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1.3 AS AÇÕES DOS DOCENTES NAS AULAS DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS

1.3.1 A interação didática e o agir do professor de línguas estrangeiras

A construção de dados para a análise da ação docente, a partir de interações na aula de língua, viabiliza a determinação de alguns aspectos que podem introduzir, na didática das línguas, o que Moirand e Cicurel (1986) denominam

interação didática no ensino de línguas estrangeiras, a qual apresenta

características próprias e está presente em qualquer situação de aprendizagem de línguas.

Em decorrência da disposição do espaço ou mesmo com base na observação do jogo interacional e da presença de rotinas, uma simples observação de uma sala

de aula é suficiente para se perceba que a aprendizagem de uma língua neste espaço didático possui traços específicos e bem identificáveis e que tal situação não pode ser comparada, em hipótese alguma, com a apropriação de uma língua em meio natural. Cicurel (2013) propõe um esquema que representa como se configura o ensinar ou aprender uma língua no contexto de aula:

Quadro 2

Esquema de Representação do ensino e aprendizagem de uma língua no contexto de aula

L1 (locutor competente) deve/quer transmitir A L2 (locutores menos competentes)

conhecimentos, um saber-fazer/saber-dizer

segundo métodos e meios X para acelerar os processos aquisicionais

pela mediação de objetos (frequentemente escriturais: textos, livros, meios, inscrições na lousa)

 influência do contexto, geográfico, institucional, do extraclasse (estatuto da língua estudada, possibilidades de ouvir a língua, de falá-la, etc.)

 contrato didático: aceitação por ambas as partes de se submeter a certas atividades linguísticas com o objetivo de apropriação de saberes.

(Fonte: CICUREL, 2013, p. 57)

Vion (1992) postula que existem dois grandes tipos de interação: a interação

com finalidade externa (possuindo um objetivo que preexiste à interação) ou aquela com finalidade interna (o objetivo não preexiste à troca). O agir do professor de LE,

num contexto institucional se constrói inevitavelmente em torno de uma interação com finalidade externa, uma vez que subjaz a suas ações o objetivo de transmitir um saber, um saber-dizer, o que não ocorre, por exemplo, numa conversa trivial em que não há a necessidade de objetivos precisos (Ex.: começar uma conversa com um amigo ou alguém próximo). Sobre essa questão, Cicurel (2013) chama a atenção para o fato de que a comunicação didática na sala de aula precisa se mpre permitir a realização de objetivos, e isso jamais poderá ser ignorado por aqueles que conduzem o trabalho ou a pesquisa docente.

Entende-se, pois, que a interação didática se realiza com restrições ligadas tanto aos objetivos e à situação do ensino, quanto aos estilos dos docentes. Cicurel considera que, apesar de as restrições se apresentarem diferentemente segundo os contextos e os objetivos, estas vão exigir sempre:

- que os participantes estejam reunidos num espaço fechado ou delimitado durante um tempo, anteriormente definido, se distribuindo de maneira mais ou menos regular (de onde vem o canônico “horário” que é entregue no início do ano);

- que haja uma interação de um ator conhecedor da matéria ensinada com atores-aprendizes que precisam de sua colaboração para alcançar os resultados esperados;

- que a interação tenha uma finalidade cognitiva: trata-se de ensinar/aprender um saber ou um saber-fazer. Este objetivo se realiza sob a forma de atividades, de tarefas a serem desenvolvidas com a finalidade de permitir a apropriação de saberes;

- que resultados de natureza diversa sejam obtidos, o que às vezes é implícito à interação em si (feed-back corretivo, por exemplo);

- que a interação seja inserida em um programa que tem suas exigências; - que o conhecimento interiorizado por cada um dos participantes de um

roteiro referente aos hábitos e aos comportamentos constitua uma força de

pré-conhecimento do contexto-aula que permite aos participantes acompanharem o desenrolar interacional;

- por último, que esta transmissão aconteça sob uma forma dialogada que se constrói coletivamente, colocando em prática um sistema de alternância da fala que é, pode-se dizer, dominado pelo ator conhecedor (CICUREL, 2013, p. 58).

No que diz respeito à aula de língua, como no nosso caso, a interação na sala de aula segue de modo bastante coerente as orientações supramencionadas. No entanto, essa interação possui uma finalidade muito específica que nada mais é que fazer adquirir um saber que se constitui como um conjunto de competências da linguagem. Desse modo, no processo de ensino e aprendizagem de uma LE, no curso da interação didática, o agir docente deve se voltar para aquilo que, de fato, se considera com sendo língua, ou seja, os conteúdos linguísticos, as progressões, os discursos sobre a língua, o uso da metalíngua pelos participantes do processo, pelos nativos e, ainda, o desdobramento das atividades didáticas apropriadas.

