• Nenhum resultado encontrado

Capítulo I A Inglaterra em finais do século X

1.1. Enquadramento histórico-social: a nova civilização burguesa e industrial

1.1.2. As peculiaridades do século XIX

Jorge III, o rei, que assiste à Revolução Industrial, à guerra de independência dos Estados Unidos e à Revolução Francesa, é considerado inapto para reinar e, como tal, sobe ao trono o filho Jorge IV (1762-1830), como príncipe regente.

Marcando a transição entre a era georgiana (de Jorge I [1660-1727] a Jorge IV) e a era vitoriana (rainha Vitória [1819-1901]), o período de Regência decorre entre 1811 e 1820, constituindo-se como uma época de elegância, de requinte, de ambição e de grandes e numerosas construções arquitetónicas, como é o caso do Pavilhão de Brighton, residência real, situada na costa sul de Inglaterra, que apresenta influências asiáticas, ou o caso da Regent Street, em Londres, o primeiro exemplo de planeamento urbano.

148

Pela magnificência que exibe, o período de Regência é, por conseguinte, uma época de opulência, sobressaindo o vestuário cerimonioso, os bailes, os mexericos e as realizações culturais, que moldam a estrutura social da Inglaterra, respeitando-se a hierarquia social. Em termos gerais, a hierarquia da sociedade britânica oitocentista estrutura-se do seguinte modo: no topo, a aristocracia, seguida da rica e influente gentry, a qual é composta pelos proprietários rurais; depois, a alta burguesia (grandes comerciantes e banqueiros); a classe média, formada pelos lavradores, e a pequena e média burguesia, em que se inserem os proprietários de manufaturas e os pequenos comerciantes; por último, o povo.

A par desta estratificação, o cumprimento da etiqueta está patente em diferentes situações, como, por exemplo, no comportamento de uma jovem: se é solteira, não pode ficar sozinha com um homem sem que esteja presente um acompanhante; nenhuma mulher deve dançar mais do que duas vezes com o mesmo par; para receber uma carta ou um presente de um cavalheiro, é necessário ser sua noiva.

Quanto ao comportamento do cavalheiro, o mesmo deve obedecer às seguintes regras: aquando de um encontro com uma senhora, o cavalheiro deve esperar que a dama inicie o diálogo; na carruagem, só pode sentar-se junto da senhora se for pai, marido, irmão ou filho da dama; o cavalheiro deve entrar numa sala de concertos ou num museu antes de uma senhora.

Ainda no âmbito da etiqueta, aquando de uma visita matinal, são oferecidos alguns alimentos, como é o caso de doces e frutas. A visita deve ser retribuída no prazo de alguns dias, pois, caso contrário, significa que a relação de amizade não é para ser mantida.

Podem ser feitos convites para jantar, tomar um café ou um chá durante a noite. Uma senhora fica sempre entre dois cavalheiros e, após a sobremesa, as senhoras dirigem-se à sala para tomar café ou chá enquanto os cavalheiros ficam à porta a beber e a fumar. Passados trinta minutos, devem juntar-se às senhoras, para conversar durante uma hora.

Escrever uma carta constitui também a única forma de receber ou enviar notícias para familiares e amigos, pelo que a ida à estação dos correios é considerada o acontecimento mais emocionante do dia.

Como marcas sociais de riqueza e de prestígio, podemos citar o facto de ser proprietário de terras e possuir uma carruagem, dado que manter as propriedades, o meio de transporte, o animal, a sua alimentação e o criado torna-se bastante dispendioso, custos difíceis de suportar pelos indivíduos de qualquer estrato social.

e na primeira metade do século XIX

No que se refere a divertimentos, o baile é considerado o evento social mais importante da época. No intervalo, os convidados dirigem-se a uma sala onde podem encontrar chá, café, limonada, gelados, biscoitos, sopa e uma mistura de vinho, água quente com limão e nógado.

O Natal, a Páscoa e outros dias comemorativos são festejados com visitas, presentes, bailes e jantares. A alimentação consiste, essencialmente, em carnes, verduras e doces.

No que diz respeito à moda, é conveniente que as senhoras possuam um guarda-roupa com vestidos para usar de manhã, à noite, em passeios ou em viagens. A cor predominante é o branco. Tanto as senhoras como os cavalheiros devem usar luvas para dançar e, quando passeiam, as senhoras devem usar chapéu.

