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1.3 AS AÇÕES DOS DOCENTES NAS AULAS DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS

1.3.2 Os repertórios didáticos e as práticas de transmissão

Com vistas a estabelecer práticas de transmissão adaptadas a seu público, o professor dispõe de certo repertório que se constitui progressivamente. Trata-se do

repertório didático que, conforme Cicurel (2011), é constituído por um conjunto de

recursos diversificados, tais como modelos, saberes, situações, dos quais um professor se vale para fundamentar suas ações de ensino. No geral, um professor (seja iniciante ou mais experiente) tem um repertório didático que ele constrói ao longo de suas experiências didáticas. Essas experiências não se limitam à sua prática em sala de aula, acontecem ainda em sua formação, antes mesmo de lecionar, por exemplo, ao assistir a uma aula ou ao realizar uma atividade em que ele é o autor da produção. Em se tratando especificamente de uma situação de aprendizagem de uma língua, o repertório verbal em sua totalidade pode ser considerado um dos recursos que compõem o repertório didático do professor.

Em consonância com essa acepção, Causa (2012) afirma que, de modo geral, o repertório didático pode ser definido como o conjunto de saberes, saber-fazer e saber-pedagógicos de que dispõe um professor para transmitir a língua alvo a um determinado público e em um contexto específico. Para a autora, tais saberes são forjados a partir de um conjunto complexo de modelos internalizados adquiridos por meio da formação e/ou imitação, de representações (compartilhadas e individuais), de conhecimentos gerais e sobre a língua a ser ensinada e sobre as línguas em geral etc. e se modificam no decorrer da experiência docente. A pesquisadora destaca que “a atualização destes saberes na realidade da sala de aula permite transformá-los em competências didáticas e profissionais” (CAUSA, 2012, p. 15)15.

Cabe ressaltar que essa definição enfatiza o papel desempenhado pelos modelos na constituição dos repertórios didáticos. Segundo Causa (2012, p. 15), os modelos podem ser entendidos como “um conjunto de „referências‟ teóricas e práticas que se forjam a partir da experiência pessoal e formativa do professor por impregnação, observação e imitação” 16.

No que diz respeito aos seus aspectos e à sua construção, Causa (2012) afirma que o repertório didático é compartilhado, individual, permeável e

15

No original: “l‟actualisation de ces savoirs dans le réel de la classe permet de les transformer en compétences didactiques et professionnelles”.

16 No original: “un ensemble de „références‟ théoriques et pratiques qui se forgent à partir de l‟expérience personnelle et formative de l‟enseignant par imprégnation, observation et imitation”.

parcialmente consciente e que ele se constrói (ou se transforma) a partir de uma (re)leitura crítica do que se passa na realidade da sala de aula e, sobretudo “a partir de incidentes críticos que marcam um distanciamento, devido principalmente a uma falta de experiência e/ou a uma interpretação inadequada da situação, entre o que o professor iniciante faz e o que ele deveria/desejaria ter feito, entre o que ele disse e o que deveria ter dito” (CAUSA, 2012, p. 19)17.

Essa autora chama a atenção, ademais, para o fato de que o repertório didático se situa no meio do caminho entre os saberes/modelos anteriores e a prática de sala de aula em tempo real. De acordo com Causa (2012), como o repertório didático se realiza nas atividades de sala de aula (ele marca, de fato, a passagem dos saberes declarativos para os saberes procedurais), o sucesso ou mesmo o insucesso da aplicação destas atividades tem uma certa repercussão na construção do repertório didático do professor. Assim, conforme conclui essa autora:

Se a aplicação de um modelo teórico/prático experimentado em classe dá bons resultados, esta conduta será integrada no repertório didático. Do mesmo modo, se uma atividade não planificada implementada para responder às necessidades imediatas da classe é considerada eficaz pelo professor, ela será retida no repertório didático, e assim por diante. Se, ao contrário, a aplicação de uma atividade planificada não responde de maneira eficaz, ela não será retida, mas isso não significa, no entanto, que ela seja afastada de maneira definitiva do repertório didático. A inclusão ou a exclusão de atividades/condutas/estratégias/técnicas no repertório

didático depende do tratamento destes dados (compromisso entre o que

aconteceu realmente na sala de aula e a percepção que o professor pode ter do ocorrido) pelo professor na fase pós-ativa da classe, daí a importância da atividade reflexiva sobre suas próprias práticas docentes e do acompanhamento, em formação inicial, de um “expert” no tratamento destes dados (CAUSA, 2012, p. 21)18.

