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1. TELENOVELA, CONSUMO E ESTUDOS FEMINISTAS E DE GÊNERO:

1.2 A INTERFACE COM OS ESTUDOS FEMINISTAS E DE GÊNERO

Consideramos relevante compreendermos a importância dos movimentos sociais na formação dos Estudos Feministas e de Gênero. Em uma sociedade em que aos homens cabiam o controle político, religioso e científico, às mulheres restavam consentir ou resistir. O conhecimento sequer pertencia à natureza feminina, poderia causar danos à saúde como

“comportamento aberrante, esterilidade, degeneração racial [...], inclusive porque, do desenvolvimento do cérebro feminino, resultava a atrofia do útero” (SOIHET, 2000, p. 15). No final do século XIX, na Europa e nos Estados Unidos surgiam os movimentos sufragistas, período que denominam de primeira onda feminista. No Brasil, o movimento aparece no início da década de 1920 sob a figura, principalmente, de Bertha Lutz – acadêmica e da elite, que

9 A Covid-19 é uma infecção respiratória provocada por um novo coronavírus (SARSCoV). Os casos iniciais da doença foram diagnosticados em Wuhan, China, em agosto de 2019, e rapidamente o vírus foi se espalhando por todos os continentes. No Brasil, as primeiras transmissões foram relatadas em março de 2020. Em 23 jun.

2020 havia 1.146.906 pessoas contaminadas no Brasil, com o total de 52.771 mortos (UOL, 2020).

lutava pelo direito das mulheres ao voto e de concorrer a cargos públicos (TELES, 1999;

SOIHET, 2000; PINTO, 2003). Por parte das operárias - imigrantes italianas, portuguesas e espanholas-, surge o feminismo anarquista que questionava o espaço público, a opressão masculina e a exploração do trabalho da mulher. Estes movimentos ocorrem na região Sudeste, mas foram importantes para iniciarem mudanças em uma época em que mulheres e pessoas indesejáveis na sociedade eram enviados para serem esquecidas em hospitais psiquiátricos, como o Colônia, em Barbacena-MG (ARBEX, 2019).

A chamada segunda onda feminista surge nos EUA e Inglaterra por volta dos anos de 1960, buscava justiça social e econômica, além de promover debates sobre sexualidade e direitos reprodutivos. É durante a segunda onda que aparece o feminismo radical que enfatizava que a raiz da desigualdade entre homens e mulheres era o patriarcado – o movimento questionava a heterossexualidade, a pornografia e o excesso de feminilidade da mulher (TONG, 2009).

Este é um período que coincide com a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), ou seja, as pautas eram outras. Com o início da ditatura, muitas mulheres foram presas, torturadas, mortas, acusadas de subversão, outras exiladas. Dentre aqueles que foram denunciados, cerca de 12% eram mulheres (TELES, 1999).

A ONU intitula o ano de 1975 como o “Ano Internacional da Mulher”, realizando eventos no Brasil e em várias partes mundo. Para muitos, este é o marco da retomada do feminismo no país - com ressurgimento de debates sobre as mulheres. Entretanto a união das mulheres, principalmente da periferia, permaneceu durante toda a ditadura, elas se mobilizavam reivindicando políticas públicas que garantissem acesso à educação, ao transporte e direitos trabalhistas. As mulheres também foram fundamentais na luta pela anistia (TELES, 1999;

BLAY, 2017).

Ao final da ditadura, em 1985, os movimentos feministas que se formaram na década de 1970 mobilizaram lideranças para pressionar os constituintes na elaboração de ementas que favorecessem às mulheres na Constituição de 1988. Esta mobilização garantiu a igualdade constitucional entre homens e mulheres, direitos à creche, licença-maternidade, direito às presidiárias de permanecerem com o recém-nascido, entre outros.

A terceira onda feminista inicia-se na década de 1990 nos Estados Unidos e nos anos 2000 na Inglaterra, questionando o excesso de feminilidade da mulher e combatendo o

pós-feminismo10 (EVANS, 2015). É na década de 1990 que o conceito de interseccionalidade insere-se na agenda da justiça social, pois sem a interseção de classe e raça, de sexualidades, entre outras, não seria possível almejá-la. Neste período, os binarismos começam a ser questionados: mulheres em oposição a homens, sexo feminino verso masculino. E as mídias digitais tornam-se uma ferramenta de mobilização, de construção de redes e de divulgação de eventos. Consideramos relevante apresentar o que ocorria fora do Brasil para identificarmos as semelhanças e diferenças entre os países. Além disso, faz necessário pontuar o que ocorre nos Estados Unidos uma vez que parte de nossa pesquisa é realizada em Boston.

