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Capítulo I O amor no Ocidente

1.2. A representação do amor idealizado e irrealizável na narrativa da modernidade

1.2.3. Viagens na Minha Terra (1846)

Se, na literatura não nacional, a temática do amor é intensamente representada, nomeadamente no que se refere ao amor idealizado e irrealizável, de modo similar, a literatura portuguesa representa este sentimento dentro dos mesmos parâmetros.

Assim, surgem, em 1843, em folhetim, na Revista Universal Lisbonense, os primeiros capítulos de uma novela inovadora no panorama literário português da autoria do escritor português João Baptista da Silva Leitão de Almeida Garrett (1799-1854)38, intitulada Viagens

na Minha Terra, “[…] sem dúvida […], uma das mais originais, mais interessantes, mais

complexas obras da literatura portuguesa […]” (Régio, 1994 a: 69).

Publicada, posteriormente, em folhetins na mesma revista entre 1845 e 1846 e em volume em 1846, esta novela, em que se experimentam soluções estéticas originais sem rejeitar por completo os parâmetros neoclássicos, constitui o ponto de partida da moderna prosa literária portuguesa, não só pela mistura de estilos e pelo cruzamento de uma linguagem clássica e coloquial, em que ressalta a vivacidade de expressões e de imagens, mas também pela análise da situação política, social e cultural do país e pela simbologia que as personagens Frei Dinis e Carlos representam: o Portugal velho absolutista e o espírito renovador e liberal.

Efetivamente, a novela Viagens na Minha Terra combina o estilo digressivo da viagem real realizada pelo escritor entre Lisboa e Santarém a convite de Passos Manuel (1801-1862) e a narração novelesca em torno de Carlos e Joaninha – a menina dos rouxinóis – representando o amor não concretizado entre os dois jovens, dada a incompatibilidade de personalidades, pois se a personagem feminina representa a natureza e a pureza, a personagem masculina configura aquele que é corrompido pela sociedade e que não é merecedor de experienciar um sentimento tão nobre.

38 Almeida Garrett, além de ficcionista, é também poeta e dramaturgo, sendo o grande impulsionador do teatro em Portugal,

ao propor a edificação do Teatro Nacional D. Maria II e a criação do Conservatório de Arte Dramática. Na verdade, Garrett é também um político, tendo participado na revolução liberal de 1820, tomando parte no desembarque no Mindelo e também no cerco do Porto durante os anos de 1832 e 1833.

Por questões políticas, Garrett vai para o exílio, não só em Inglaterra, onde toma contacto com o movimento romântico, descobrindo autores e temas, que se refletem depois na sua obra, mas também em França, onde escreve Camões (1825) e D. Branca (1826), poemas considerados como as primeiras obras românticas portuguesas:

[…] São os dois livros que marcam a integração definitiva e mais sensível da cultura portuguesa na corrente romântica e no que de mais típico a caracteriza: o individualismo, ou seja, a valorização do indivíduo no binómio sociedade-indivíduo […] (Cidade, 1972: 268),

a par do ensaio A Voz do Profeta (1836) de Alexandre Herculano (1810-1877) sendo, assim, ambos os escritores considerados os introdutores do Romantismo em Portugal.

De entre as várias obras produzidas por Garrett, podemos citar as seguintes: poesia – Retrato de Vénus (1821), Flores sem Fruto (1845), Folhas Caídas (1853); teatro – Um Auto de Gil Vicente (1838), O Alfageme de Santarém (1842), Frei Luís de

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Como referimos, a novela de Garrett apresenta, por um lado, o passeio efetuado fisicamente, mas as viagens de que o narrador fala são jornadas mentais e sentimentais, reflexões e críticas, cuja digressão constitui o pensamento de um grande conhecedor do seu tempo através de uma viagem pela paisagem portuguesa, pela história, pela literatura, pela cultura de um país a habitar as ruínas do que foi.

Durante a viagem, contam-se histórias sobre Portugal e conta-se, em particular, uma história. Por entre paisagens e divagações, Garrett desloca-se até à charneca –

[…] Bela e vasta planície! Desafogada dos raios do Sol, como ela se desenha aí no horizonte tão suavemente! Que delicioso aroma selvagem que exalam estas plantas, acres e tenazes de vida, que a cobrem e que resistem verdes e viçosas a um sol português de Julho! […] Eu amo a charneca […] (Garrett, s/d b: 41-42) –,

chegando, posteriormente, ao Vale de Santarém, local primordial de inocência, de autenticidade e de pureza:

[…] Cá estamos num dos mais lindos e deliciosos sítios da terra: o Vale de Santarém, pátria dos rouxinóis e das madressilvas, cinta de faias belas e de loureiros viçosos. Disto é que não tem Paris, nem França, nem terra alguma do Ocidente, senão a nossa terra, e vale bem por tantas, tantas coisas que nos faltam (Garrett, s/d b: 48).