Para fazer compras, o local apropriado é a capital londrina, onde se podem adquirir livros, vestuário, joias, móveis, entre outros produtos. Este é também o lugar privilegiado dos teatros, das salas de concertos e dos museus.

Relativamente à educação, as crianças podem ser educadas em casa pelos pais ou por governantas. As raparigas, que não prosseguem carreira, não aprendem grego nem latim. Basta aprenderem francês, italiano, um pouco de geografia e história. Se quiserem alargar os seus conhecimentos, devem recorrer aos livros existentes na biblioteca dos pais. Desenhar, cantar e tocar piano, para entreter os convidados, são também atividades próprias das raparigas.

No que concerne ao casamento, a aliança com um homem rico surge como solução para o futuro das mulheres, que não devem trabalhar. Se não conseguirem casar, as raparigas, sem riqueza própria, tornam-se governantas, preceptoras ou damas de companhia.

Para além da existência e do requinte destas “boas maneiras”, surge, paralelamente, o desenvolvimento da grande agricultura e da grande indústria, que exigem o melhoramento das estradas, as quais são realmente aperfeiçoadas a partir de 1815 através do revestimento com uma cobertura impermeável, que resulta da invenção do engenheiro escocês McAdam (1756-1836).

Apesar do desenvolvimento individual e social, surgem, inevitavelmente, aspetos negativos, como o galanteio, o jogo e a violência, que desencadeiam duelos, os quais tendem, contudo, a desaparecer, gradualmente, dada a imposição de regras em Bath, uma estância termal muito famosa, cujos usos e costumes vão sendo introduzidos por todo o reino.

Sendo a época marcada pela exuberância, a despesa começa a aumentar, as classes mais baixas estão pobres e vive-se alguma incerteza, resultante das guerras napoleónicas, que

150

se desencadeiam durante o período de Regência e durante o reinado de Jorge IV, afetando o comércio interno e o comércio externo, assim como a política.

Com efeito, as invasões napoleónicas ameaçam destruir a Europa e é imprescindível que a Inglaterra derrote Napoleão (1769-1821) através do domínio do mar e das coligações com outros países. Todavia, as tropas francesas continuam invencíveis em terra, sendo que, em 1815, Napoleão é derrotado na famosa batalha de Waterloo.

Herdeiro da conjuntura criada pelos séculos anteriores, o século XIX vai-se, assim, constituindo como uma época de prosperidade, resultante do desenvolvimento de técnicas e de novos métodos de trabalho.

A necessidade de construção de fábricas e de moradias para os trabalhadores obriga à urbanização do país e, dado o aumento de pessoas e de produtos que circulam, urge implantar e melhorar o sistema de transportes, o que ocorre, nomeadamente, na chamada era vitoriana, denominação adveniente do nome da rainha Vitória, que reina entre 1837 e 1901. Aliás, durante o seu reinado ocorre a Grande Exposição Universal (1851), que tem lugar no Crystal Palace, constituindo um evento marcante na história de Inglaterra:

[…] The opening of the Great Exhibition was also the opening of the golden age of Victorianism, in the proper and essential meaning of that word […]. London had become, if not the hub of the universe, at least the focus of the world. The background of [the] Victorianism is growing material prosperity, and a level of industrial production and foreign trade which set England far ahead of all other countries […]90 (Thomson, 1950: 99-100).

Marcado pela mudança industrial e pela expansão do império britânico, este é, pois, o período em que a economia industrial, favorecida pelo regime constitucional estabelecido, supera a economia do mundo rural.

Os espaços marítimos e terrestres são vencidos pelo vapor dos navios e dos comboios, desenvolvendo-se, por isso, a construção de canais para transporte do carvão e também a do caminho de ferro, que minimiza o isolamento das várias regiões:

[…] The introduction of railways, or rather the introduction of the locomotive engine and the use of railways – long employed in collieries – for general carriage, changed the outlook of the population towards machines. People saw machines and found them useful. The railways themselves made large demands on the heavy industries; they

90 “[…] A abertura da Grande Exposição foi também a abertura da época de ouro do vitorianismo, no sentido próprio e

essencial da palavra [...]. Londres tinha-se tornado, se não o centro do universo, pelo menos, o foco do mundo. O objetivo [do] vitorianismo consiste no crescimento da prosperidade material, do nível de produção industrial e do comércio externo, o que tornou a Inglaterra pioneira relativamente aos outros países […]”.

e na primeira metade do século XIX

benefited agriculture by opening new markets for perishable goods and by the cheap transport of manure […]91 (Woodward, 1947: 148).