Para ajudar a compreender melhor a noção de repertório didático, há de se levar em conta que as ações docentes se realizam geralmente em virtude da existência de uma cultura profissional ou cultura de ensino. Segundo Gine (2003

17 No original : “à partir d‟incidents critiques qui marquent un écart, dû principalement à un manque d‟expérience et/ou à une interprétation inadéquate de la situation, entre ce que l‟enseignant novice fait et ce qu‟il aurait dû/aurait voulu faire, entre ce qu‟il a dit et ce qu‟il aurait dû dire”.

18

No original: “Si l‟application d‟un modèle théorique/pratique expérimenté en classe donne de bons résultats, cette conduite sera intégrée dans le répertoire didactique. De même, si une activité non planifiée mise en place pour répondre aux besoins immédiats de la classe est jugée efficace par l‟enseignant, elle sera retenue dans le répertoire didactique, et ainsi de suite. Si, au contraire, l‟application d‟une activité planifiée ne répond pas de manière efficace, elle ne sera pas retenue mais cela ne signifie pas pour autant qu‟elle soit écartée de manière définitive du répertoire didactique. L‟inclusion ou l‟exclusion d‟activités/conduites/stratégies/techniques dans le répertoire didactique dépend du traitement de ces données (compromis entre ce qui s‟est passé réellement dans la classe et la perception que l‟enseignant peut en avoir) par l‟enseignant dans la phase post-active de la classe, d‟où l‟importance de l‟activité réflexive sur ses propres pratiques enseignantes et de l‟accompagnement, en formation initiale, d‟un „expert‟ dans le traitement de ces données.”.

apud CICUREL, 2011), o trabalho docente se inscreve num terreno comum

constituído por estratégias profissionais, por cenários de ação, de formas de discurso, de sistemas de valores, de códigos comuns. Assim, ainda que se observem professores pertencentes a culturas bastante distintas, percebe-se alguma coisa que transcende as diferenças culturais, pois seu agir difere completamente do agir de pessoas que nunca exerceram a função docente.

No entanto, é preciso considerar que, embora a profissão de professor seja estabelecida em bases comuns, fatores relacionados à sua vida pessoal podem ter influência sobre suas ações. Cicurel (2011) destaca que, no exercício de sua função, o professor não é menos homem plural. Em outras palavras, o professor é “um indivíduo que se socializou e se formou no âmbito de estratos diferentes, que esteve (ou não) em contato com locutores da língua ensinada, que recebeu uma ou outra formação pedagógica.” (p. 150)19. Desse modo, o professor vai construindo suas

próprias convicções e é em função deste sistema de crenças que ele age em classe. A partir das verbalizações de um grupo de professores de francês, Cicurel (2011) cita uma lista de elementos que podem dar uma noção da amplitude do repertório didático potencial de um professor de LE, quais sejam:

1. Modelos de ensino diversos, como práticas metodológicas; 2. Figuras de professores (positivas ou negativas);

3. Formações diversas (saberes acadêmicos e pedagógicos); 4. Experiências enquanto aprendentes;

5. O papel da cultura educativa nativa;

6. Transmissão dos saberes em família (relação com o meio social e com o saber);

7. Contatos com outros professores do meio institucional onde está inserido; 8. Materiais pedagógicos e saberes didáticos através de leituras;

9. Conhecimentos de grupos e dos próprios alunos (quando houver); 10. Feedback após avaliação;

11. Saberes ordinários sobre a língua estrangeira; 12. Saberes científicos sobre a língua estrangeira;

13. Exemplos de convicções, de crenças, de princípios sobre o ensino;

19

No original: " (...) un individu qui s‟est socialisé et formé au sein de strates différentes, qui a été (ou non) en contact avec des locuteurs de la langue qu‟il enseigne, qui a reçu telle ou telle formation pedagogique".

14. Estratégias adaptadas às dificuldades encontradas; 15. Humor, encenação, mímicas etc.

Rodrigues (2013) entende que cada um desses elementos supracitados compõe a trajetória de ensino e aprendizagem de um estudante de LE, seja através da experiência como aluno, seja através da experiência como professor. Para a pesquisadora, se o indivíduo assume a posição tanto de aluno, quanto de professor, ele pode constituir seu repertório, por exemplo, a partir de figuras de professores (positivas ou negativas) e da influência da própria cultura educativa nativa. Dessa feita, os repertórios são construídos em interações em sala de aula, ou fora dela, entre interlocutores que participam desses lugares-comuns.

Particularmente, consideramos que, embora esses elementos potenciais do repertório didático nem sempre sejam percebidos e declarados de modo consciente pelos professores, o reconhecimento de sua existência é primordial, uma vez que os recursos que subjazem às práticas de transmissão na sala de LE são oriundos desse repertório que, bem delineado ou não, todo professor apresenta.