De repente, o narrador observa uma vidraça antiga por entre as árvores com rouxinóis e uma cortina que revela o interior da casa. Um vulto enigmático vem à janela: é Joaninha, a menina dos olhos “[…] verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido quilate […], os mais raros e os mais fascinantes olhos que há […]” (Garrett, s/d b: 59) – a prima de Carlos por quem a jovem se apaixona.

Joaninha vive sozinha com a avó Francisca. Semanalmente, recebem a visita de Frei Dinis, um nobre, que resolve abandonar tudo, tornando-se frade. Quando a guerra civil entre liberais e miguelistas atinge Santarém, Carlos, que, tendo estudado em Coimbra e viajando para Inglaterra, volta a Portugal para se alistar no exército liberal, que se defrontava então num violento combate e decide regressar à cidade e ao Vale, onde reencontra Joaninha.

Aquando deste encontro, Joaninha e Carlos beijam-se apaixonadamente, mas Carlos tem uma namorada em Inglaterra, Georgina, mostrando-se angustiado pela dúvida de contar ou omitir a verdade à prima.

Ferido durante a guerra, o jovem militar restabelece-se num local próximo da casa de Joaninha. Após a recuperação, toma conhecimento de que Frei Dinis é o seu verdadeiro pai, o

qual tentara matar. Além disso, Carlos fica também a saber que Georgina já não o ama, visto que a mesma conhece toda a história de amor entre ele e Joaninha. Carlos pede perdão a Georgina, mas a jovem não aceita.

No final, sabemos por Frei Dinis que Carlos se torna barão, Joaninha enlouquece e morre, Georgina vai para um convento e Francisca fica aos cuidados de Frei Dinis até morrer – personagens cujos desenlaces simbolizam a própria crise de valores que o materialismo acaba por gerar perante a fragilidade do espiritualismo.

De facto, cada uma destas personagens evidencia um aspeto relacionado com a situação da sociedade portuguesa enquadrada no período das lutas liberais e da instauração do liberalismo como regime político: Carlos, devido à sua volubilidade amorosa, revelando-se incapaz de decidir entre o amor de várias mulheres, representa a instabilidade e o fracasso do país, que acaba de sair da guerra civil e que dá os primeiros passos de uma vivência social e política em moldes modernos; Joaninha, não suportando o desgosto amoroso, é a típica heroína romântica, a mulher-anjo, que apresenta uma visão ingénua de Portugal; Georgina escolhe a reclusão religiosa como justificação da não participação nos dilemas e nos conflitos que motivam a sua deceção amorosa; Francisca revela incapacidade de fazer algo pelos netos, mostrando a imprudência e a falta de planeamento com que o país se deixa governar pelos liberais, levando a nação à decadência; Frei Dinis simboliza a própria tradição, assente num passado, que, no entanto, já não é capaz de se justificar sem uma revisão de valores e de perspetivas.

Deste modo, verificamos que, através da ficção, é projetado o drama da guerra civil, que é, afinal, uma guerra familiar, porquanto a novela consegue fundir a história das personagens com a história do país, surgindo estas criaturas ficcionais como intervenientes dos problemas da sociedade portuguesa.

Ligando a situação social de Portugal à situação sentimental das personagens, a novela

Viagens na Minha Terra apresenta a incapacidade de concretização, quer do regime liberal,

quer do amor, dado que existe uma recusa da realização: Carlos apaixona-se pelo liberalismo, luta por ele, mas não o sabe servir, pois torna-se barão materialista; também Carlos se apaixona por diferentes mulheres, vivendo disperso entre amores, apresentando-se, deste modo, como um homem com um coração demasiado impulsivo e incapaz de uma escolha concreta e realizável:

[…] Carlos torna-se barão e abre mão de fazer uma escolha entre Joaninha e Georgina. Casa-se com o dinheiro […], [mantendo-se] privado da dimensão real do amor […]

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Através de uma extensa e introspetiva carta, apresentada no final da história amorosa e que fornece elementos sobre a sua juventude, Carlos faz considerações de ordem psicológica e moral sobre a natureza humana, a sua fraqueza e a sua leviandade, manifestando a Joaninha a renúncia aos ideais de que já não se mostra digno, porque a sua natureza é incorrigível:

[…] Saí de Portugal e posso dizer que não tinha amado ainda. Inclinações de criança, galanteios de sociedade, ligações que nasceram da vaidade ou que só os sentidos alimentam, não merecem o nome de amor […]. Há três espécies de mulheres neste mundo: a mulher que se admira, a mulher que se deseja, a mulher que se ama. A beleza, o espírito, a graça, os dotes de alma e do corpo geram a admiração. Certas formas, certo ar voluptuoso criam o desejo. O que produz o amor não se sabe; é tudo isto às vezes; é mais do que isto; não é nada disto […] (Garrett, s/d b: 185).