No Brasil, a partir da década de 1990, o movimento feminista se ramifica e intensifica em busca de melhorias e maior participação política das mulheres. Ao afirmarem que o pessoal é político as feministas brasileiras estabelecem mudanças no paradigma entre o público e privado, exigindo políticas públicas que agissem na esfera privada para coibir as agressões às mulheres, a criação de abrigos e delegacias especializadas no atendimento às vítimas (CARNEIRO, 2003; COSTA, 2006). Carneiro (2003) utiliza a expressão “enegrecendo o feminismo” para assinalar o percurso das mulheres negras no feminismo brasileiro, apontando a desigualdade de gênero, inserindo a pauta antirracista e a busca por uma sociedade multirracial e pluricultural. A autora ressalta a importância da intersecção do gênero, que transforma as mulheres em sujeitos políticos e faz com que estas assumam o seu lugar, suas falas e seus olhares para os seus processos de luta e não se prendam às reivindicações/ demandas das mulheres que não são as do grupo ao qual pertencem.

Embora as mulheres lésbicas já viessem se articulando desde a década de 1970 dentro do movimento LGBTTs (LESSA, 2007; SIMÕES, FACHINI, 2009), em 1990 as lesbianas constroem agenciamentos dentro dos movimentos feministas na busca de cidadania - eram vítimas de violência física e simbólica, obrigadas a se casarem e a serem mães dentro de relações heteronormativas. Assim como o feminismo radical norte-americano, o grupo questionava a heterossexualidade compulsória e o patriarcado (LESSA, 2007).

Os movimentos feministas começam a atuar na esfera política, dentro dos partidos, tanto no Legislativo, quanto no Executivo e menos na esfera social, diminuindo a visibilidade sobre eles ao longo dos anos 2000. Com o acesso às novas tecnologias e a internet vemos a retomada/ intensificação dos ativismos a partir da segunda metade da década de 2010. “As meninas descobriram o feminismo e foi uma festa para as velhinhas”, disse a pesquisadora

10 O pós-feminismo é um movimento que surge afirmando que as mulheres já conquistaram seus direitos e não necessitam mais dos feminismos.

Hollanda ao Estadão sobre o atual ativismo das jovens brasileiras (Estado S. Paulo, 2019). Os feminismos retornaram na esfera virtual com novas ramificações e reivindicações, com questões de gênero e sexualidades redefinidas.

Quanto à produção acadêmica, nos Estados Unidos e Inglaterra, o interesse pelos estudos feministas e de gênero inicia-se com o movimento da segunda onda feminista, na década de 1960. As acadêmicas perceberam que toda produção científica era pautada nos ensinamentos dos homens, nas narrativas por eles contadas. Dessa forma, as jovens feministas acadêmicas iniciaram um movimento dentro das Ciências Sociais e Humanas para romper a cultura androcêntrica – era necessário fazer com que a história das mulheres emergisse das ciências não mais sob o olhar dos homens (SCOTT, 1992). Este foi um período que movimentou as universidades, expôs os preconceitos, os assédios, as dificuldades dos grupos minoritários na produção científica, mobilizando pesquisadores e estudantes. Os estudos sobre as mulheres iniciam-se como disciplinas e, em 2003, já havia se tornado programa (Women’s and Gender Studies) em pelo menos 36 universidades norte-americanas (BOXER, 2002).

No Brasil, desde o séc. XIX as intelectuais feministas vêm se destacando nos movimentos, mas a produção acadêmica vigora a partir dos anos de 1970, principalmente nas Ciências Sociais, Humanas e na área da Saúde. A tese defendida por Heleith Saffioti, “A mulher na sociedade de classe: mito e realidade”, em 1969, é um marco por trazer questões relativas às mulheres e realizando a intersecção das classes. Toda sua trajetória acadêmica foi dedicada às pesquisas sobre as mulheres brasileiras (PINTO, 2003). É importante ressaltar, que embora Saffioti tenha trabalhado a mulher em oposição ao homem, ao ler a sua produção vemos que a autora reconhece a existência de diferentes relações de poder, “os processos socioculturais de discriminação e outras categorias sociais constitui o caminho mais fácil e curto para legitimar a ‘superioridade’ dos homens, assim como a dos brancos, a dos heterossexuais, a dos ricos”

(SAFFIOTI, 1987, p. 11).

