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5 A Lingüística Cognitiva

5.1 A linguagem e a construção de sentidos

Esta pesquisa parte do pressuposto de que a interface foi criada para facilitar a interação das pessoas com os computadores e que, por isso, utiliza metáforas visuais como referência a representações familiares de seus leitores. A partir dessa premissa, questões importantes norteiam nossa investigação: Que referências cada pessoa constrói ao lidar com a interface? Que significados emergem dessa interação? Como outras práticas letradas influenciam as experiências de construção de sentido? Quais os limites e possibilidades dessa interação? É possível afirmar que todas as pessoas vivenciam as mesmas experiências de construção de sentido quando estão utilizando ou aprendendo a utilizar o computador?

Para tentar responder a essas perguntas, buscaremos subsídios teóricos na Lingüística Cognitiva, a partir de uma concepção de linguagem que desconsidera as divisões tradicionais da lingüística e, em vez de trabalhar a partir da combinação de níveis distintos de categorias (morfema, lexema, frase, sentença, etc.), lida com a noção de construções. O sentido é construído a partir do processamento dessas construções e o resultado desse processamento será sempre uma estrutura emergente, não- composicional, ou seja, diferente da simples combinação dos elementos iniciais.

Segundo essa corrente teórica, os processos cognitivos responsáveis pela construção de sentido de qualquer categoria, seja ela lingüística ou de outra natureza, envolvem os mesmos princípios: construção de cenários (esquemas21, frames22,

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Segundo David Rumelhart e Andrew Ortony (1977, citado por CHIAVEGATTO, 2003), esquemas são conceitos organizados em estruturas mentais, abrangendo uma série de conhecimentos significativamente inter-relacionados, dependentes do sujeito que os observa e das relações que estabelece com o contexto. Um esquema pode incluir outros esquemas e variar em graus de abstração. Incluem informações sobre conceitos (computador), atributos dentro de conceitos (modelo do computador), conceitos e contextos particulares (computadores, Internet e cibercultura), conceitos específicos e o conhecimento básico geral (hackers, antivírus, spam, placa de vídeo, monopólio de software, etc.), relações causais (desligar o computador sem salvar provoca perda de informações), entre outros. Esses conhecimentos servem de base aos esquemas para a extração de inferências em novas situações. Outra informação importante fornecida sobre o conceito de esquemas está em Mello: “Um esquema é uma estrutura coerente e integrada, e não um grupo de traços. A organização de um esquema é paralela àquela de estruturas semânticas, fonológicas ou simbólicas às quais está relacionada, portanto reflete o que há de comum entre elas. O componente essencial dessa relação é a granularidade: um esquema apresenta apenas algumas características gerais das estruturas que ele categoriza” (s/d). A noção de granulação, que tem origem na psicologia Gestalt, é de suma importância para o entendimento do nível de conhecimentos e conceitos possíveis de serem acionados pelos usuários leigos.

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Para Fillmore, frame é “qualquer sistema de conceitos relacionados de tal forma que para se compreender um deles é necessário compreender toda a estrutura na qual ele se insere; quando uma das coisas nessa estrutura é introduzida em um texto ou uma conversação, todos os outros são automaticamente postos à disposição.” (1982, citado por ARAÚJO, 2005)

scripts23)24, modelos cognitivos, seleção de categorias, relações metafóricas e metonímicas, mesclas conceptuais, entre outros.

Apesar de essa visão aparentemente ir de encontro ao modelo de leitura que adotamos, acreditamos que as duas teorias são, na verdade, complementares. O modelo de leitura reestruturado, como vimos, lida com domínios especializados que, mesmo não atuando de forma rígida, são responsáveis por certas questões específicas da recepção, do contato com os signos (como a lexical, a sintática e a semântica, por exemplo). O processamento desses domínios acontece sem linearidade, de forma integrada e articulada. A qualidade da percepção e da recepção das formas e dos arranjos formais (lingüísticos ou não) deve acontecer de forma integrada para que as atividades mentais “superiores” possam ser ativadas coerentemente.