Indefinível por natureza, o amor é, simultaneamente, para Carlos tudo e nada: tem um idílio com a freira Soledade, ama três irmãs inglesas (Laura, Júlia, Georgina), mas a imagem de Joaninha sobrepõe-se a todas as outras. De certo modo, o jovem julga que vai encontrar na paz dos bosques, da lezíria, a solução para o seu caráter, revelando-se inteiramente a Joaninha, falando-lhe da pureza que ela conservou e que ele perdeu quando deixou o Vale.

Simbolizando a estabilidade e a genuinidade, promovidas pela vivência na natureza, Joaninha, por oposição a Carlos, que simboliza a mudança pelo crescente envolvimento na vida social que o vai degradando, conserva a bondade natural e a fidelidade a um amor puro e simples, não obtendo a reciprocidade que esperava por parte do primo quando lhe confessa o seu amor.

De facto, o fluir do tempo e a transferência de espaço constituem, para Carlos, fatores de dispersão e de degenerescência íntima, cuja alteração não lhe permite compreender a linguagem dos olhos de Joaninha, porque já esquecera a naturalidade e a espontaneidade advenientes da vivência no espaço campestre. Por isso, o Vale perde a exuberância e a alegria quando Joaninha morre39.

Carlos confessa ainda a Joaninha que a sua perseguição do absoluto e da perfeição o levou a cometer erros, a sofrer deceções e a experimentar paixões sucessivas, o que traduz, tanto a inconstância amorosa do homem romântico, como o trajeto constante em direção ao ideal, a tentativa de realização de um absoluto, neste caso, um absoluto amoroso, que, ulteriormente, culmina no seu insucesso:

39 Aquando do encontro de Carlos com Joaninha, no Vale, a jovem encontra-se “[…] sobre uma espécie de banco rústico de

verdura, tapeçado de gramas e de macela brava, [encontrando-se] Joaninha meio recostada, meio deitada, dormi[ndo] profundamente […]. Era um ideal de demi-jour da coquette parisiense, sem arte nem estudo, lho preparara a natureza em seu boudoir de folhagem, perfumado da brisa recendente dos prados […]” (Garrett, s/d b: 91), o que transmite a ideia de harmonia entre a natureza e a personagem feminina.

[…] Teu só devia ser, se eu ainda tivera coração para te dar, se a minha alma fosse capaz, fosse digna de juntar-se com essa alma de anjo que em ti habita. Não é, Joana […]. Eu tinha nascido para gozar as doçuras da paz e da felicidade doméstica; fui criado, estou certo, para a glória tranquila, para as delícias modestas de um bom pai de família. Mas não o quis a minha estrela. Embriagou-se de poesia a minha imaginação e perdeu-se […]. A mulher que me amar há-de ser infeliz por força; a que me entregar o seu destino há-de vê-lo perdido […] (Garrett, s/d b: 200-201).

Na verdade, Carlos envolve-se com muitas mulheres: ama Georgina pelo bem-estar que sente junto dela; ama Joaninha como uma extensão da infância, tido como o tempo da inocência. Todavia, Georgina e Joaninha transformam-se em mulheres, tornam-se autênticas e Carlos não as sabe amar, concentrando o amor em si próprio, um amor narcísico, que leva uma à reclusão e outra à morte, fazendo com que deixe de haver lugar para elas ou para os valores que elas representam no seu mundo materializado:

[…] [Carlos] apaixona-se sucessivamente, mas intensamente, por várias mulheres, incapaz de se fixar, de se estruturar. A sua vida sentimental é permanentemente instável e fluída. Perante cada amor que sente esboçar-se nele, o herói quer sinceramente continuar fiel pelo coração ao seu amor precedente […] (Saraiva, 1966: 148).

