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4.1 O BRASIL DOS ANOS 90

4.1.1 Mulheres, trabalho(s) e maternidade(s) em Barriga de Aluguel

4.1.1.2 Clara

Após um período morando na casa do casal, Clara (Claudia Abreu) e Zeca (Victor Fasano) se apaixonando e optam por morar juntos em outro lugar. Ana inicia um romance com seu ex-treinador, Dudu (Paulo Cesar Grande), mas não dura muito. Ana passa a se mostrar insegura frente à gravidez de sub-rogação, não sabia se o filho a aceitaria por ter sido gerado em outra barriga, tinha medo do que os outros pensariam sobre isso.

Ana e Clara se encontram em um restaurante, no que esta é questionada por aquela sobre a sua relação com Zeca, Clara responde: “Eu não te fiz nada, quem te fez foi ele! Por que que você não vai lá cobrar dele o fato dele ter saído de casa e ter largado você? Quem tinha compromisso com você não era eu, era ele”. A fala de Clara mostra que as mulheres são responsabilizadas pelo fim de um relacionamento, mas os homens não são, se tornam as vítimas.

Como se a traição de um marido fosse meramente culpa da mulher, da amante, e não uma escolha do homem.

Zeca acaba retornando à Ana, após o relacionamento frustrado com Clara, que começa a questionar se não seria ela a mãe do bebê.

Em uma discussão com Zeca, Ana fala sobre como o processo para ter o filho foi árduo:

Mesmo que ele não tenha saído de mim, quem disse que ele não saiu de mim?

Há oito anos que eu estou parindo esse filho, há oito anos que eu estou correndo atrás de todos os médicos que me indicam, de todos os tratamentos que me ensinam, até de cartomante. Eu não estou parindo esse filho com meu corpo, eu estou parindo esse filho com a minha vida! Ai que dor! Ai, dói muito mais do que um parto, eu acho que dói! (Personagem Ana)

Vemos que a personagem de Ana sacrificou a sua vida para realizar um sonho, foram anos tentando engravidar, sofrendo abortos espontâneos e, mesmo durante a gravidez da Clara, a situação não se tornou mais fácil, havia o medo da rejeição social e o medo de perder a criança para a mulher que o gestava. A juventude de Ana se esvaiu frente ao sonho de se tornar mãe.

Em relação aos amigos de Pilares, afirmava: “vocês são muito conformadas. Ah eu não sou assim não, eu tenho uma coisa aqui dentro de mim que diz que eu vou dar certo, que eu vou me dar bem!”.

Clara sonhava em encontrar um grande amor e se tornar atriz de cinema, acreditava que trabalhando no Café conseguiria ter o seu talento reconhecido por algum dos frequentadores famosos do local. Afinal, “[...] lá em Copacabana tudo pode acontecer com qualquer pessoa, em qualquer momento! O que eu já vi de gente se dando bem e tem cada lugar pra ir [...]”.

Deixou seu amor da juventude, João (Humberto Martins) por achá-lo muito conservador, jamais aceitaria seus planos de ser famosa, “Porque que você acha que eu fui me embora daqui [Pilares], que eu não quis me casar com o João? Subúrbio é que nem cidade pequena, você mora onde nasce e não tem como sair do lugar”, diz Clara.

Conhece Tadeu (Jairo Mattos), médico de um hospital público, e se apaixona loucamente por ele. Acredita que com o dinheiro que receberá da barriga de aluguel poderá ajudá-lo a ascender socialmente. Se arruma toda para ficar noiva do jovem e a pedido de Yara, retira o batom vermelho da boca, “noiva não usa batom vermelho é rosa, vai por mim querida, os amigos do Tadeu vão te achar muito mais bonita assim”. A fala de Yara mostra a percepção em relação às mulheres que usam batom vermelho, aquela não era uma ocasião para um batom tão marcante, o rosa seria mais delicado e Clara seria vista por todos como uma “mulher direita”, a amiga chega a lhe emprestar um colar de pérolas para causar melhor impressão.

