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1.2 AS AÇÕES DOCENTES

1.2.2 O que é o agir docente?

Conforme vimos delineando ao longo deste capítulo, o agir docente não difere completamente do agir de outros ofícios: há os atores do contexto de trabalho, há uma tarefa a ser desempenhada, há documentos pré-figurativos para tal trabalho, resultados específicos são esperados... No entanto, para descrever e analisar o agir do professor, é preciso levar em conta algumas particularidades que são inerentes ao processo de ensino-aprendizagem, haja vista que o trabalho no contexto educativo suscita variáveis que, muito provavelmente, não se aplicam a outras atividades laborais, ou pelo menos não têm a mesma importância para a sua realização.

Para a construção de um conceito de agir docente, conforme Cicurel (2011), é necessário observar, a priori, que esse agir não se realiza do mesmo modo se se consideram as seguintes variáveis: as culturas educativas, o ambiente, a personalidade e a formação do professor, as instituições e os públicos. Apenas para exemplificar quão distinto e complexo essas variáveis podem tornar o trabalho docente e, ainda, até que ponto essas variáveis parecem estar interligadas, considere-se o fator cultura educativa (ver cap. 2). Em se tratando de um público marcado por uma pluralidade linguístico-cultural (como o do contexto de nossa pesquisa), inevitavelmente, esse fator terá grande peso sobre as ações do professor. Este precisará rever o seu repertório didático e seu plano de trabalho com

muito mais frequência do que o faria se trabalhasse com um grupo mais homogêneo do ponto de vista linguístico-cultural. Assim, as culturas educativas (tanto as dos alunos, quanto as do professor) por si só já constituem uma variável determinante para distinguir o agir docente de outras atividades, uma vez que a heterogeneidade inerente aos espaços de aprendizagem complexifica bastante o estabelecimento de regularidades ou de tipicidades de ações.

Ainda que o agir docente seja fortemente influenciado e complexificado pelas variáveis supramencionadas, é possível identificar um conjunto de propriedades que ele comporta. Segundo Cicurel (2011), trata-se de um conjunto de ações verbais e não verbais, preconcebidas ou não, que são estabelecidas por um professor para transmitir e comunicar saberes ou um poder-saber a um dado público em um dado contexto. A autora destaca que, ao se falar do agir, dá-se ênfase ao fato de que, para desempenhar sua profissão de docente, o professor executa uma sequência de ações, em geral coordenadas e, às vezes, simultâneas e subordinadas a uma meta global, que são carregadas de intencionalidade.

É importante ressaltar que as ações docentes têm a particularidade de serem não somente ações sobre o outro, mas também de serem destinadas a provocar ações por parte de um grupo de indivíduos, haja vista que elas visam provocar transformações de saberes e, às vezes, de comportamentos.

O agir docente, de acordo com Cicurel (2011), é construído no encontro entre um projeto e uma interação com os alunos, assim como em concepções fortes que os atores professores possuem acerca de sua prática profissional. A pesquisadora afirma que todo docente pode ser enquadrado na seguinte situação: ele, o professor, se responsabiliza por implementar uma ação planificada. Esta, por sua vez, pode ser traduzida pela conformidade a um programa, à definição de objetivos, de metas etc., evidenciando, portanto, que acima da ação de ensino do professor alguma coisa preexiste e que ele deve seguir como direcionamento.

Para corroborar sua ideia, Cicurel lança mão da definição de ação proposta por Schutz (1998). Para este autor, o termo ação sempre irá designar a conduta humana como um processo em curso concebido pelo ator antecipadamente, ou seja, está baseado em um projeto preconcebido. Assim, o que o autor entende por ação corresponde aos passos dados pelo professor no exercício de seu ofício.

Todo e qualquer curso é precedido de um plano, conforme entendimento de Cicurel (2011). Esse plano ora pode ser preciso, ora pode ser apenas um esboço,

mas o professor nunca irá partir do zero. Desse modo, a ação docente possui um status de preconcebida (com objetivos que preexistem), sendo, pois, uma ação presumida racional que tem como meta favorecer ou permitir o aumento de conhecimentos dos outros atores desse processo: os alunos.