Beacco (2010) propõe quatro tipos distintos de saberes constitutivos da didática do francês e das línguas que ele julga ter uma ligação direta com o do repertório didático: os saberes científicos, os saberes divulgados, os saberes de

expertise profissional e os saberes ordinários.

Os saberes científicos são aqueles atribuídos a alguma comunidade científica, produzidas, sobretudo, por meio das pesquisas de instituições universitárias. Cicurel (2011) destaca que, na didática das línguas, o corpus de conhecimentos é com mais frequência atrelado a uma disciplina de referência Ŕ a linguística, a sociologia, a psicologia cognitiva etc. Cada professor recebe, pois, uma formação inicial e os saberes científicos seriam oriundos deste estrato, acrescido de formações acadêmicas ulteriores.

Quanto aos saberes divulgados, Beacco (2010) afirma tratar-se de formas circulantes de saberes pelas quais os atores de um campo têm acesso aos saberes fundamentais de forma mais leve, vulgarizada. A título de exemplo, devem-se considerar as brochuras, as introduções de manuais de língua e, ainda, as formações mais profissionais como suportes de divulgação de ideias.

Os saberes de expertise profissional estão ligados aos saberes profissionais. Trata-se, portanto, do saber-fazer ligado à profissão que surge a partir do conjunto de experiências passadas no exercício da função docente.

Por fim, os saberes ordinários são os saberes sociais que podem apresentar inúmeros aspectos. No campo das línguas, consideram-se as representações a respeito das línguas, as ideologias linguísticas, metodológicas etc.

Consideramos que é somente no âmbito das ações docentes que os repertórios didáticos se constroem e se reconstroem evidenciando os recursos e saberes que oportunamente o configuram. Essa realidade acentua, sobremaneira, a importância da noção de repertório didático, até aqui exposta, para o entendimento do agir do professor de línguas. No nosso caso específico, os elementos que constituem o repertório potencial do professor de LE nos ajudam a estabelecer parâmetros plausíveis para refletir sobre as práticas de ensino dos professores de PLE do contexto de nossa investigação, mais precisamente as especificidades dessas práticas com relação à heterogeneidade linguístico-cultural dos aprendentes. No que diz respeito mais especificamente às práticas de transmissão, Cicurel (2011) afirma que estas devem ser entendidas como práticas linguageiras didáticas (verbais, não verbais e/ou mimo gestuais) e práticas interacionais que um professor realiza com vistas a fazer com que um público menos instruído possa se apropriar de saberes e savoir-faire. Elas dependem da cultura de origem, da formação do professor, de sua experiência, e de sua personalidade. As atividades didáticas formalizadas, inscritas em uma determinada tradição educativa (traduções, comentários de textos, jogos etc.), assim como as práticas pedagógicas mais livres constituem as práticas de transmissão.

Desse modo, ações didáticas diversas tais como os modos de distribuição da fala, as maneiras de propor correção, o encorajamento para participar do processo de descoberta do sentido ou, ainda, o recurso à memória dos alunos, às improvisações, às narrações, às comparações, à língua de origem, às oposições entre termos etc. constituem facetas de uma prática de transmissão (CICUREL, 2011).

A realização dessas práticas de transmissão depende de certas capacidades profissionais e pessoais que devem ter um professor para promover aprendizagem. Tais capacidades estão atreladas à noção de competência transmissiva. De acordo com Cicurel (2011), essa competência pode ser definida como “um conjunto de aptidões destinadas a permitir o ensino e a apropriação de uma matéria” (p.152).

A noção de competência transmissiva é composta por quatro outras noções de competência, quais sejam: a competência planificadora, a competência linguístico-

pedagógica, a competência que integra saberes sobre o grupo e a competência cultural.

A competência planificadora, obviamente, diz respeito à capacidade de planejamento das práticas considerando um programa (os conteúdos, objetivos etc.) que visa à progressão de um determinado curso.

A competência linguístico-pedagógica deve ser entendida como a capacidade de organizar o material verbal, de explicá-lo, de torná-lo acessível, de proceder a comparações, recapitulações etc. Essas práticas estão relacionadas ao que, no repertorio didático, pode ser considerado a competência metalinguageira que o docente possui enquanto usuário-professor e enquanto sujeito ordinário da língua.

A competência que integra saberes sobre o grupo está relacionada à capacidade de percepção da personalidade dos aprendente, de seus hábitos, de suas motivações e daquilo que eles conhecem para captar as ocasiões propícias em que o conhecimento que se tem do grupo pode favorecer as práticas de ensino.

A competência cultural, ancorada aos saberes divulgados e ordinários, diz respeito à capacidade de proceder à mobilização de exemplos sociais, culturais, históricos etc. para, por exemplo, relacioná-los às palavras que o professor enfatizar em sala.