A relação com Tadeu não dá certo, embora Clara acredite que com o dinheiro da inseminação poderá reconquistá-lo. Durante o procedimento é advertida pela médica, Dra. Miss Brown (Beatriz Segall), que não poderá ver a criança após o parto para evitar qualquer vínculo:

“às vezes as mães de aluguel querem pegar a criança, querem agradar a criança, querem ver, conhecer a criança. Isto não vai ser possível! É preciso evitar todo e qualquer vínculo com o bebê”. Clara afirma que não se apegará ao bebê, pois seu interesse é apenas no dinheiro, “ele é só a chance que eu tenho de ter o meu próprio filho, de me casar, e, aí sim, ter o filho que eu quero”. Pela fala de Clara, o dinheiro lhe trará a possibilidade de se casar com o homem amado e com ele constituir uma família.

Ao contar para Yara (Lady Francisca) sobre a inseminação é direta: “Todo mundo vive de vender o que tem mesmo. A gente vende o corpo da gente, vende o trabalho da gente. Vende tudo que tiver que vender. [...]. Eu aluguei a minha barriga. E, ó, é muito melhor do que se tivesse que vender um olho, por exemplo”. Clara expõe em sua fala o sistema capitalista, tudo se vende, não há trocas, mas o comércio incessante de bens e/ ou serviços, em seu caso, ela alugou o ventre para outra mulher, que pode pagar U$ 20.000, tendo recebido metade no

procedimento inicial e a outra metade receberia após o parto. Em sua visão, nesse sistema vendemos o corpo, seja pelo trabalho laboral ou pelo comércio corpóreo.

Após receber U$ 10.000 e levar um fora de Tadeu, Clara decide que irá aproveitar a vida, pois dinheiro não lhe falta mais. Sai para jantar com Yara em um restaurante chique de Copacabana e não são bem recebidas, tira uma grande quantia de dólares da bolsa para mostrar que possui dinheiro para frequentar o local, “o que é que ele [garçom] tá achando? Que a gente não tem dinheiro não? Olha que aqui meu filho, dólar, dólar!”.

Vai até o Copacabana Café e a loja de tecidos para se demitir, pois não precisa mais trabalhar, para o proprietário da loja frisa: “Eu é que estou me despedindo! Você fica aí explorando essas trouxas que eu não me presto mais a isso não! Você não vai mais me tratar como ladra, não vai mais ficar me apalpando para ver se eu estou levando pra casa esse bando de trapo que o senhor vende aqui!”.

Nas duas últimas falas de Clara vemos como sua posição social determina o modo como é tratada. No restaurante, o seu jeito de falar e vestir não lhe conferia capital social para adentrar o estabelecimento, teve que tirar os dólares da bolsa para provar que estava apta para frequentar o local. Na loja de tecidos, expos a vulnerabilidade das mulheres que trabalhavam como vendedoras, que eram revistadas diariamente para evitar furtos, como se o fato de serem pobres lhe conferissem a função de ladras.

Ao lado de Ana (Cássia Kiss) e Zeca (Victor Fasano) fica evidente o distanciamento social entre que há entre os três. Em uma das discussões com Ana, Clara foi taxativa: “Uma barriga. É isso que eu sou pra vocês! Não é que vocês gostam de mim, vocês não me conhecem, não sabem nada da minha vida e nem tem o menor interesse em saber”. A fala da jovem mostra que apesar dos esforços de Ana em Zeca em agradá-la, havia a superficialidade na relação, não havia afeto, mas interesses, incluindo o bem-estar da criança, não o dela.

Em determinada situação, Ana culpa Clara pelo fim do casamento:

E você, você acha que você não me tirou nada não? Acha? Porque não quer saber da minha vida, porque pra você eu sou uma barriga que anda, vai para um lado e para o outro. Cê sabe o que eu perdi Ana? Sabe? Não! O que cê sabe de perder alguma coisa, cê sempre teve tudo? Cê sabe o que é amar um homem, gostar de fazer tudo por ele, batendo qualquer uma por ele? Não!

Porque que eu fui alugar pra você, por ele, para dar o dinheiro que ele precisava, pra resolver os problemas dele, você não sabe nada! Você é mais velha do que eu e não sabe nada da vida. Você não sabe nem o que é amar alguém. Você não é apaixonada pelo Zeca? Não é apaixonada por ele? Cadê que cê foi atrás dele lutar por ele, só pensa no seu orgulho só pensa em você.

Cadê que cê foi atrás dele, hein? Cadê? Não vi! (Personagem Clara).

Mais uma vez a fragilidade da relação dos três é exposta, enquanto Clara sabia tudo sobre o casal, sobre a dificuldade de Ana em engravidar, o casal nunca a questionou nada, não tinha interesse em conhecê-la, a via como uma prestadora de serviços. Na fala, Clara aponta que ao escolher a barriga de aluguel renunciou a sonhos em prol da realização do do casal.

