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O conceito romântico do sentimento amoroso

Capítulo I O amor no Ocidente

1.1. Perspetivas sobre o amor e sua tipologia

1.1.6. O conceito romântico do sentimento amoroso

Ao longo dos séculos, o fenómeno amoroso no Ocidente é encarado de diversas formas por diferentes pensadores, que manifestaram as suas ideias a respeito deste sentimento, ressaltando não só o seu valor positivo e exclusivamente humano, mas identificando também nele a expressão inefável da transcendência.

Tratando-o como meta inalcançável, concebendo-o como fonte de conhecimento ou considerando-o como algo alienador, o amor tem sido tema central de muitas obras literárias desde os primórdios da literatura ocidental, onde surgem diversas configurações deste sentimento, produzidas desde os autores clássicos (gregos e latinos), que o definem como uma das maiores felicidades do ser humano, associado ao sentido do bem, até ao início do cristianismo, que influi no amor os valores éticos e morais, preconizados por esta doutrina.

Também a conceção de amor-paixão é enfatizada nas produções literárias ocidentais, designadamente nas sociedades cortesãs do século XII, a qual é desenvolvida ao longo dos tempos na perspetiva que, mais tarde, origina o conceito de amor romântico, difundido, principalmente, nos séculos XVIII e XIX.

Com efeito, o século XVIII realiza na História um dos momentos máximos da modificação do conceito de amor. Nem os tempos helenísticos, de tão generalizado culto de cupidos (Cupido é o deus romano do amor, equivalente a Eros), lhe são comparáveis. A razão reside no facto de a inocência pagã não se poder repetir depois de tantos séculos de cristianismo. Essas décadas em que, por exemplo, o filósofo e escritor suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) surge como mestre da nova “ars amandi” (arte de amar), essas décadas tinham que terminar pela celebração do amor e da morte.

Na verdade, Rousseau faz soprar um vento revolucionário sobre as ideias de amor, debatendo a sexualidade como uma experiência fundamental na vida do ser humano, concetualizando a tomada de consciência da importância dos sentimentos de amor no

desenvolvimento pessoal e na construção da sociedade e promovendo a abertura do debate sobre a divisão do amor entre amor passional e amor conjugal.

Podemos, assim, afirmar que este escritor-filósofo imprime, na sociedade do século XVIII, uma nova conceção de amor, fundamentado no pressuposto de que a personalidade do indivíduo, que diz respeito ao tratamento que ele dá aos outros e a sua própria sexualidade, se forma na infância.

Desta conceção resultam as noções de individualismo, de regresso ao paraíso perdido da infância e da filosofia do “bom selvagem”, defendidas por Rousseau, o qual expõe o seu coração dilacerado, que se compraz num narcisismo em que a dor se apresenta como sinal distintivo de um espírito superior; o qual concebe a natureza como reflexo da própria alma de quem a contempla; o qual acredita que o ser humano é naturalmente bom, sendo, contudo, corrompido pela sociedade em que vive: “[…] Les peuples ainsi que les hommes ne sont dociles que dans leur jeunesse, ils deviennent incorrigibles en vieillissant […]20” (Rousseau,

1964 c: 385).

Rousseau crê, por conseguinte, que todas as paixões, tomadas na sua tendência primitiva antes de terem sido desvirtuadas, são necessariamente boas, exaltando frequentemente o indivíduo e a igualdade entre todos:

[…] J’aurais cherché un païs où le droit de législation fût commun à tous les Citoyens; car qui peut mieux savoir qu’eux sous quelles conditions il leur convient de vivre ensemble dans une même societé? […]21 (Rousseau, 1964 b: 113-114).

Na perspetiva de Rousseau, o ser humano só consegue atingir a felicidade, não graças à cultura e ao luxo, mas pelas virtudes naturais, pela força dos sentimentos, pelos profundos instintos das almas naturalmente boas. O amor resulta, pois, de uma atração de um sexo pelo outro, concentrada num só indivíduo, sendo que um favor realizado no âmbito do amor deve ser exclusivo; caso contrário, trata-se de uma ofensa, visto que não existe uma dedicação total e única entre os amorosos. Além disso, o autor considera que é necessário ao ser humano ser, primeiramente, bom, a fim de ser, ulteriormente, feliz:

[…] Apesar de tudo e contra quase todos, Rousseau vai contrapor, ao primado da cultura e da razão, o primado da natureza e da sensibilidade, fundamentos, esses sim, e na sua perspectiva, da verdadeira igualdade. O cidadão de Genebra invertia, assim, o sentimento da mudança, quer na finalidade quer na estratégia: o homem é

20 “[…] Os povos, tal como os homens, só são dóceis na sua infância; com a idade, tornam-se incorrigíveis […]”.

