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4.1 O BRASIL DOS ANOS 90

4.1.2 Explode Coração! Mulheres e culturas

4.1.2.1 Dara

Dara(Teresa Seiblitz) é uma jovem cigana que se encontra entre as tradições milenares de seu povo e a vida moderna do Rio de Janeiro. Nasceu em Sevilha, na Espanha, mas mudou-se para o Brasil ainda bebê. Filha de Jairo (Paulo José), um grande comerciante, e Lola (Eliane Giardini), mulher dedicada à família, que a prometeram em casamento ao cigano Igor (Ricardo Macchi).

Se recusa a aceitar o destino que a família lhe traçou, deseja continuar os estudos, faz cursinho pré-vestibular escondida e é aprovada para a faculdade, “a gente não pode frequentar escola, escola só até a quinta série, no máximo, que é pra gente não se misturar e a e acabar

perdendo os nossos valores”. Possui uma babá, Odaísa (Isadora Ribeiro), responsável por vigiá-la, acompanhá-la a todos os lugares, a fim de preservar os preceitos familiares.

É pelo computador, conectando-se com pessoas do mundo inteiro, que Dara se coloca em contato com o mundo exterior de maneira mais livre. Um produto restrito às classes mais altas e novo no ambiente familiar, que deixa Odaísa desconfiada:

Odaísa: Valha me Deus, o bicho falou sozinho, Dara! Foi uma palavra só, mas ele falou, eu ouvi!

Dara: Você deve ter esbarrado em alguma tecla e ele falou alguma mensagem, foi isso.

Odaísa: Não senhora, não senhora, não era que nem secretária eletrônica, não era que nem aquele carro que vocês tem lá na garagem que a gente abre a porta e ele manda colocar o cinto, que aquilo tá lá gravado dentro dele, que nem um disco. Era voz de gente mesmo!

Dara: Ah, porque eu deixei o programa aberto!

Odaísa: Dara, fala a verdade, pensa que eu não vejo você esperar todo mundo dormir e entrar aqui nessa sala e fica falando no escuro com uma porção de vozes. Isso é coisa de espiritismo!

Dara: Não viaja, que é só um computador, só que eu liguei o computador no telefone, aí ele fica funcionando como se fosse um telefone. Sabe linha cruzada? A linha do telefone fica aberta e vai entrando um monte de gente que você não conhece e que também não conhece você? Pois é a mesma coisa.

Você fala com as pessoas como se tivesse no telefone viva voz.

Odaísa: Hum, pois pra mim você fez magia nisso aí, viu?

Dara: E eu sei lá fazer magia Odaísa?

Odaísa: Todo cigano sabe fazê, pode até disfarçar, mas sabe!

O diálogo entre as duas mulheres traz uma pluralidade de discursos. O primeiro dele é o medo do desconhecido, das tecnologias, do que fariam ou trariam junto com elas. Odaísa fica assombrada com as vozes que saem do computador, muito diferente das gravações que estava acostumada a ouvir de objetos como secretária eletrônica, carro ou brinquedos. Eram vozes reais, diálogos que pareciam vir do além. O discurso religioso é evocado, na visão de Odaísa, Dara estaria conversando com pessoas de outra esfera, de outro plano espiritual, ou fazendo magia. O preconceito ao povo cigano aparece em sua fala, o medo dos nômades, daqueles que conseguem prever o futuro pelas cartas ou tarôs.

Dara é uma das personagens que explora o passado e o presente, suas tensões. E o faz na representação do cigano, em que tradições milenares são questionadas na contemporaneidade, e pelo uso das novas tecnologias (Figuras 106 e 107). Ao explicar a Odaísa o que era um computador, a possibilidade de conversar com outras pessoas conectando-se através da linha telefônica, usa a metáfora da linha cruzada para exemplificar esta nova forma de se comunicar. Explode Coração (Globo, 1995) antecipava o que teríamos no futuro, a internet (world wide web -www), que chegaria ao Brasil em 1996.