A competência transmissiva é constituída, pois, tanto de saberes referentes à matéria a ser ensinada, quanto de saberes com contornos mais desfocados, às vezes mal definidos, dentre os quais, em se tratando de um contexto de ensino de língua, poder-se-iam citar os saberes sociais, os saberes literários, os saberes políticos... Logo, “a cultura profissional de um professor de língua reside na sua capacidade de utilizar a interação com habilidade, de se apoiar na fala do aprendente, ou ainda de saber organizar ou às vezes interromper as digressões” (CICUREL, 2011, p. 152)20.

De todo modo, o que fica bem definido pelo que foi exposto até aqui é que o conhecimento do repertório didático (dos recursos e dos saberes que o compõem) constitui a base para a construção da competência transmissiva do professor de LE (seus gestos de profissão, sua cultura de ensino, suas iniciativas didáticas, seu repertório linguístico, sua capacidade linguageira etc.), competência necessária para

20

No original: “la culture professionnelle d‟un enseignant de langue réside dans sa capacité à se servir de l‟interaction avec habilité, à s‟appuyer sur la parole de l‟apprenant, ou encore à savoir organiser ou parfois interrompre les digressions”.

a realização de práticas de transmissão adequadas aos diferentes públicos. Além disso, esse conhecimento dos repertórios também colabora para delinear e categorizar os diversos perfis que podem apresentar os professores de línguas em formação inicial ou continuada.

A diversidade de possibilidades de maneiras de agir que marcam o ofício do professor mostra o quão complexo e rico é o trabalho em sala de aula. Em vista disso, faz-se necessária uma reflexão atenta sobre essa questão, no sentido de mostrar que, ainda que a ação docente se mostre com esse contorno dinâmico, uma

ação não monolítica (nas palavras de Cicurel), não se pode perder de vista que toda

ação de ensino (o trabalho real) persegue objetivos claros e está ancorada em planificações prévias e orientações metodológicas e institucionais (trabalho prescrito), dimensões de trabalho sem as quais o fazer pedagógico não pode se realizar.

Para dar sequência a este estudo, apresentamos no capítulo subsequente os postulados referentes à interculturalidade, o segundo eixo teórico que embasa a nossa investigação.

CAPÍTULO 2

A LÍNGUA/LINGUAGEM, A CULTURA E A INTERCULTURALIDADE NO AGIR DOCENTE

Para estudar o agir do professor na sala de aula de PLE heterogênea do ponto de vista da língua-cultura dos aprendentes, consideramos necessário refletir sobre os diferentes saberes que fundamentam seu repertório didático e que, por conseguinte, orientam suas práticas de transmissão. Dessa feita, discutimos no presente capítulo conceitos-chave para uma análise do trabalho do professor de línguas estrangeiras, quais sejam: língua/linguagem21, cultura e interculturalidade.

Inicialmente, discutimos os três principais conceitos de língua/linguagem que circulam na literatura da área (GERALDI, 1984; KOCH, 1992; TRAVAGLIA, 1997; BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 2006) Ŕ língua como expressão do pensamento, língua como instrumento de comunicação e língua como forma de ação Ŕ pois temos a convicção de que toda e qualquer prática de ensino de um professor de LE reflete basicamente suas concepções Ŕ ainda que nem sempre bem delineadas Ŕ tanto do que é língua-linguagem quanto do que é ensiná-la.

Por considerarmos que ensinar uma língua estrangeira significa colocar os aprendentes em contato com um mundo culturalmente diferente do seu, refletiremos, em seguida, sobre cultura e alguns conceitos correlatos como identidade cultural e cultura educativa.

Fechamos o capítulo abordando o conceito de Interculturalidade e discutindo sua relação com o agir docente. Parece-nos de extrema relevância para os objetivos da presente investigação os postulados referentes, sobretudo, à interculturalidade. Em primeiro lugar, porque uma formação em línguas estrangeiras é, por definição, intercultural. Não se pode, na atualidade, falar de ensino de LE sem mencionar expressões como componente cultural, dimensão intercultural, competência

intercultural, competência comunicativa intercultural, noções que surgem a partir do

quadro teórico da interculturalidade. Em segundo lugar, conforme já explicitamos na introdução deste trabalho, nossa pesquisa se assenta em dois grandes eixos: a

21

Optamos por utilizar a expressão língua/linguagem, ao longo deste trabalho, principalmente nas passagens em que nos referimos, ao mesmo tempo, ao sistema (língua) e ao uso desse sistema (linguagem).

teoria do agir docente (ver Cap. 1) e a interculturalidade. Acreditamos que esses

dois eixos nos proporcionam os subsídios teóricos necessários para analisar os impactos que a pluralidade cultural pode ter sobre o agir docente dos professores de PLE, sujeitos de nossa investigação.