Por sua vez, as cidades concentram as fábricas, as vitrines do progresso, constituindo-se como o ponto de partida das ligações ferroviárias. Aí se encontram os símbolos do poder – tribunais, prisões, repartições fiscais – e também da cultura, como, por exemplo, universidades, sedes de jornais, salas de espetáculos e museus.

Multiplicam-se os bancos de negócios, que procuram absorver as poupanças com o objetivo de desenvolvimento. É a época do liberalismo económico, que defende a livre concorrência através da lei da oferta e da procura.

Governando a primeira potência industrial e comercial do mundo – a oficina do

mundo, imitada por todos –, a rainha Vitória favorece, igualmente, a subida social da classe

média, ávida de saber, de respeitabilidade e de virtude em detrimento da classe operária e dos mais desfavorecidos. Os grandes proprietários possuem, assim, grandiosas mansões, que marcam a sua posição social, dando-se especial relevo à posse de uma biblioteca pessoal.

As estâncias balneares começam a proliferar e, para além das deslocações a praias e termas, por ocasião das férias, a classe burguesa ocupa-se com visitas, com bailes, com passeios e com a caça, considerada uma atividade nobre por tradição, que prepara os homens para a guerra e que ilustra a valentia de cada indivíduo dentro de uma determinada elite.

Jogos de palavras, de cartas e adivinhas são outras atividades desenvolvidas pelos burgueses deste período, promovendo-se também o gosto pela música, pelo canto, pelas diversas artes e pela literatura.

Numerosamente povoada, a metrópole inglesa92 vê, deste modo, crescer a nova classe social, a burguesia, propulsionadora do conhecimento, tido como condição essencial do progresso, cujo modelo se vai expandindo por outros países ocidentais.

Na verdade, com o triunfo do liberalismo, reconhece-se a igualdade de todos, criando-se as condições necessárias à mobilidade social, favorável aos anseios da burguesia, sendo que a ascensão social é encarada como consequência do mérito individual. Cada indivíduo poderia, assim, alcançar o topo da hierarquia da sociedade pelo seu trabalho, apoiado nas suas faculdades intelectuais e nas suas virtudes, pelo que os valores burgueses

91 “[…] A introdução do caminho de ferro, ou melhor, a introdução da locomotiva e do caminho de ferro – bastante utilizados

nas minas de carvão – para o transporte geral, alterou a perspetiva da população em relação às máquinas. As pessoas viram máquinas e consideraram-nas úteis. O caminho de ferro exigiu bastante da indústria pesada, beneficiando a agricultura através da abertura de novos mercados destinados aos produtos perecíveis e através do transporte pouco dispendioso de estrume […]”.

152

começam a impor-se aos valores tradicionais da aristocracia: em vez do ócio, exalta-se o trabalho e o esforço individual; a poupança e a disciplina substituem o esbanjamento e o luxo; o espírito de iniciativa e de inovação tornam-se qualidades fundamentais do indivíduo, sendo que, no século XIX, o

[…] cidadão britânico desfruta das liberdades fundamentais: liberdade individual, liberdade de imprensa, de associação […], liberdade religiosa […] (Berstein e Milza, 1997: 300).

Detentora do maior rendimento dos países desenvolvidos e possuidora da maior rede ferroviária do mundo e da maior frota marítima, que lhe assegura o controlo do tráfego mundial, a Inglaterra é, sem dúvida, no século XIX, a maior potência económica mundial, conservando a sua posição privilegiada de maior entreposto comercial e financeiro do mundo, marcada pelo prestígio e pela popularidade:

[…] A Inglaterra foi extraordinariamente favorecida no princípio do século XIX. Em função de um forte nacionalismo económico, o governo sobrescrevia activamente o desenvolvimento do comércio, ligado à expansão imperial e ao poderio naval […]. A estrutura social inglesa tinha-se tornado mais flexível […] do que em qualquer outro país […] (Mathias, 1968: 19).