponto de partida assenta, fundamentalmente, no tema do amor.

Com efeito, o amor surge como aspiração que engrandece o espírito do amante, cujo sentimento não se pode realizar sob pena de se poder extinguir, sendo essencialmente representado pelo sofrimento e pelo desejo insatisfeito, ressaltando também a contradição entre a beleza espiritual e a beleza física. Se, por um lado, é representado o amor, que se aproxima do divino, do belo e do eterno, constituindo o meio que permite a ascensão para a origem de tudo o que existe, por outro lado, apresenta-se o amor, que tortura e escraviza pela impossibilidade de ignorar o desejo de posse da mulher amada, assim como são expressos desejos sexuais.

Deste modo, as composições camonianas configuram, não só o sentido universal do amor, mas também o seu sentido contraditório, sendo considerado pelo poeta um sentimento digno de ser vivido e em que sobressai a figura da mulher como elemento central de uma paisagem natural harmoniosa, sendo a figura feminina apresentada sob duas conceções: uma criatura angelical, intocável e distante, cuja beleza física corresponde à sua perfeição moral e espiritual e a mulher carnal, modelada de formas atraentes e que apela à manifestação erótica e hedonista, tornando-se o fulcro polarizador do prazer12.

Assim, na obra camoniana, o amor é sucessivamente “fogo que arde sem se ver”, “ferida que dói e não se sente”, “contentamento descontente”, provocando efeitos contraditórios e perturbação em quem ama, sendo que a amada é representada como parte ativa na superação dialética do conflito-base entre a alma e o corpo, “[…] entre a espiritualidade e a carnalidade, entre Laura e Vénus […]” (Saraiva e Lopes, 2005: 321). Por conseguinte, o amor em Camões não se contenta em possuir a amada como ideia, mas exige que ela o complete, sobressaindo o fascínio etéreo do amor petrarquista e a atração do amor carnal, os encantos da mulher que se admira e as solicitações da mulher que se deseja:

[…] A mulher amada aparece iluminada por uma luz sobrenatural que lhe transfigura as feições carnais: luminosos são os cabelos de oiro e o olhar resplandecente tem o condão de serenar o vento; a sua presença faz nascer as flores e até enternecer os troncos das árvores […]. Mas a experiência vivida e cultural de Camões mal poderia cingir-se a tais convenções. E, assim, regista o conflito (e união) entre o desejo carnal

12 Além do lirismo poético, o amor é também representado n’Os Lusíadas (1572), epopeia que narra a história de Vasco da

Gama (1460-1524) e dos heróis portugueses na descoberta do caminho marítimo para a Índia, onde se descrevem outros episódios da história de Portugal, numa glorificação do povo português. A epopeia é composta por dez cantos, mil cento e duas estrofes com versos decassílabos. Nesta obra, surgem passagens carregadas de erotismo, sobressaindo descrições sensuais e sobre a mulher, explicitadas, sobretudo, no retrato de Vénus e na sua subida ao Olimpo onde seduz Júpiter (Canto

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e o ideal de amor desinteressado que consiste só no «fino pensamento» […] (Saraiva e Lopes, 2005: 319-320).

Chegamos, assim, ao Renascimento, compreendido entre o final do século XIV e meados do século XVI, movimento que, neste ponto sobre o amor, como em tantos outros, resulta de uma confluência de correntes: das ideias socráticas (o conhecimento, a virtude, a consciência do ser humano), do platonismo, do mito medieval e da ortodoxia cristã.

A literatura e a arte, em geral, com uma nova capacidade de representação do espaço e do corpo, a religião e a filosofia, que enfatizam o heroísmo, o altruísmo e a liberdade humana, dão testemunho de quanto esta época vive agitada pelo tema do amor. A sua contribuição mais decisiva consiste em ter percecionado o amor como ligação entre todos os seres e como estrutura que contém e expande o universo e a História. Daí a curiosidade sem limites e o espírito de aventura, fenómenos significativos da cultura renascentista.

1.1.5. A tendência do amor intelectual em direção à passionalidade do amor