Nas discussões entre as duas mulheres eram sempre evidenciadas as diferenças de classe, certa vez Clara disse “[...] eu tive que ficar encarando açougueiro para fazer aborto porque não tenho condição de ter o meu filho, você nunca passou por isso!”. No discurso fica evidente outras gestações de Clara, que na impossibilidade de criar um filho, recorria a abortos clandestinos em locais insalubres. Evidenciando a distinção entre as duas, aponta que se algum dia Ana optasse por um aborto, não seria realizado nas mesmas condições, mas com médicos, por ter mais recursos financeiros - que ainda lhe possibilitava criar quantas crianças desejasse.

Os direitos reprodutivos são os direitos da mulher no que tange a reprodução, desde o acesso à educação sexual, acesso aos métodos contraceptivos, a realização de pré-natal até ao parto em segurança, ou ao aborto, que evoca acima de tudo a liberdade sobre o seu corpo.

Entretanto, o que ocorre é uma reprodução estratificada (COLEN, 1995), em que os direitos de reprodução inserem-se em relações de poder com base “na hierarquia de classe, raça, etnia, gênero e que são estruturadas por forças sociais, econômicas e políticas”59 (COLEN, 1995, p.78, tradução livre). Pelo conceito acima, a reprodução é formulada por/ para mulheres das classes mais altas. Seria necessário amplas transformações sociais para que os direitos reprodutivos abarcassem à todas as mulheres. Quando Clara expõe a questão do aborto desvenda todos os direitos reprodutivos que lhes foram negados, desde a educação sexual, até o aborto, que teve de ser realizado em clínicas clandestinas. A mulher da classe alta possui educação sexual, fácil acesso a métodos contraceptivos, como a possibilidade de realizar um aborto por um médico, pois mesmo não sendo uma prática legal no Brasil é um procedimento que pode ser realizado por profissionais da saúde, desde que bem remunerados.

Com o passar dos meses Clara vai se apegando à criança que está gestando e resolve devolver o dinheiro ao casal para poder ficar com a criança. Porém, opta por procurar um novo emprego nos classificados, pois não tinha mais parte do dinheiro recebido. Com muita dificuldade consegue trabalho como mensalista, para receber menos do que receberia uma mulher que não estivesse grávida. Por meio da personagem, Perez expõe a dificuldade de uma mulher grávida em conseguir um emprego, tendo que se sujeitar ao trabalhar informal e com

59 “[…] are based on hierarchies of class, racer, ethnicity, gender […] and that are structured by social, economic, and political forces” (COLEN, 1995, p.78).

um salário inferior. A Constituição de 88 passa a garantir direitos trabalhistas às mulheres gestantes, levando empresas e pessoas a não quererem contratar mulheres nesse período para evitar possíveis despesas extras e/ ou processos trabalhistas.

Após o nascimento da criança, Clara (Claudia Abreu) fica com a guarda do bebê na primeira instância judicial e volta a trabalhar como dançarina do Copacabana Café. No dia de sua apresentação, Ana vai até o local para impedi-la e questioná-la sobre a maneira como pretende cuidar de José Carlos (Figura 95). Após ouvir que é uma irresponsável por levar a criança até o local, responde: “escuta aqui, as pessoas trabalham pra viver, sabia? Não é todo mundo que nasceu assim que nem você não, deitada na grana!”. Afirma que não confia em ninguém para cuidar do bebê e, a pesar de estarem em uma boate, o espaço em que estavam não tinha barulho, nem tumulto, possibilitando que a criança ficasse por lá sob os cuidados de um colega de trabalho enquanto se apresentava, “meu filho quem cria sou eu. Eu não sou de ficar passando filho adiante com medo de ter trabalho não”. Reforça que o fato de trabalhar à noite não a impede de cuidar de Carlinhos, que não lhe falta amor, banhos de sol, comida e visitas ao médico.

Ana: Qual o nome desse médico?

Clara: Lá do HgeRJ (Hospital Geral do Rio de Janeiro).

Ana: Do HgeRJ? Quer dizer que você leva o meu filho para enfrentar essas filas quilométricas, cheias de gente doente aí pra poder fazer uma consulta, é isso?

