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5 A Lingüística Cognitiva

5.3 Metáforas

5.3.1 A “metáfora do desktop” e a remidiação

Projetar interfaces a partir de metáforas, como vimos, é uma alternativa que tem origem nos primeiros desenvolvedores de interfaces gráficas, quando os computadores estavam começando a se emancipar de ambientes técnicos e especializados. Mas alternativas como essa só foram possíveis a partir do momento em que esse cenário passou a integrar outras áreas de conhecimento, como a Psicologia Cognitiva. Muitos engenheiros e cientistas da computação passaram a se interessar pelas questões da mente e do comportamento humano, e agregar conceitos como percepção, memória e atenção aos estudos da interação humano-computador. O Nielsen Norman Group é um grupo composto de pesquisadores que hoje são referência nessa área. Jakob Nielsen, Donald Norman e Bruce Tognazzini são seus principais representantes. Esses especialistas desenvolveram conceitos e heurísticas de usabilidade que se tornaram referência para o desenvolvimento de interfaces de computador.

Uma das métricas de usabilidade, hoje uma área da Computação voltada para a funcionalidade e a facilidade de uso dos computadores, é o uso de metáforas, uma das formas de se construir interfaces a partir de um modelo conceitual. Segundo Norman (2006), os modelos conceituais

fazem parte de um importante conceito de design: modelos mentais, os modelos que as pessoas têm de si próprias, dos outros, do ambiente e das coisas com as quais interagem. As pessoas formam modelos mentais através da experiência, treinamento e instrução. (p. 40)

A “metáfora do escritório”, correspondente à “camada” mais geral de mapeamentos e projeções entre o mundo analógico e o digital, que orienta a construção das metáforas nos programas e ícones, é tida como um exemplo de sucesso entre os estudiosos da interface (PREECE et. all., 2005; JOHNSON, 1997; NORMAN 1998, NIELSEN,

2005; RASKIN, 2000; COOPER, 2007), mas esses mesmos profissionais admitem que a

tentativa de fazer com que o computador se pareça com uma escrivaninha ou qualquer outra coisa que ele não é pode ser um problema tanto para os designers quanto para os usuários.

Algumas soluções extremas, como o caso do Bob (Microsoft, 1005) e o Magic Cap (figura abaixo), foram rapidamente abolidas, porque eram complicadas de usar.

FIGURA 7: O sistema operacional Magic Cap Fonte: NIELSEN, 1996

Segundo Johnson,

a verdadeira mágica dos computadores gráficos deriva do fato de eles não estarem amarrados ao velho mundo analógico dos objetos. Podem imitar muito desse mundo, é claro, mas não são também capazes de adotar novas identidades e desempenhar novas tarefas que não têm absolutamente nenhum equivalente no mundo real (...) O design de interface deveria refletir essa novidade, essa amplitude de possibilidades. (2001, p. 49)

A atitude mais problemática, portanto, é levar a metáfora do desktop ao pé da letra, forçando projeções inadequadas. Essa opção, realizada pelos projetores do Bob e do Magic Cap, limita as possibilidades do design de interfaces, já que a aparente eficiência na compressão de relações conceptuais entre o mundo “analógico” e o digital compromete o manuseio das interfaces, o estabelecimento de certos padrões típicos e singulares e a navegação pelos sistemas.

É nesse sentido que, a favor da usabilidade das interfaces – ou, como defendemos nesse trabalho, a favor da textualidade das interfaces – a questão do uso das metáforas, assim como as outras orientações para os autores, é modalizada nos manuais de design. Pelo menos dois problemas podem ser levantados em relação ao uso de

metáforas. O primeiro deles diz respeito à questão cultural que a metáfora imprime à interação:

Metáforas também lidam com associações percebidas de formas semelhantes pelo design e pelo usuário. Se o usuário não tiver o mesmo background cultural que o design, é fácil a metáfora falhar. Até mesmo nas mesmas ou semelhantes culturas, pode haver enganos significantes. (COOPER et. all., 2007, p. 272)

O outro problema está ligado à noção de modelo conceitual de Norman (2006): “um erro às vezes cometido pelos designers é tentar projetar uma metáfora de interface de maneira que ela se pareça e se comporte literalmente como a entidade física que está representando”. (PREECE et. all., 2005, p. 78)

Embora de acordo com essas críticas, ressaltamos que esses problemas não significam a nossa total condenação do uso de metáforas nas interfaces de computador ou que esse uso deva ser abolido pelos designers. Mesmo porque algumas ações são tão inéditas e tão diferentes daquilo que conhecemos no mundo real, que pegar emprestado conceitos e idéias já conhecidos pode ser uma boa alternativa, já que, como vimos, essa alternativa reduz a representação na interface a uma escala humana de conhecimento.