Não conseguindo concretizar o seu amor, o protagonista perde todas as mulheres que amara, representando uma sociedade incapaz de valorizar os sentimentos e os valores espirituais, tornando-se uma sociedade materialista e corrompida. Frei Dinis, primeiramente absolutista, é capaz de se espiritualizar, representando o D. Quixote40 de tempos imemoriais;

porém, Carlos não é capaz de, sendo liberal, aceder a estes fundamentos, corrompendo-se e tornando-se barão (Sancho Pança), pelo que também não consegue realizar o seu amor:

[…] Se Frei Dinis e Carlos representam duas faces antinómicas do progresso social – o Antigo Regime e o Regime Liberal, com o materialismo e o espiritualismo de ambos sucedendo-se em cada um em ordem inversa –, as duas jovens mulheres representam o ideal moral positivo comum a essas opostas concepções do mundo social […] (Macedo, 1979: 20).

Apesar do cidadão empenhado, que acredita na liberdade e que deseja imprimir em Portugal o progresso existente nos países estrangeiros e que no seu país ainda não se tornara

40 Don Quijote de la Mancha (1605 e 1615) é uma obra da autoria do poeta, dramaturgo e romancista castelhano Miguel de

Cervantes (1547-1616), que parodia os romances de cavalaria muito populares na época, mas que se encontravam em declínio. A obra apresenta um fidalgo castelhano, de certa idade, Don Quijote, que se entrega à leitura desses romances e que acredita nas histórias narradas, pelo que decide tornar-se cavaleiro andante, partindo pelo mundo à descoberta de aventuras na companhia do seu fiel escudeiro Sancho Pança. Enquanto Don Quijote representa o sonho, Sancho representa a realidade, apresentando ambas as personagens visões distintas, ainda que sejam participantes do mesmo universo, cujas aventuras

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realidade, e do homem amoroso, que celebra a aliança da virtude e do prazer, Garrett revela o seu desencanto perante a evolução da sociedade portuguesa nos anos subsequentes a 1822, em que os barões substituem os frades e em que os valores espirituais e sentimentais não são devidamente enaltecidos.

Aliás, o escritor, defensor do regime liberal, que ajuda a implementar, revela-se apologista do progresso da sociedade, confirmando, no entanto, a sua desilusão perante a apatia e a ambição presentes na sociedade e o artificialismo que caracteriza a literatura sua contemporânea, revelando que de tudo o que “vir e ouvir, pensar e sentir” se constitui a matéria do livro de que faz crónica.

Efetivamente, Viagens na Minha Terra apresenta sítios e ambientes (ver), conversas (ouvir), considerações (pensar) e confidências (sentir), que surgem intrinsecamente relacionados com a intriga amorosa pelo facto de esta novela constituir o símbolo da reestruturação de Portugal41.

Com efeito, através da defesa da identidade nacional, das tradições e da cultura populares, da preservação dos monumentos, da criação de uma literatura em relação estreita com a realidade, original e nacional, sem a interferência de modelos estrangeiros a apontar caminhos possíveis de realização, esta obra concebe a sublimação do amor espiritual, do amor-adoração em consonância com a natureza que aparece como cenário bucólico propício a histórias de amor, a recordações de tempos felizes ocorridos no passado:

[…] O Vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada grandioso nem sublime, mas há uma simetria de cores, de sons, de disposição em tudo quanto se vê e se sente, que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor e benevolência. As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão fugir para longe. Imagina-se por aqui o Éden que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a virgindade do seu coração […] (Garrett, s/d b: 49).

A natureza surge, por conseguinte, em harmonia com a temática amorosa, quer pela amenidade e pelo equilíbrio construídos na paisagem natural, quer pelos bons sentimentos que decorrem naquele espaço edénico e, como tal, um espaço saudável e repousante. A tranquilidade e a candura ressaltam desta descrição, numa placidez e numa pureza próprias do

41 Através desta obra, Garrett pretende representar a evolução da sociedade portuguesa, baseando-se, para tal, nos ideais de

igualdade, liberdade e justiça: “[…] Primeiro que tudo, a minha obra é um símbolo… é um mito […]. É um mito, porque – porque… Já agora, rasgo o véu e declaro abertamente ao benévolo leitor a profunda ideia que está oculta debaixo desta ligeira aparência de uma viagenzita que parece feita a brincar, e no fim de contas é uma coisa séria, grave […]” (Garrett, s/d b: 16).

sentimento amoroso, que, mantendo-se em Joaninha, deixam de ser compatíveis com os sentimentos de Carlos, o qual já não se pode enquadrar naquele local pela perda da unidade interior, desequilíbrio que se reflete na natureza aquando da aproximação das tropas ao Vale42.