Clara: É, por que não? Se todo mundo vai, por que ele não pode ir? Ele tem que conviver com a realidade dele, minha filha? Não nasceu riquinho não!

Ana: Nasceu rico sim, você que não está deixando ele usufruir do que ele tem direito!

Clara: Olha, o que ele tem, que é dele e que ninguém tira, é a mãe dele. E se tem, vai ter pra vida inteira, ali lutando, batalhando por ele. Isso é muito mais importante do que tudo isso que você está dizendo que pode dar pra ele. Olha, você pode dar babá, pode dar roupa nova, pode dar brinquedo, pode dar o que você quiser, mais nada, nada, pelo valor de uma mãe, nada!

Ana: Ah não tem mesmo! Só que você está esquecendo de uma coisa, a mãe dele sou eu!

Clara: Pra você, pra sua viagem.! Pra ele não, pra ele, a mãe sou eu. Vai estudar vai, vai ler um pouco, vai se informar. Vai perguntar o que que os médicos têm a dizer, vai? Vai perguntar como é que a criança está ligada na mãe dentro da barriga, como ela já sente, já tem sentimento dentro da barriga, pode perguntar.

Ana: Isso eu não vou mais discutir com você não.

Clara: Nem isso, nem mais nada! Você já estragou bem a minha noite. Já não me deixou mais fazer o meu show e eu não vou ficar aqui olhando para sua cara. Sai, sai!

O diálogo entre Clara e Ana mostra o distanciamento social entre as duas, suas realidades completamente opostas. A primeira precisa trabalhar muito para manter o filho, cuja criação dependerá apenas dela, sem a presença de um companheiro ou de babás. Não pode encher a criança de presentes e não tem recursos para ir a um médico particular o que enfurece Ana, que se recusa em aceitar que o filho vá a um hospital público. Para esta, a vida de Carlinhos seria muito mais fácil e cômoda ao seu lado e Clara o está privando de ter uma boa vida.

Figura 95: Ana interpela Clara no Copacabana Café Fonte: Barriga de Aluguel (Globo, 1990)

O discurso de Ana é carregado pelo discurso da moral cristã, em que a mãe deve se dedicar com exclusividade ao filho, caso contrário, não é uma boa mãe. No séc. XX, período das grandes guerras, a imagem da madre é evocada, pois a procriação era necessária para o aumento da população. No entanto, vemos resquícios deste discurso ainda no final do século.

A jovem acaba se afastando do Copacabana Café e proíbe as visitas de Ana e Zeca à Carlinhos. Numa tentativa de se reaproximarem da jovem, o casal envia um relógio da marca Rolex - um sonho de consumo seu. Vemos a relação entre objetos materiais/ consumo e a classe média alta e alta. Segundo, Henegham (2003, p. 45-46, tradução livre), “classe, raça e gênero foram construídos em relação aos bens materiais no início do século XIX”60.

Sr. Ezequiel (Leonardo Villar), pai de Clara, é um homem extremamente religioso, Testemunha de Jeová, que acredita que a filha seja “uma cabeça de vento, [que] não tem juízo para nada”, nem para criar o neto. Desta forma, solicita a guarda definitiva de Carlinhos e acaba adquirindo o direito de cuidar do neto.

Durante boa parte da telenovela, Gloria Perez trabalha a trama principal junto ao receptor, fazendo-o indagar quem seria a mãe legítima da criança, a que doou os óvulos ou a

60 Class, race, and gender, at base, were constructed by one’s relationship to material things in the early 19th century, and one’s blackness or whiteness depended on access to white goods (HENEGHAM, 2003, p. 45-46).

que gestou. Se Ana (Cássia Kiss) sempre questionou a maternidade e a sua infertilidade, Clara começa a fazê-lo quando se vê no impasse de entregar a criança ao casal. Em conversa com o pai diz: “é muito triste mesmo uma mulher que não pode ser mãe, [...] como ela [Ana] pode ser mãe de um filho que saiu de dentro de mim?”. Na primeira instância Clara detém a guarda do bebê, na segunda Ana a consegue, o resultado do julgamento da terceira/ última instância fica em aberto para os telespectadores. Entretanto, ao final, fica implícito que as duas mulheres optaram por criarem a criança juntas (Figura 96).

Figura 96: Clara, Ana e José Carlos (Carlinhos) juntos Fonte: Barriga de Aluguel (Globo, 1990)