O sistema operacional Star, criado pela Xerox em 1981, foi pioneiro na utilização da metáfora do escritório como modelo conceitual para as interfaces gráficas. Naquela época, um objetivo importante do design consistia em “deixar o computador o mais ‘invisível’ possível para os usuários e em oferecer aplicações que fossem adequadas aos mesmos” (PREECE et. all., 2005, p. 62). Norman (1998) e seus

companheiros, em certa medida, ainda hoje defendem essa idéia do “computador invisível”, seguindo a linha do design de interfaces que estabelece critérios para a criação de um ambiente simples e fácil de usar e, dessa forma, permitir uma interação limpa, sem entraves para o usuário. Esses critérios, como vimos, são princípios muito semelhantes àqueles apontados pela Lingüística como fatores que facilitam a leitura dos textos (FULGÊNCIO;LIBERATO, 2007; COSCARELLI,1999).

Sabemos que para se chegar a um texto, a uma música, a uma página na Internet ou a qualquer outra mídia no computador, é preciso passar pela interface. Em uma situação ideal, com um usuário experiente e uma interface perfeita, a navegação poderá acontecer quase que imperceptivelmente, porque as marcas e a dinâmica já estarão internalizadas pelo usuário, que irá navegar com pouca dificuldade pelas janelas e se movimentar sem perceber que botões clicou, que ícones acessou, etc. As metáforas,

nesse caso, não precisam ser descondensadas pelos usuários. Por outro lado, no caso de um usuário não tão experiente, ou se essa interface não oferecer acesso claro e coerente até o conteúdo desejado, em vez de desaparecer, ela saltará aos olhos dos leitores. Serão necessárias muitas descompressões e complementações para que seja possível compreender e utilizar as interfaces, já que “a multiplicidade de janelas e a heterogeneidade de seu conteúdo fazem com que o usuário volte repetidamente ao contato com a interface, que ele aprende a ler como leria qualquer hipertexto” (BOLTER; GRUSIN, 2000, p. 33).

Nesse sentido, concordamos com esses autores, quando defendem que a lógica da imediação (da simplicidade, da transparência) deve acompanhar a lógica da

hipermidiacão (da experiência, do contato com os signos), na concepção das mídias

digitais. Bolter e Grusin (2000), Bolter e Gromala (2003) sugerem que os designers devem fazer com que o usuário olhe para a interface em vez de através dela. Para eles, essa é uma importante lição oferecida pela arte digital, a de que na interface devem convergir características de janela e de espelho:

A compreensão da dinâmica de oscilação entre as mídias deveria ser chave para entender como um meio redesenha seus predecessores e outras mídias contemporâneas. Apesar de cada mídia prometer reformar seus predecessores oferecendo uma experiência mais autêntica e imediata, a promessa de reforma inevitavelmente nos deixa cientes da nova mídia como um meio. (BOLTER; GRUSIN, 2000, p. 19)

Aprender a ler a interface é o desafio dos usuários inexperientes e talvez dos mais experientes também. É impossível ignorar a multiplicidade de signos e o ineditismo dos processos com os quais os usuários/leitores da interface se deparam no meio digital. Um exemplo dessa incoerência é o ícone do pincel ( ), presente nos editores de texto. Um pincel, no mundo físico, serve para pintar. Talvez possa ser usado como espanador de pó ou seu cabo possa até ser usado como martelo em alguma emergência, mas a ação que esse pincel representa está muito distante das suas possibilidades de atuação no mundo físico. Apesar de aparentemente buscar projeções do mundo físico para explicar uma ação do ambiente virtual, a relação conceptual construída para esse ícone é arbitrária e dificilmente um usuário inexperiente identificará nessa imagem a função de reproduzir a formatação de um trecho do texto em outro.