É sabido pelos profissionais da educação que um curso deve ter um começo e um fim, e que deve está preparado e, frequentemente, pré-organizado, por isso ele se presta à observação. No entanto, ainda que a ação seja circunscrita, observável, isso não diminui a extrema complexidade do agir docente, principalmente porque ele não se limita apenas ao momento do curso. Trata-se, na verdade, de uma ação que, em parte, existe anteriormente e que continua além do curso, uma vez que o processo de apropriação de um conhecimento em si mesmo vai muito além do tempo do curso. No âmbito das línguas-culturas estrangeiras, por exemplo, os resultados de uma ação de ensino podem ser esperados em longo prazo. Acrescente-se que, para a ação de ensino de uma língua-cultura, mais ainda do que para qualquer outra matéria, a razão de ser do curso é o uso da língua alvo fora do contexto de sala de aula e, frequentemente, posterior ao processo de ensino.

É importante salientar, no que diz respeito a essa planificação própria do agir docente, que esta não se concretiza sem encontrar obstáculos ou resistências, o que comporta sempre o risco de provocar uma desplanificação. É, pois, tarefa do professor reagir a esses intentos de desestabilização de seu agir, dirimindo as situações conflituosas no seu ambiente de trabalho e, sobretudo, aproveitando as ocasiões proporcionadas pelo grupo para atuar como mediador do saber a ser transmitido.

Cicurel (2011), ao analisar autocomentários de professores acerca de seu agir, chama atenção para a frequência de verbalizações que evidenciam um sentimento de fracasso proveniente do evidente hiato entre o que se previa e o que efetivamente se realizou em sala de aula. Não são poucos os casos em que a ação projetada pelo professor se depara com a vontade do outro, às vezes uma resistência por parte dos próprios alunos. Filliettaz (2002), quando descreve os traços que podem caracterizar uma ação, estabelece uma distinção entre os “produtos antecipados” e os “produtos emergentes”. No primeiro caso, consideram- se os resultados da planificação dos professores e, no segundo, os resultados oriundos das intervenções dos alunos. Para Cicurel (2011), essa clivagem entre o que está previsto e o que surge sem que nós esperemos se aplica bem ao agir

docente. Assim, a adaptação de um projeto de partida, seja opondo-se à demanda dos aprendentes, seja aceitando um desvio dos planos iniciais, deve ser considerada uma prática inerente ao trabalho do professor.

A análise de autocomentários de professores iniciantes de francês como língua estrangeira permitiu a Cicurel (2011) apreender uma questão bastante complexa com relação ao agir docente: Quais os critérios de sucesso de uma ação de ensino? De acordo com a autora, as dificuldades de se alcançar o sucesso das ações docentes provêm do fato de que os objetivos não são necessariamente os mesmos para os diferentes atores que formam o contexto de aprendizagem: os professores, os aprendentes, as instituições, os pais etc. No entanto, com base nos autocomentários de estagiários, Cicurel constatou que, para eles, o êxito do agir docente está atrelado, sobretudo, a dois fatores:

- O primeiro é a congruência entre o projeto, a planificação e o que acontece

efetivamente no curso das ações de ensino. Cicurel (2011) destaca que na

apreciação do sucesso interacional de um professor iniciante, preocupado com o seu desempenho, conta inicialmente o fato de ter conseguido fazer o que estava planejado dentro do tempo determinado;

- O segundo é a utilidade das ações cumpridas, que implica transmitir ou expor a matéria objeto da ação de ensino de modo claro e eficiente. Para atingir este objetivo, é necessário que o professor cative a atenção do público, seja eficaz e implemente as estratégias adequadas para que a aprendizagem ocorra realmente.

Nota-se, portanto, a partir dessa perspectiva de análise do agir de professores iniciantes, que a língua objeto de ensino não se configurou exatamente como o centro das preocupações dos docentes. Os fatores acima mencionados corroboram a ideia de que, de modo geral, o êxito do agir docente está fortemente associado à consecução adequada de um projeto, à atenção ao plano de ações de ensino e, ainda, à garantia de envolvimento, de ação conjunta entre os atores que constituem o contexto de trabalho do professor.