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A tendência do amor intelectual em direção à passionalidade do amor

Capítulo I O amor no Ocidente

1.1. Perspetivas sobre o amor e sua tipologia

1.1.5. A tendência do amor intelectual em direção à passionalidade do amor

Com o princípio dos chamados tempos modernos, o amor deixa de ser concebido entre a divindade e a humanidade, como para Platão ou como para Marsílio Ficino (1433-1499), filósofo e humanista italiano, cuja conceção do amor se centra na beleza do caráter e na inteligência, como fonte de todas as virtudes e da verdade, um amor que se reveste de idealização.

Para René Descartes (1596-1650), por exemplo, o amor surge inscrito em Les

Passions de l’Âme, um tratado publicado em 1649, em que o filósofo francês contribui para

uma teorização das paixões, experimentadas e equacionadas como precursoras das emoções. Na sua opinião, existem vontades ou ações dependentes da alma e outras que dependem do corpo, considerando que as paixões da alma se podem definir como

[…] des perceptions, ou des sentimens, ou des émotions de l’ame, qu’on raporte particulierement à elle, & qui sont causées, entretenuës & fortifiées par quelque mouvement des esprits […], [en étant appelées des sentiments], à cause qu’elles sont receuës en l’ame en meme façon que les objets des sens exterieurs […]13 (Descartes,

1970: 86-87).

13 “[…] perceções ou sentimentos ou emoções da alma, que lhe referimos particularmente e que são causadas, mantidas e

fortalecidas por qualquer movimento dos espíritos […], [sendo chamadas de sentimentos], porque são recebidas na alma do mesmo modo que os objetos dos sentidos exteriores […]”.

Neste caso, a paixão é causada por um objeto exterior ao sujeito enquanto a emoção é explicada como um evento interno ao indivíduo, pelo que uma emoção é produzida e uma paixão é sofrida pelo sujeito. As paixões constituem, assim, um dos aspetos da comunicação entre a alma e o corpo, sendo a paixão considerada um sentimento da alma ligado a um automatismo de auto-reforçamento, capaz de múltiplos condicionamentos, sendo que

[…] le principal effect de toutes les passions dans les hommes, est qu’elles incitent & disposent leur ame à vouloir les choses ausquelles elles preparent leur corps […]14 (Descartes, 1970: 96).

Deste modo, para Descartes, o sentimento amoroso incita a amar, considerando o filósofo que de entre as diferentes paixões existentes, entendidas como fenómenos psicofísicos, podemos incluir o amor15:

[…] Lors qu’une chose nous est representée comme bonne à nostre égard, c’est à dire, comme nous estant convenable, cela nous fait avoir pour elle de l’Amour […]16 (Descartes, 1970: 110).

Segundo o filósofo, não basta possuir um bom espírito; o mais importante é aplicá-lo de forma adequada, pelo que o amor deve testemunhar essa intelectualidade e ser testemunha da veracidade de caráter ao mesmo tempo que considera, por natureza, todas as paixões boas, devendo o ser humano evitar o seu mau uso ou os seus excessos.

Como tal, o amor permite a união de duas partes, existindo um todo do qual pensamos, segundo Descartes, constituir uma parte, sendo o elemento amado a outra parte, decorrendo do amor dois efeitos: benevolência (sentimento de querer bem relativamente ao elemento que se ama) e concupiscência (desejar o que se ama).

Considerado benéfico, o amor provoca sinais exteriores de manifestação dessas paixões, explicitadas através da ação dos olhos e do rosto, da mudança de cor ou de tremores, entre outros efeitos, pelo que as paixões, que mais emocionam os seres humanos, permitem que os mesmos sejam capazes de apreciar a vida com mais doçura.

14 “[…] o principal efeito de todas as paixões nos homens consiste no facto de incitarem e disporem a sua alma a querer as

coisas para as quais elas preparam o seu corpo […]”.

15 Descartes considera que existem seis paixões primitivas: a admiração; o amor; o ódio; o desejo; a alegria e a tristeza,

constituindo as restantes paixões espécies destas categorias principais, entre as quais, salientamos a estima ou o desprezo; a generosidade ou o orgulho; a veneração e o desdém; a esperança, o receio e o ciúme; a segurança e o desespero; a coragem; a inveja e a piedade; a satisfação e o arrependimento; o favor e o reconhecimento; a indignação e a cólera; a glória e a vergonha; o tédio e a alegria.

Para o filósofo, a admiração, tida como surpresa da alma perante elementos raros ou extraordinários, constitui o cerne das outras paixões, sendo que de umas procedem as outras, resultando diversos hábitos assentes em sentimentos bons ou maus, praticados pelo próprio indivíduo ou pelos outros.

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Com efeito, Descartes refere:

[…] Je remarque en l’Amour quand elle est seule, c’est à dire, quand elle n’est accompagnée d’aucune forte joye, ou Desir, ou Tristesse, que le battement du poulx est égal, & beaucoup plus grand & plus fort que de costume, qu’on sent une douce chaleur dans la poitrine, […] en sort que cette Passion est utile pour la Santé […]17

(Descartes, 1970: 136-137), acrescentando que o amor

[…] est extremement bonne, pour ce que joignant à nous de vrays biens, elle nous perfectionne d’autant […]. Et elle est necessairement suivie de la joye, à cause qu’elle nous represente ce que nous aymons, comme un bien qui nous appartient […]18 (Descartes, 1970: 165).

De modo similar, o neerlandês Baruch Spinoza (1632-1677) dedica o seu estudo aos afetos – o desejo, a alegria e a tristeza –, considerando que o corpo humano passa por diferentes modificações a que chama afeções. Uma afeção que aumenta a capacidade de agir tem, em paralelo, na mente, uma modificação que aumenta a potência de pensar, sendo que a passagem de uma potência menor para uma maior consiste no afeto de alegria. Pelo contrário, a passagem inversa constitui o afeto de tristeza.