Ao longo dos anos, surgiram grupos de pesquisa, núcleos, revistas, projetos, disciplinas, mas não existe nenhum programa específico de Estudos Feministas e de Gênero no Brasil. O mais próximo de um programa é o Pagu (Núcleo de Estudos de Gênero), referência no país, criado em 1993 na Universidade de Campinas (PINTO, 2003). No Campo da Comunicação, desde 2015, vemos o surgimento de núcleos de pesquisa, seminários e grupos de trabalho - como o GT “Comunicação, Gêneros e Sexualidades”, criado em 2019, na Compós, resultados do aumento do número de teses, dissertações e artigos com estes estudos.

Se a década de 1990 é o período de redemocratização do Brasil, de legitimação de novos campos do conhecimento e de intensa mobilização social, com diversos ativismos

reivindicando espaços, visibilidades e políticas públicas. Nos anos de 2010, vemos o surgimento de novos movimentos, com novas pautas, a necessidade de reafirmar/ solidificar a democracia do Brasil e os Estudos Feministas e de Gênero adentrar novos campos científicos, sendo inseridos por agentes dispostos a questionar o monopólio do conhecimento (BOURDIE, 1993), em geral, acadêmicas feministas e/ ou pesquisadores LGBTQIA+.

São vários as teorias dentro dos Estudos Feministas e de Gênero e a interseção entre elas ocorrem a partir do nosso corpus de pesquisa, no nosso caso, estamos trabalhando com discursos sobre mulheres em cinco telenovelas de Gloria Perez transmitidas entre 1990 a 2017 e como estes discursos se manifestam na vida das entrevistadas, que apenas conheceremos no ato da entrevista. Porém, sabemos que são mulheres, entre 20 a 55 anos, residentes na grande São Paulo, Goiânia, Brasília e na grande Boston, neste caso, são mulheres imigrantes.

O Estudo Feminista Interseccional faz parte de nossa pesquisa como estratégia analítica (COLLINS, 2015; COLLINS, BILGE, 2016), voltaremos nesta questão posteriormente. Este surge nos anos de 1990, nos Estados Unidos, com os estudos de raça/

classe/ gênero, foi “nos estudos das mulheres - não nos estudos raciais ou étnicos, nem nos estudos de estratificação social (classe) em sociologia, nem em psicologia ou em outras disciplinas tradicionais - que surgiram os estudos de raça, classe, gênero e sexualidade"11 (WEBER apud COLLINS, 2015). O Estudo Feminista Interseccional observa o mundo em sua heterogeneidade, como a vida política e social interagem e afetam de forma distinta cada sujeito.

E ao a adotarmos uma lente analítica compreendemos que as categorias propostas não funcionam enquanto simples categorias, mas que atuam mutuamente, construindo-se umas sobre as outras. Por isso, o Estudo Feminista Interseccional funciona como eixo de nossa pesquisa, pois buscamos a multiplicidade e diversidade de mulheres em recortes pré-definidos e em outros que serão encontrados nos discursos tanto das telenovelas, quanto das entrevistadas, intersecções que não atuam de forma isolada.

Nossa pesquisa é uma pesquisa sobre mulheres em um dos produtos da indústria cultural mais importante do Brasil, que é a telenovela. Os Estudos Feministas e de Gênero questionam o status quo, desafiam a dicotomia imposta entre homens e mulheres, questionam as relações de poder, o gênero, as sexualidades, as construções e discursos históricos, sociais, políticos, sobre as mulheres, as feminilidades, masculinidades, enfim, observam a sociedade de forma crítica, adentrando às questões culturais e econômicas sob um olhar que contradiz o

11 “It is in Women’s Studies – not in racial or ethnic studies, not in social stratification (class) studies in sociology, not in psychology or in other traditional disciplines – that race, class, gender, and sexuality studies first emerged” (WEBER apud COLLINS, 2015).

hegemônico. Investigam os complexos mecanismos de regulação, de inclusão e exclusão social (DIRCH; HAWKESWORTH, 2018).