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naturalmente bom, e, nesse sentido, a verdadeira mudança deve operar-se no que perverter o homem, isto é, na cultura e nas instituições […] (Machado, 1993: 19). Ao recentrar a reflexão sobre a natureza humana nos temas da sensibilidade, do sentimento e da paixão em detrimento da razão, Rousseau antagoniza, deste modo, os princípios do Iluminismo (movimento que valoriza a aprendizagem social com vista ao progresso, evidenciando tendências materialistas, exaltando a objetividade e o poder da razão, a fim de reformar a sociedade), anunciando aqueles que virão a ser os valores centrais do Romantismo, demonstrando um forte otimismo relativamente à essência humana, ao considerar que, primitivamente, o ser humano vivia num estado de natureza em que, deixando-se reger pelo sentimento, reinava a liberdade e a igualdade, o que é destruído pela corrupção adveniente da sociedade:

[…] Mais si les égaremens d’une folle jeunesse me firent oublier durant un tems de si sages leçons, j’ai le bonheur d’éprouver enfin que quelque penchant qu’on ait vers le vice, il est difficile qu’une éducation dont le coeur se mêle reste perdue pour toujours […]22 (Rousseau, 1964 b: 118).

Com efeito, o Romantismo, movimento cultural que enaltece a visão do mundo centrada no indivíduo, em que sobressaem características como o lirismo, a subjetividade, a emoção e o desejo de evasão, concretizado através de devaneios supressores do mundo real, o qual constitui uma frustração dos idealismos e dos sonhos, promove uma transformação, que acaba por retomar o mito medieval de Tristão e Isolda.

A procura da natureza e a fuga para o passado próximo (a infância) ou distante (a Idade Média) distinguem as produções românticas em que os autores se voltam cada vez mais para si mesmos, retratando o drama humano, amores trágicos, ideais utópicos e cujo desenlace reside na morte.

A história trágica dos dois enamorados da era medieval começa a regressar com Julie

ou la Nouvelle Héloïse (1761), mas apenas num plano sentimental, obra que revela Rousseau

um defensor da moral e da justiça divina ao celebrar a apologia do amor verdadeiro, que transcende a paixão e o ímpeto, alcançando o estado virtuoso do amor ao próximo.

22 “[…] Se os desvios de uma louca juventude me fizeram esquecer durante algum tempo tão sábias lições, tenho a felicidade

de finalmente experimentar que, apesar de alguma inclinação que se tenha para o vício, é difícil perder-se para sempre uma educação com que se formou o coração […]”.

Agora, o mito ressurge ainda no plano místico, assumindo um sentido muito mais de imanência do que de transcendência, porquanto o dualismo maniqueísta, que divide o mundo em bom ou mau e que inspirara o mito, é superado.

Na unidade do absoluto, na liberdade que o ilimitado consente, não há lugar para inibições. Tudo é inocência no caminho da paixão. O amor realizado dos sentidos constitui a imagem do encontro e da coincidência com o todo. Momentâneo, ele é a passagem à eternidade; finito, ele é a promessa da infinitude.

A morte é apetecível como libertação dos obstáculos e o “morrer juntos” condiz com aquele pressuposto na sua forte densidade. Esta conceção romântica comum, nas suas linhas gerais, a filósofos, poetas, dramaturgos e romancistas, que gera um clima propício a paixões fatais e a suicídios (como é o caso do romance Die Leiden des Jungen Werthers [Os

Sofrimentos do Jovem Werther], datado de 1774, da autoria do escritor alemão Johann

Wolfgang von Goethe [1749-1832]), cedo tropeça na dura realidade quotidiana e no materialismo do século, dando lugar a censuras de moralidade e abrindo-se a explicações deterministas sobre o comportamento humano relativamente ao amor.

No fundo, as duas obras referidas – Julie ou la Nouvelle Héloïse e Werther – são o ataque à fidelidade do amor-dever, em nome do caráter divino do amor. Assim como o génio é independente de normas, assim o seria o coração, de cuja aceção resulta a noção de mulher fatal e de homem fatal de todos os amores de perdição da literatura romântica.

Como refere Beja Santos,

[…] o amor e as suas manifestações são um dos indicadores preeminentes de uma civilização e de uma cultura: apontam para a estrutura e para o superficial das nossas vidas, para os valores e os sistemas, a vida de relação e o imaginário, o peso do individualismo e as afinidades afectivas […] (Santos, 2009 b: 132).

Por isso, no século XVIII e, principalmente, no século XIX ocidentais, surge a civilização e a cultura românticas, cujas estruturas e valores se vão revelando efémeros, promovendo a criação de uma nova era com alterações a todos os níveis, nomeadamente, no plano literário, com o surgimento do Realismo.

1.2. A representação do amor idealizado e irrealizável na narrativa da