O significado, tanto para o modelo reestruturado quanto para a Lingüística Cognitiva, é o resultado de uma construção complexa, integrada e não-composicional. Na recepção, esse significado é condicionado, de um lado, pela qualidade dos signos e, do outro, pelos conhecimentos que cada leitor aciona para compreender esses signos. Os diversos domínios cognitivos de leitura são acionados e gerenciados nos frames ativados pelo leitor. Esses frames, por sua vez, viabilizam e complementam as atividades mentais de “alto nível”, nas quais acontece a integração das referências com a construção de estruturas emergentes. Na integração, os diversos elementos ativados nos espaços mentais e complementados pelos frames são integrados de forma não- composicional. A variação na construção do significado ocorrerá de acordo com os modelos culturais e com a dinâmica da situação comunicativa.

Essa capacidade de integração nos é dada porque nós, seres humanos, temos a habilidade de realizar projeções, de construir significados a partir da congruência de processos cognitivos de naturezas diversas ou de estabelecer relações de sentido a partir de princípios que não são lógico-formais, como a construção de esquemas e cenários.

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Scripts são estruturas organizadas a partir de rotinas ou “esquemas de evento (...) que, por sua vez, são expectativas sobre toda uma seqüência de acontecimentos de determinados eventos”. (ARAÚJO, 2005, p. 28) Segundo Chiavegatto, um script é “uma estrutura que descreve as seqüências adequadas de eventos em um contexto particular. É constituído de lugares e requisitos sobre o que pode preencher esses lugares, em uma estrutura que é um todo interconectado, pois o que está em um lugar afeta o que pode estar em outro lugar”. (2003, s/p)

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Apesar de detalharmos, nas notas anteriores, as diferentes nuances adotadas por certos autores entre a noção de frames, scritps e esquemas, neste trabalho adotaremos, de acordo com os autores da teoria da Mescla Conceptual (FAUCONNIER,TURNER, 2002), apenas a noção de frame como integradora de todos essas estruturas conceptuais.

O sentido não reside nas expressões ou nas sentenças, mas “emerge do contexto, que emerge, dentre outras coisas, do contexto cultural recorrente” (PALMER, 1996: 40).

O sentido emerge da interação entre os interlocutores, que “carregam identidades históricas e sócio-políticas” (PALMER, 1996: 38), nunca como resultado da soma lógica

dos elementos constitutivos dessa atividade de linguagem. A relação de sentido é construída muito mais a partir de associações contextuais e funcionais do que por associações combinatórias ou formais. Um único item lexical isolado não diz muito sobre seu significado. São os modelos culturais aos quais pertence cada indivíduo que habilitam a construção do sentido, ou seja, habilitam o indivíduo a fazer inferências e previsões, a decidir que ação realizar e a controlar sua execução.

Essa é uma habilidade humana que Coulson (2001) chama de “saltos semânticos”, ou seja, a capacidade de mapear informações de domínios de conhecimento diferentes e construir um sentido emergente dessas informações, desde que os interlocutores possuam um pano de fundo contextual adequado.

Acreditamos que as questões acima, que fundamentam a teoria da Mesclagem Conceptual de Fauconnier e Turner (2002), fazem parte também dos pressupostos teóricos do modelo de leitura reestruturado de Coscarelli, e é esse diálogo que buscaremos materializar na análise da leitura nas interfaces gráficas dos computadores. Ao articular os conceitos delineados por esses autores para o estudo da compreensão, valorizando suas categorias cognitivas e formais, mas sem desconsiderar as questões culturais e históricas envolvidas nesse processo, tentaremos nessa pesquisa buscar uma postura semelhante à de Ribeiro, quando defende:

ainda que optemos por desenvolver esta investigação a partir das definições da Lingüística, não abrimos mão de considerar a leitura do ponto de vista de sua história e sociologia, compreender o leitor como ser histórico e suas práticas como gestos aprendidos, desaprendidos, reaprendidos, reconfigurados e mesmo “aprendíveis”, gestos que se herdam de práticas outras, na lida com objetos de pequena ou grande tradição, ampla ou estreitamente conhecidos (2008, p. 77).