À semelhança do que ocorre nos romances Julie ou la Nouvelle Héloïse e Die Leiden

des Jungen Werthers, também Viagens na Minha Terra representa o espaço da natureza como

local privilegiado para a vivência do amor. Contudo, nas três obras, o amor é irrealizável, não se consolidando nem se concretizando. A complementaridade entre espaço natural e sentimento amoroso verifica-se apenas quando os apaixonados ainda vivem um amor idealizado, surgindo, ulteriormente, os obstáculos que rompem com a essência natural e que coíbem a ação resultante dos afetos e que os protagonistas não conseguem ultrapassar.

Dada a situação contemporânea do país (recusa das tradições do povo, degradação de monumentos, destruição de ambientes naturais, degeneração do Romantismo43, transformação

do idealismo em materialismo), não é possível a sobrevivência do amor entre Joaninha e

42 De modo romântico, a natureza surge como reflexo dos estados de alma dos sujeitos ficcionais, alterando a sua fisionomia

face às modificações ocorridas nos intervenientes ou nas situações narradas: “[…] A natureza parecia tomar dó pelo homem – da triste e lúgubre decoração de cena ao sangrento drama de destruição e de miséria que ali se ia concluir. As últimas folhas das árvores caíam; o céu, nublado e negro, vertia sobre a terra apaulada torrentes grossas de água […]. Tudo estava feio e torpe; tudo era ruína, desolação e morte em torno da casa do vale, agora transformada em quartel e reduto militar […]” (Garrett, s/d b: 88).

43 Garrett disserta sobre o estado da literatura portuguesa, alegando que a mesma não corresponde à realidade, é estereotipada

e, como tal, não é original:

[…] Vamos à descrição da estalagem. Não pode ser clássica; assoviam-lhe todos esses rapazes de pêra, bigode e charuto, que fazem literatura cava e funda desde a porta do Marrare até ao café de Moscow…

Mas aqui é que me aparece uma incoerência inexplicável. A sociedade é materialista; e a literatura, que é a expressão da sociedade, é toda excessivamente e absurdamente e despropositadamente espiritualista! […] Não pode ser clássica, está visto, a tal descrição. – Seja romântica. – Também não pode ser […]. É como eu devia fazer a descrição: bem o sei. Mas há um impedimento fatal, invencível […]. É que nada disso lá havia. E eu não quero caluniar a boa gente da Azambuja. […] Eu hei-de viver e morrer na fé de Boileau [1636-1711 – crítico e poeta francês]: Rien n’est beau que le vrai [“Só o verdadeiro é belo”] […] (Garrett, s/d b: 21-22).

A descrição não pode ser clássica, porque os românticos do seu tempo lho proíbem; também não pode ser romântica, porque seria elaborada de forma fantástica, o que fugiria à verdade. Garrett apresenta ainda outro exemplo concernente ao artificialismo da literatura que se fazia na época:

[…] Sim, leitor benévolo, por esta ocasião te vou explicar como nós hoje em dia fazemos a nossa literatura. Já me não importa guardar segredo; depois desta desgraça [desfiguração do pinhal da Azambuja], não me importa já nada. Saberás, pois, ó leitor, como nós outros fazemos o que te fazemos ler. Trata-se de um romance, de um drama. Cuidas que vamos estudar a História, a natureza, os monumentos, as pinturas, os edifícios, as memórias da época? Não seja pateta, senhor leitor, nem cuide que nós o somos. Desenhar caracteres e situações do vivo da natureza, colori-los das cores verdadeiras da História… isso é trabalho difícil, longo, delicado; exige um estudo, um talento, e sobretudo um tacto… Não, senhor; a coisa faz-se muito mais facilmente […] (Garrett, s/d b: 27-28).

Como tal, o escritor não se caracteriza nem como autor clássico, nem como autor romântico, preferindo o equilíbrio e a moderação na escrita, recusando os excessos da imaginação, que distorce a realidade e optando, por conseguinte, pela defesa da verdade, não obstante o facto de expressar influências, quer da estética clássica, quer da estética romântica: “[…] Quando afirma e reafirma que não é clássico nem romântico, declara que é, a todo o momento, clássico e romântico: concilia em sua pessoa duas posições antagónicas […]” (Lawton, 1974: 98).

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Carlos, porque enquanto Joaninha representa a espontaneidade e a autenticidade numa correspondência com a natureza impoluída, Carlos representa a mentira e a hipocrisia, surgindo como o exemplo do suicídio moral que vai desgastando o país.