O indivíduo procura, assim, manter a sua existência, esforçando-se para ter alegria (aumento da potência de agir e de pensar), opondo-se ao que causa tristeza, a cujo processo Spinoza designa de desejo, o qual constitui a própria essência do ser humano. As afeções, atribuídas à ação do corpo, testemunham o aumento da sua capacidade, pelo que o afeto de alegria impulsiona à atividade contrariamente às afeções que diminuem essas capacidades, evidenciando a passividade do corpo, consideradas paixões.

Na opinião do filósofo, a razão não se opõe aos afetos, sendo a própria razão um afeto, um desejo de encontrar ou criar as oportunidades de alegria na vida e de evitar ou desfazer as circunstâncias que provocam tristeza. A ética spinoziana é, deste modo, uma ética de alegria, a qual conduz o indivíduo ao amor, por si definido como a ideia de alegria, associada a uma causa exterior, respigada no quotidiano e na convivência com os outros. Neste âmbito, o amor eterno é o amor intelectual, sendo que a felicidade é considerada por Spinoza como a própria virtude.

17 “[…] Observo no amor, quando está só, isto é, quando não é acompanhado de qualquer intensa alegria ou desejo ou

tristeza, que o batimento do pulso é igual e muito maior e mais forte do que habitualmente; que se sente um doce calor no peito […], de modo que essa paixão é útil para a saúde […]”.

18 “[…] é extremamente bom, porque, unindo-nos a verdadeiros bens, aperfeiçoa-nos […]. E ele é necessariamente seguido

A revolução filosófica e técnica iniciada com o Renascimento repercute-se, essencialmente, no século XVIII, época em que a burguesia se afirma como força política e económica dominante, estabelecendo-se uma confiança nas possibilidades do ser humano, assim como nas possibilidades decorrentes do seu conhecimento, concretizáveis na transformação da sociedade através da aplicação da máquina e da divulgação da ciência.

Resultante destas mudanças e, anunciando características da estética romântica, surge na literatura portuguesa um poeta cuja obra apresenta elementos incontestavelmente novos. Referimo-nos a Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805), um pré-romântico, que privilegia o gosto pela solidão, a identificação da natureza com os estados de alma, o individualismo sentimental, destacando-se a afirmação do sujeito isolado em relação ao mundo exterior e a tendência para abandonar os modelos clássicos, valorizando-se o génio individual, o indivíduo criador e livre:

[…] O Elmano Sadino da Nova Arcádia19 é já um romântico por temperamento, apesar

de muito vocabulário e muito alegorismo arcádicos e dos seus laivos de iluminismo […] (Saraiva e Lopes, 2005: 643).

Na obra de Bocage, a temática amorosa é constante, sendo o amor representado como sentimento exagerado e incontrolado, como sentimento que faz sofrer, em que a amargura sucede ao prazer, provocando ciúme.

O erotismo e o sensualismo sobressaem profundamente nos poemas bocagianos, considerando o poeta que “nascemos para amar”, sendo o amor “doce atractivo, que encanta, que seduz, que persuade”, em que o lado racional é superado pela paixão contra a qual de nada serve a razão, pois, ainda que surja como guia do poeta, ele não consegue obedecer-lhe: “Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo; / Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro”, palpitando “[…] a convicta reivindicação de uma liberdade de pensar, gozar e amar sem

19 A Arcádia Lusitana ou Arcádia Olissiponense é, em meados do século XVIII, uma reputada academia literária, fundada

pelos poetas António Dinis da Cruz e Silva (1731-1799) e Pedro António Correia Garção (1724-1772), entre outros, com o objetivo de combater os excessos do espírito barroco, baseado na dramaticidade e na exuberância de temas, assim como numa tendência decorativa e na tensão entre o gosto pela materialidade e a vida espiritual, visando ainda orientar a produção poética com base na razão e no culto do natural. Contribuindo para a renovação das letras em Portugal, a sua existência é, no entanto, efémera (1756-1776), tendo ressurgido, mais tarde (1790), sob a designação de Nova Arcádia, integrando nomes como Bocage, Nicolau Tolentino (1740-1811) ou Marquesa de Alorna, de seu nome Leonor de Almeida Portugal de Lorena e Lencastre (1750-1839), sobressaindo o gosto pela simplicidade e pela exaltação da natureza e a imitação da tradição greco-latina, sendo esta nova academia extinta definitivamente em 1794.

Uma das características, que se destaca na vivência destes grupos literários, inspirados na lenda sobre a região bucólica do Peloponeso, na Grécia Antiga, segundo a qual, a Arcádia era dominada pelo deus Pã (deus dos bosques, dos campos, dos rebanhos e dos pastores) e habitada por pastores, que, vivendo de modo simples e espontâneo, se divertiam, cantando e celebrando o prazer amoroso e sentimental, é a utilização de pseudónimos, como sucede com Bocage, que opta por Elmano Sadino (possivelmente, o anagrama de Manoel do Sado), referente a um nome pastoril, associado à designação relativa aos

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outros limites que não sejam o da própria consciência e moral […]” (Saraiva e Lopes, 2005: 645).

Valoriza-se, deste modo, uma sensibilidade nova, que enaltece o sentimento, os afetos, as emoções e as paixões como fonte de inspiração, em detrimento da razão, desenvolvendo-se o gosto pelas tradições nacionais, o interesse pela Idade Média, a aspiração à liberdade e a conceção da poesia como confissão espontânea do sujeito.