Ao pesquisarmos as mulheres estamos falando de gênero, sexualidades, corpos, raça/

etnia, migrações, violências, justiça reprodutiva dentre tantos outros assuntos que emergem do nosso objeto de pesquisa. Ao longo das análises os estudos serão apresentados à medida em que os tópicos forem aparecendo.

Entretanto, posicionamos desde já a nossa compreensão sobre mulheres que em sua diversidade e pluralidade abarca as mulheres não-trans e trans. A patologização da transexualidade pelo campo médico e, em especial, pela psiquiatria, gerou o “padrão de corpo errado” (BETTCHER, 2013, 2014) em que há um “desalinhamento entre identidade de gênero e corpo sexuado” (BETTCHER, 2013, p. 383, tradução livre)12. Faz-se necessário ressaltar que, até 2018, a transexualidade era vista como uma doença mental, classificada como um transtorno de identidade sexual pela CID 10 – F6413.

Bettcher (2013, 2014, 2017) afirma que existem dois modelos dominantes quando se discute a transexualidade: o “padrão de corpo errado” e o “padrão transgênero”. O primeiro versa sobre um desarranjo entre identidade de gênero e órgão sexual, sob esta visão pousa a ideia de que uma pessoa possui incondicionalmente um determinado órgão sexual, masculino ou feminino, e com a cirurgia de redesignação sexual o corpo se ajusta à identidade de gênero.

Como se este processo fosse o caminho para que a pessoa se validasse enquanto homem ou mulher.

O segundo modelo, de caráter político, é denominado de “padrão transgênero” em que as pessoas trans desafiariam “o binário tradicional entre homem e mulher” (BETTCHER, 2014, p. 234, tradução livre)14 - não se encaixando dentro destas categorias – e se localizariam para além do binário. Para se inserirem socialmente o único caminho seria a cirurgia de redesignação sexual, uma pressão imposta pelo poder hegemônico com o intuito de invisibilizar as pessoas trans. A crítica da autora pousa no “além do binário”, pois parece invalidar a autoidentidade daqueles que se consideram homem ou mulher, independentemente de sua genitália.

12 “[…] a misalignment between gender identity and the sexed body” (BETTCHER, 2013, p. 383).

13 CID é “a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde é um das principais ferramentas epidemiológica do cotidiano médico Desenvolvida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), tem como principal função monitorar a incidência e prevalência de doenças, através de uma padronização universal das doenças, problemas de saúde pública, sinais e sintomas, queixas, causas externas para ferimentos e circunstâncias sociais, apresentando um panorama amplo da situação em saúde dos países e suas populações” (PREBMED, 2019).

14 “[…] the traditional binary between man and woman” (BETTCHER, 2013, p. 234).

Bettcher (2013, 2018) afirma que os dois modelos pressupõem que exista apenas um significado para gênero que acaba por apagar os significados resistentes e aceita o status marginal das pessoas trans. A autora questiona a definição da palavra mulher, que, conforme enfatiza, se modifica de acordo com o contexto - seu significado é político e regido pelas normas dominantes. “Desse modo, uma pessoa trans pode ser considerada como ‘verdadeiramente homem’ de acordo com práticas culturais dominantes, enquanto é vista como uma mulher em uma subcultura trans mais amigável" (BETTCHER, 2013, p. 240, tradução livre)15.

As pessoas trans devem reivindicar o direito de serem mulher ou homem e o fazem pela desconstrução da palavra, pela linguagem e pelos corpos, quando assumem suas identidades de mulheres ou homens trans. Falar de mulheres é falar das diferentes formas de opressão que se impõem sobre elas, sobre seus corpos. O corpo feminino não deve ser visto apenas através de suas categorias biológicas, reprodutivas. Seriam as mulheres que não conseguem ou não desejam gestar uma criança menos mulheres do que as demais? O fato de um homem trans não ter um órgão sexual masculino o faz mulher? Ou o de uma mulher trans não possuir uma vagina a qualifica como homem? Devemos acionar estes múltiplos significados da palavra mulher - constantemente contestados, revisitados e alterados. Olhar as mulheres apenas sob a ótica hegemônica é cercear a sua diversidade e pluralidade, limitando e domesticando seus modos de ser, suas sexualidades e seus corpos.