Dessa forma, se consideramos a interface como um texto, produzido a partir de determinada situação de comunicação e, como vimos, criado a partir de um contexto cultural, para um público cujos modelos culturais podem variar em escalas mundiais, pensar a interface também como uma construção, nos limites e do escopo da LC, pode nos auxiliar na busca de respostas para as questões levantadas em nossa pesquisa.

Nessa perspectiva, fica claro, por exemplo, que pouco provavelmente teremos experiências idênticas de construção de sentido e de navegação pela interface. Da mesma forma como cada pessoa vive experiências diferenciadas de leitura de um mesmo texto, a experiência na interface também será sempre variada e cada usuário pode buscar referências diferentes para realizar uma mesma ação no computador. Esse fato é facilmente comprovado, já que a própria interface permite que se percorram caminhos diferentes para se executar uma mesma tarefa. A escolha desses caminhos será tão variada quanto os frames e os modelos culturais ativados para essa interação.

As possibilidades de significação, apesar de viabilizadas e diversificadas pelo contexto e pela qualidade do processamento cognitivo dos leitores, estarão sempre atreladas aos limites do texto. Coscarelli lembra que “as inferências são informações que o leitor ou ouvinte adiciona ao estímulo lingüístico por ele recebido, com o aval desse estímulo. Isto é, as inferências produzidas pelo recebedor do texto têm de ser ‘permitidas’ pelo texto” (1999, p. 134).

Ler o não-dito, em uma interface, é tão importante quanto em qualquer outro texto. Assim como toda atividade de leitura, para ler as interfaces é necessário que o usuário acrescente informações ao texto para conseguir identificar as instruções a partir dos signos na tela. Apesar de existirem várias maneiras de se realizar uma tarefa na interface do computador, assim como um texto pode suscitar várias leituras, existem limites que são impostos pelo texto a partir das escolhas dos autores.

O objetivo de leitura, que no caso da interface está relacionado à realização de uma ação previamente conceptualizada, é uma questão importante para a qualidade da compreensão. Para Coscarelli, esse objetivo

influencia a seleção das estratégias que o leitor vai usar, as atividades relacionadas à memória, à ativação dos esquemas, à velocidade da leitura, à construção do significado, entre outras atividades. Em suma, pode-se dizer que o objetivo da leitura determina as operações cognitivas que o leitor tem de fazer, incluindo-se aqui a produção de inferências. (COSCARELLI, 1999, p. 24)

Optamos por analisar situações de uso da interface justamente porque os usuários/leitores poderiam definir anteriormente seus objetivos de leitura e, dessa forma, determinar melhor os esquemas que deveria ativar e as inferências que poderiam ajudar na construção de sentido para aquele texto. Ao analisarem as tarefas que deveriam executar no computador, os sujeitos dessa pesquisa, no entanto, demonstraram uma enorme dificuldade para acionar frames adequados aos seus objetivos, já que seus

conhecimentos anteriores e seu letramento não permitiam uma conceptualização adequada que correspondesse aos limites e possibilidades do computador, a partir da interface.

O leitor das interfaces gráficas de computador precisa reunir, o tempo todo, informações que estão dentro e fora do texto para construir uma leitura correta dos

widgets. Esse processamento da leitura pode provocar uma série de interpretações

equivocadas. Isso acontece porque a interação na interface não permite ao leitor a “compreensão nas entrelinhas, para trocadilhos, para poesia” (DOMINGUES, 2001, p. 09). Domingues compara ainda a leitura na interface à leitura de uma receita de bolo e relaciona a qualidade das informações procedimentais desses textos às habilidades de leitura que um sujeito precisa para interpretá-los. Na receita de bolo, a instrução “ligar o fogo” requer que o leitor já tenha internalizadas outras instruções, como colocar a panela com água no fogão, ligar o gás, aproximar o palito de fósforo até a boca do fogão correspondente, etc. Essas informações não estão no texto, mas são necessárias para que o sujeito possa fazer o bolo. Identificar corretamente o não-dito em uma interface de computador é tão complexo quanto em qualquer outro texto. Como em qualquer leitura, é necessário que o leitor acrescente informações ao texto, a partir dos conhecimentos que tem sobre esse texto e sobre outras práticas de leitura.