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A interface é um texto ou o texto é uma interface?

3 Interfaces e textos

3.1 A interface é um texto ou o texto é uma interface?

As interfaces gráficas de usuário dos computadores, como vimos, têm sofrido diversas transmutações e ajustes ao longo de sua existência, num percurso histórico que converge esforços de várias áreas do conhecimento, para atender àqueles que hoje estão no centro dos interesses de todos os que investem, no mínimo, tempo e dinheiro no seu desenvolvimento: nós, os usuários de computador.

Vimos que, no princípio, a importância da interface para o manuseio dos computadores era quase nula, já que aqueles que dependiam dela eram os mesmos que as desenvolviam. Os cientistas da computação, engenheiros e programadores eram os únicos usuários de computador, e eles não precisavam se preocupar em facilitar a vida de mais ninguém, a não ser a deles. Naquela época, imaginar uma interface “amigável” nem faria sentido, já que esse empenho poderia gerar um investimento inútil. O autor7 das interfaces era, portanto, o único detentor de seus sentidos e de suas artimanhas.

Num segundo momento, quando surge a possibilidade de os computadores atenderem a uma esfera maior de usuários, ampliando seu domínio, o desenvolvimento de interfaces começa a agregar outras áreas do conhecimento, como a Psicologia Cognitiva. O interesse dos usuários, suas necessidades e limites passam a ter importância relativamente maior e a busca por uma interface mais “legível” começa a ser aquecida. Mas o furor tecnológico, por certo período, acaba abafando o objetivo de atender aos usuários. A crença no ilimitado poder da tecnologia, de reproduzir a realidade tal qual ela nos é apresentada no mundo físico, elevou a importância e o status das interfaces como redentoras de todos os problemas relacionados à interação humano- computador.

Recentemente, talvez muito recentemente mesmo, os usuários voltaram a ter sua devida importância na produção de sentidos em ambientes digitais. Surgem estudos que medem performances no uso das interfaces, que perguntam aos usuários sobre problemas e entraves na interação com softwares, com websites e com sistemas informatizados. Alguns especialistas têm inclusive admitido falhas no processo de

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É necessário esclarecer que, nessa pesquisa, a palavra “autor” é utilizada de forma metonímica para representar a equipe de profissionais envolvida no desenvolvimento das interfaces. Essa convenção “didática” não restringe, portanto, o processo de design de interfaces à responsabilidade e mérito de um único autor. A questão da autoria das interfaces é um assunto complexo e que envolve não só diversos profissionais, como também diversas áreas do conhecimento.

criação de interfaces, assumindo que programadores costumam se favorecer optando por processos mais simples para eles e mais complicados de serem resolvidos pelos designers, prejudicando, é claro, a vida dos usuários.

Os avanços tecnológicos movimentam e são movimentados por essas mudanças epistemológicas. Nesse percurso, as idéias sobre computadores e interfaces, como vimos, foram se modificando. De aparelho matemático para cálculos complexos a meio a partir do qual se materializam várias manifestações comunicativas, a função social do computador tem se modificado ao longo do tempo, assim como o papel de seus agentes e de seu público.

Hoje, apesar dos visíveis avanços, ainda é possível perceber reminiscências de antigas tendências, negociando espaço e competindo legitimação e prestígio nas discussões sobre interação humano-computador. Nos manuais de design, há autores que já discutem técnicas de pesquisa qualitativa que levam em conta o percurso cognitivo dos usuários (PREECE et. all., 2005; COOPER et. all., 2007), mas outros ainda se limitam a descrever as possibilidades formais das interfaces (RASKIN, 2000). Enquanto algumas correntes admitem o “potencial comunicativo” das interfaces e assumem a importância de se pensar na qualidade das interações (MARTINS,DE SOUZA,1998;LEITE,DE SOUZA, 1999; OLIVEIRA, BARANAUSKAS, 1999), alguns autores ainda se limitam a pensar na

interface como detentora de todos os sentidos: “a razão primária é que a qualidade de qualquer interface é, no final das contas, determinada pela qualidade de interação entre um humano e um sistema – entre você e algo”. (RASKIN, 2000, xix)

Seguindo na linha de Bolter e Gromala, e ainda dos estudos da história cultural (BRIGS; BURKE, 2006) e da história dos objetos de leitura (CHARTIER, 1994, 1998), e

dessa forma admitindo o ambiente digital como meio a partir do qual se materializam suportes, gêneros e textos, num intenso processo de convergência (MANOVICH, 2001) e

remidiação (BOLTER;GRUSIN, 2003), uma passagem pelas teorias da enunciação e do

discurso (BAKHTIN, 2003) esclareceria o processo acima descrito, na medida em que seria possível admitir que a interface surge para cumprir uma função social, de um grupo ou determinado contexto social, para atender determinado público.