Watson (2016) reitera o discurso de Bettcher sobre as mulheres trans ao dizer que se faz necessário

[...]um movimento de mulheres, um movimento político. [...] Esse movimento não pode ocorrer marginalizando, recusando-se a admitir e negando a existência de nossas irmãs trans. Reconhecer nossas diferenças como mulheres sempre esteve no centro do feminismo. Nem todas as mulheres são mulheres como eu ou como você [...] (WATSON, 2016, p. 251-252, tradução livre)16.

A partir da discussão de Bettcher sobre as mulheres trans, chegamos ao Transfeminismo que propõe estudar estas mulheres sob suas próprias visões - não excluindo as demais identidades trans. Fundamenta-se nas diversas formas de opressão, por isso a importância da intersecção entre classe e raça, bem como das mulheres trans e não-trans.

15 “So a trans person can count as a “really man” according to dominant cultural practices while counting as a woman in friendlier trans subculture” (BETTCHER, 2013, p. 240).

16 “[…] requires a women’s movement, a political movement. […]. This movement can’t occur while marginalizing, refusing to recognize, and denying the existence of our trans sisters. Recognizing our differences as women has always been at the center of feminism done right. Not all women are women like me or like you [...]” (WATSON , 2016, p. 251-252).

Posiciona-se contrária à Teoria Queer branca anglo-saxã que apaga a identidade do sujeito.

Considera a identidade das mulheres trans resistência e seu apagamento é opressivo (KOYAMA, 2003; ESPINERA, BOURCIER, 2016; BETTCHER, 2018).

A libertação trans é sobre recuperar o direito de nos autodefinir longe das autoridades médicas, religiosas e políticas. O transfeminismo vê qualquer método de designação sexual como um constructo socio-politicamente construído e defende um arranjo social em que o sujeito é livre para designar seu próprio sexo (ou não-sexo) (KOYAMA, 2003, p. 250, tradução livre)17.

Bettcher expõe o quanto a invalidação da identidade é perversa às pessoas trans, que têm seu “sexo duvidado, desafiado ou impugnado diariamente” (BETTCHER, 2018, p. 420, tradução livre) 18. Se o corpo de uma pessoa trans não se parecer com o de uma pessoa não-trans, ele será questionado, rechaçado e visto como impostor. A autora questiona a ausência da trans dentro da categoria mulher, uma vez que nesta se encontram lésbicas, negras, latinas, entre outras subcategorias. A não aceitação é uma forma de excluir e de invisibilizar as mulheres trans. Desta forma, o Transfeminismo evidencia outras formas de opressão e vê nas identidades das mulheres trans uma forma de resistir e questionar o status quo.

Trouxemos esta perspectiva teórica, pois sabemos que ainda se faz necessário justificar a inserção das mulheres trans na categoria mulher – vide Bettcher-, seja no Campo da Comunicação como em outros campos do conhecimento.

Toda história é regulada por princípios narrativos e “a construção da identidade da mulher tem-se enraizado na interiorização pelas mulheres de normas enunciadas pelo discurso masculino” (CHARTIER, 1994, p. 108). A história é “prática ‘científica’, produtora de conhecimentos, mas uma prática cujas modalidades dependem das variações de seus procedimentos técnicos, dos constrangimentos que lhe impõem o lugar social e a instituição de saber onde ela é exercida, ou [...] das regras que [...] comandam sua escrita” (CHARTIER,1994, p. 111). Retomamos a importância da linguagem, presente na construção da história, nos saberes científicos, no discurso cotidiano, no discurso das mulheres, dos meios de comunicação, entre outros, para corroborar com a importância dos Estudos Feministas e de Gênero nos Estudos de Telenovela.

17 “Trans liberation is about taking back the right to define ourselves from medical, religious and political authorities. Transfeminism views any method of assigning sex to be socially and politically constructed, and advocates a social arrangement where one is free to assign her or his own sex (or non-sex, for that matter)”

(KOYAMA, 2003, p. 250).

18 “[…] sex doubdet, challenge, or impugned in manifold daily transaction” (BETTCHER, 2018, p. 420).

Isto posto, apresentaremos como os estudos de consumo se inter-relacionam com estes na produção de conhecimento no Campo da Comunicação.