A existência dessas especificidades na interação didática na sala de aula de LE conduz ao entendimento de que as oportunidades interacionais criadas por um ator conhecedor da metalíngua são, particularmente, movidas por uma finalidade cognitiva que se manifesta pela presença de atividades didáticas formalizadas cujo objetivo é favorecer a aprendizagem. Ora, a aula de língua não é uma conversação sem sequência. De acordo com Cicurel (2013), “a aprendizagem de certos aspectos da língua se faz certamente graças a trocas (o que pode dar a ilusão de que é uma conversação ordinária), mas essas trocas se realizam de acordo com um roteiro de atividades didáticas, em geral reconhecido pelos protagonistas” (p.61).

Há de se considerar também como inerente a esse jogo interativo da sala de LE a existência de ações docentes que operam uma manipulação da comunicação na

metalíngua com a intenção de potencializar os processos de aquisição do aluno. Isso significa, portanto, que a interação na aula de língua é construída para permitir a aprendizagem. “Observa-se facilmente que o uso da língua não é o mesmo de uma conversação quotidiana, mas é o funcionamento da aula que é primordial” (CICUREL, 2013, p. 62). Além disso, existe também nessas interações um regime discursivo particular. Segundo Cicurel (2013), a aula de língua é um universo de linguagem em que a atenção se centra sobre as palavras, as expressões, a gramática etc., portanto, uma importante dimensão metalinguística e metalinguageira. É, assim, possível encontrar nas aulas de LE a produção de um discurso sobre as regras gramaticais, sobre as palavras, sobre a pronúncia e, ainda, a produção de um discurso sobre o uso das palavras.

Conclui-se, pois, que o mundo da sala de aula se dá parcialmente através da observação refinada das interações que nela se desenrolam. Cicurel (2013) afirma que se não houvesse esse trabalho sobre o detalhe das interações e dos turnos de fala, não seria possível verificar o que, de fato, acontece na sala de aula. De modo particular, as pesquisas sobre a sala de aula de ensino de língua vêm permitindo isolar fenômenos discursivos e interacionais, nominá-los e dar um significado a acontecimentos que parecem, à primeira vista, banais.

De modo geral, as pesquisas acerca do agir docente nas salas de LE, no seio das interações didáticas, permitem responder a questões comuns entre os atores do processo de aprendizagem: “quais são as aquisições linguísticas que tal aluno não tinha e que tem agora graças a uma orientação instrutiva, graças à realização de tal programa e de tais conteúdos, graças aos tipos de discursos, às explicações fornecidas, aos tipos de interações incentivados” (CICUREL, 2013, p. 68). Para tanto, insiste Cicurel, é necessário armazenar, anotar, inventariar a variedade e a multiplicidade das práticas de ensino, pois é apenas através do armazenamento das práticas que o professor, o formador ou o pesquisador conseguirá realizar o inventário dos repertórios, das práticas discursivas que têm como objetivo a transmissão do saber-dizer ou do saber-fazer em língua estrangeira.

Para concluir essa seção, apresentamos oito elementos considerados importantes por Cicurel (2013) para se proceder a uma abordagem etnográfica de uma sequência de aula:

1. O local da interação e o quadro temporal, ou seja, às características ligadas à instituição (se pública ou privada), à sala de aula, à disposição da sala e dos

participantes e, ainda, ao início/fim das aulas, ao ritmo dos encontros numa determinada duração etc.

2. O quadro participativo e de regulação de fala, que diz respeito ao número de participantes, estatuto e papel interacional (dissimétrico vs. simétrico).

3. Os objetivos da interação, referentes aos objetos de aprendizagem a serem identificados e às atividades didáticas desenvolvidas.

4. A construção do tema: o tema conversacional, a orientação dada pelo professor, a mudança de tema.

5. A metalinguagem, que envolve o tratamento da língua a ser ensinada, a terminologia a ser ensinada e sua função na interação (uma interação de aprendizagem de língua é necessariamente rica no plano metalinguístico).

6. A história conversacional, que tem relação com as marcas de uma vivência, de uma experiência, seja do grupo ou de um dos participantes, que preexiste à interação observada.

7. As práticas de transmissão, ou seja, as maneiras que evocam características de uma época, de uma cultura, de um indivíduo etc.; condutas típicas que os participantes reconhecem, por exemplo: retomada da lição, anúncio da atividade. Em suma, modelos didáticos que transparecem através das práticas.

8. O repertório didático, constituído por recursos nos quais o professor parece se apoiar em sua prática (modos explicativos, métodos, maneiras de avaliar etc.).

Retomando o objetivo geral da presente investigação, a saber, aferir os

impactos da heterogeneidade linguístico-cultural dos aprendentes sobre o agir docente nas aulas de PLE, consideramos que uma reflexão mais atenta sobre os

dois últimos elementos supramencionados pode proporcionar um olhar mais consciente sobre as práticas que compõem o conjunto do agir dos professores participantes de nossa pesquisa. O entendimento dos postulados relacionados às práticas de transmissão e ao repertório didático nos parece imprescindível para analisar as práticas de ensino desses professores e para analisar como e em que medida elas sofrem influência do contexto pluricultural em que se realizam.

Dessa feita, dando sequência a este capítulo, discorreremos com mais detalhes acerca dessas duas categorias de análise do agir docente propostas por Cicurel (2007; 2011; 2013): o repertório didático e as práticas de transmissão.