É claro que essas inconsistências não são tão fáceis de solucionar, mesmo porque muitas ações e conceitos são exclusivos do ambiente digital. Como representá-

las? Esse é um dos grandes desafios dos designers de interface: construir um texto coerente e legível para os seus leitores.

Bolter e Grusin explicam a natureza e as descontinuidades da remidiação nas interfaces digitais:

De fato, a interface gráfica faz referência não só a objetos culturalmente familiares, mas especificamente a mídias anteriores, como pintura, datilografia e escrita. Ao fazer essas referências, os designers de computador estão criando um sistema muito complexo no qual formas icônicas e arbitrárias de representação interagem. (2000, p. 32)

O meio digital, suporte a partir do qual materializam-se novos gêneros e textos, redesenha e reorganiza seus predecessores e, dessa forma, reorganiza também práticas de leitura e de escrita. Ignorar a interface como um suporte para novas atividades de linguagem é ignorar as formas pelas quais ela molda a nossa própria experiência.

Assim como ler um livro de folhas costuradas (códex) exigiu dos leitores técnicas e aprendizados diferentes da leitura do volumen, nos primeiros séculos da era cristã, ler na tela traz para os leitores novas relações com a escrita e com a leitura, novas técnicas intelectuais (LÉVY, 1993; CHARTIER, 1994, 1998). Os objetos de ler, buscando

certa “transparência”, são construídos a partir de uma estrutura que os torna estáveis e coerentes. Esse processo de adaptação, de remidiação, exige um esforço tanto de leitores quanto dos profissionais envolvidos no desenvolvimento dos materiais de leitura (editores, no caso dos livros; programadores e designers, no caso dos computadores).

A questão é que hoje, após quarenta anos de evolução da informática e do surgimento da Internet, a idéia que fazemos do computador extrapola o domínio do escritório ou da sala de estudos. Para cada uso, o computador assume um papel diferente, para além da escrivaninha cheia de papéis com uma lixeira em cima. De videogame a aparelho de som, de ambiente de relacionamentos a correio virtual, cada usuário define a utilidade e o papel que o computador representa em cada momento de interação. A convergência de mídias, potencializada pela Internet, distancia cada vez mais o usuário da idéia do computador como escrivaninha.

Essa contradição, acreditamos, interfere na maneira como lidamos com as interfaces gráficas, ou seja, apesar de das interfaces, há quase quarenta anos (ou desde sempre), forçarem a aparência da tela do computador como uma escrivaninha, os usuários criam a cada dia novos usos, novos significados e novas formas de lidar com o

computador, o que significa que não é somente o frame para “atividades em um escritório” que é ativado nessa interação. Um usuário experto, possivelmente, irá lidar com essas mutações com mais destreza do que aquele que é inexperiente e está tentando construir um sentido para aquilo que busca realizar no computador.

Que leitura esse usuário novato faz do computador? De que forma ele desconstrói e processa a “metáfora do desktop”? Que outras referências são necessárias? Essa representação influencia de alguma forma a qualidade da interação? Levantar essas questões ajuda-nos a esclarecer a complexidade que envolve o problema da construção de sentido na interface gráfica de usuário.

As discussões teóricas articuladas até agora foram apresentadas e discutidas a fim de que se aproximassem do nosso objeto de estudo: a leitura das interfaces gráficas do computador. Questões sobre a textualidade nas interfaces serviram como subsídios para nossa proposta de adaptação do modelo de leitura reestruturado (COSCARELLI, 1999), e integraram a esse modelo questões particulares da representação no ambiente digital, como suas características relativamente estáveis e a multiplicidade de modos que a compõe – multimodalidade (KRESS, VAN LEEUWEEN, 1996, 2002). Apresentamos também os conceitos caros à teoria da Mescla Conceptual (FAUCONNIER, TURNER, 2002) que serão utilizados nas análises, quando tentamos compreender os processos mentais de “alto nível”, realizados quando os usuários interagem com as interfaces gráficas dos computadores. A seguir, apresentamos nossas escolhas metodológicas (capítulo 6), os resultados e análises (capítulo 7) e as considerações finais deste trabalho (capítulo 8).