Nessa mesma linha de pensamento, seria fácil reconhecer um processo muito parecido que envolve o avanço nas pesquisas sobre linguagem, leitura e textos:

Hoje em dia dá-se muito valor ao trabalho do leitor na atividade de leitura, mas não foi sempre assim. Em um determinado momento, deu-se muita

ênfase ao autor do texto. Considerava-se que ele tinha o poder de controlar totalmente a interpretação do leitor, isto é, o texto tinha de significar o que o autor queria dizer. Mas essa idéia não se sustentou por muito tempo dada a sua fragilidade. A ênfase passou, então, para o texto, ao qual foi conferido o poder de controlar a leitura. O texto passou a ser considerado como responsável pelo seu próprio sentido. Logo foi possível perceber que nenhum texto é tão transparente assim e justamente isso é que impossibilita a construção de um único sentido para ele. Assim, a questão foi deslocada para o leitor e a preocupação com o sentido correto do texto foi abandonada. É comum, atualmente, o leitor ser considerado a figura-chave da leitura, o grande e poderoso produtor de sentido. (COSCARELLI, 1999, p. 73)

É nesse sentido que optamos por uma abordagem sociodiscursiva da interface. Seria apropriado, por questões de natureza dos gêneros e dos suportes, perceber a interface como meio cujos limites, marcas e gramática própria materializam uma quantidade cada vez maior de outros grupos relativamente estáveis de textos (BAKHTIN,

2003). Essa abordagem é utilizada por muitos pesquisadores que investigam a relação entre a leitura de textos impressos e eletrônicos8. Mas, como nosso objetivo neste trabalho é justamente entender como o usuário lê a interface, como constrói sentido na interação com os signos que lhe são próprios, preferimos pensar na interface como texto, produzido por determinado autor, para determinado leitor, sob certas circunstâncias e com um objetivo. Mais comumente tratada como suporte para materialização de textos de natureza diversa, a interface pode, é o que pretendemos discutir, assumir o status de texto a ser lido, processado, interpretado.

A definição de texto que usamos nesta pesquisa, e que mais tarde será detalhada e relacionada às particularidades da interface, é:

uma unidade lingüística concreta, (...) um conjunto organizado de informações conceituais e procedimentais (instruções de como ligar essas informações), que media a comunicação. É um produto de um ato discursivo, isto é, está sempre marcado pelas condições em que foi produzido e pelas condições de sua recepção. Assim, o texto não funciona autonomamente, posto que depende da ação de quem o produz, e também de quem o recebe, ou seja, não traz em si todos os detalhes de sua interpretação. Em outras palavras, o texto funciona como o fio condutor que liga tenuemente o escritor ao leitor, permitindo a interação entre eles em uma situação comunicativa concreta. (CAFIERO, 2002, p.31)

E exatamente por mediar a construção de sentidos no ambiente digital, provendo possibilidades de significação tanto para os designers (autores) quanto para os usuários (leitores), “através de práticas discursivas e cognitivas, social e culturalmente situadas” (CAFIERO, 2002, p. 45), é que a interface gráfica de usuário pode se materializar como

texto. Dessa forma, a interface é um texto, assim como qualquer texto é interface: ponto de contato entre o autor e o leitor.

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Buscamos, nessa abordagem, elucidar questões ainda não discutidas em relação à produção de sentidos na leitura das interfaces gráficas existentes hoje nos computadores pessoais. Assim como qualquer texto, as interfaces do meio digital não trazem em si todas as possibilidades de significação. Cada leitura é única porque cada leitor é único, com suas experiências e expectativas. Os leitores precisam buscar estratégias para entender e dar sentido à atividade que estão realizando no computador, acionando as instruções e marcas deixadas pelos autores, e acessando seus sistemas de conhecimentos, de crenças e de culturas.

O escritor deve ter habilidade de organizar a superfície textual com marcas e instruções suficientes e relevantes, o leitor deve ter habilidades necessárias para reconstruir o caminho marcado, percebendo-o nas instruções deixadas. (CAFIERO, 2002, p. 47)

A Engenharia Semiótica, uma disciplina que estuda questões da interação humano-computador, admite o caráter comunicativo da interação na interface e situa outras tendências:

As abordagens cognitivas para o design de interface normalmente buscam modelos do funcionamento da mente humana tentando entender quais características as interfaces devem ter para que elas sejam mais fáceis de usar e de aprender. Estas abordagens são de fundamental importância para a elaboração do modelo conceitual da aplicação. Elas, entretanto, deixam de considerar o amplo potencial comunicativo que as interfaces têm e que pode ser explorado no aprendizado deste modelo. A Engenharia Semiótica tem como objetivo explorar esta característica de metacomunicação que os sistemas computacionais possuem e oferecer ao designer instrumentação que o permita ensinar quais soluções ele projetou para os problemas dos usuários. (LEITE,DE SOUZA,1999, p. 7, 8)

Essa abordagem só foi possível a partir da idéia de computador como meio, como ambiente de interação. Apesar de sua importância no cenário dos estudos sobre interfaces, o viés semiótico tende a focar nos signos e nos processos de produção de signos, mais uma vez valorizando o autor como responsável pela interpretação do leitor. Para além das abordagens cognitivas e comunicativas, acreditamos que a abordagem textual/discursiva pode ajudar a entender estratégias de construção de sentido para as ações no meio digital, tendo em vista a importância dos três agentes (autor, texto, leitor) na produção de sentidos, ou seja, na leitura.

No próximo capítulo, vamos esclarecer nossa perspectiva sobre as particularidades desse texto (a interface de usuário do computador), suas pistas e caminhos.