Figura 106: Família de Dara dançando Figura 107: Dara e Odaísa

Fonte: Explode Coração (Globo, 1995) Fonte: Explode Coração (Globo, 1995)

Dara fica noiva de Igor após as famílias negociarem seu casamento em 100 moedas de ouro a serem pagas à Jairo. Porém, estava a estudar e não iniciar uma nova vida ao lado de estranho, “não caso de jeito nenhum, não tem quem faça!”. Ao contar a mãe que fora aprovada no vestibular recebe um tapa na cara.

Lola: Como é que você fez isso comigo Dara, com o teu pai?

Dara: Eu não quero ser ignorante!

Lola: Uma filha minha metida em vestibular? Em Faculdade? Nós vamos ficar o quê, de nariz grande diante do nosso povo? Você me mata Dara, você me mata Dara, você mata o seu pai. Aí, dieula, dieula, que vergonha! Que conta que eu vou prestar pro o seu pai, hein? Como é que você me cegou desse jeito? Há quanto tempo você está enganando a gente, Dara?

Dara: Foi ano passado, eu fiz supletivo e entrei esse ano no cursinho.

Lola: Com que dinheiro? Eu sei que isso custa caro! Me fala, da onde saiu esse dinheiro. Fala! Da onde saiu esse dinheiro? Dara, pelo amor de Deus, não me minta mais, não me minta mais que eu perco a minha cabeça!

Dara: Ninguém me pagou mãe. Eu vendi umas coisas, eu vendi umas pulseiras e os brincos.

Lola: Você vendeu o seu ouro, você vendeu ouro da nossa família?

Dara: Eu vendi o que era meu! Não toquei em nada de ninguém, vendi as minhas pulseiras e os meus brincos.

Lola: Ela está vendida, a minha filha está vendida!

[...]

Dara: Eu quero tirar meu diploma, ganhar meu lugar no mundo, mãe?

Lola: Eu não aceito Dara, você nunca vai ter o meu apoio, nunca vai ter a minha benção! E o teu noivo também não vai aceitar!

Dara: A senhora não entendeu, mãe, não vai ter casamento!

Lola: O quê?

Dara: Eu não vou me casar.

Lola: Ah casa! Casa nem que seja de baixo de pancada, nem que eu tenha que tirar a sua cabeça do lugar. O teu pai deu a palavra dele, Dara, e a palavra de cigano não tem volta.

A divergência entre Dara e sua mãe revela o conflito de gerações e de cultura. Dara quer viver, conhecer o mundo que a ela se expande por meio dos estudos e do computador. Para Lola, isto é algo inaceitável, não compreende os desejos da filha, pois prefere ater-se ao posto,

àquilo que está delimitado, definido. Dara foge com a ajuda do amigo Serginho (Rodrigo Santoro) e acaba sendo levada, pelo pai, à força, de volta pra casa. (Figura 108).

Figura 108: Jairo leva Dara pra casa à força Fonte: Explode Coração (Globo, 1995)

A relação da jovem com a família revela a estrutura familiar regida pela hierarquia, uma estrutura de poder, em que, geralmente, a figura paterna se sobrepõe aos demais membros da família (De ANTONI, 2005), nesta repousam o poder marital e o pátrio poder. A estrutura hierárquica familiar brasileira surge nos tempos das Colônias e esteve presente no código civil brasileiro até a Constituição de 88, que inseriu novos valores à estrutura familiar, que passa a ser regida pela afetividade (LÔBO, 2000, 2011).

Dara arruma um emprego como vendedora em uma loja de roupas e vai morar sozinha.

O pai opta por não ter contato com ela, mas a mãe está sempre por perto. Em uma das visitas que faz à filha diz estar inconformada de tê-la perdido. Dara a consola lembrando-a que a teria perdido de qualquer jeito, pois iria morar com outra família. “É muito diferente filha, você podia estar longe que a gente ia saber que você estava bem cuidada, que você tinha a sua casa, seu marido, seus filhos. Que você estava entregue a uma família amiga da gente”. Em outro momento, a mãe lhe diz que está preocupada com seu novo jeito de se vestir, “uma moça séria não anda na rua com as pernas descobertas desse jeito. Dara, isso é coisa curva!”.

A jovem enfrenta ainda dificuldades no trabalho por causa de sua origem, quando some o celular de uma cliente é logo questionada. “Vocês tão achando que eu roubei o celular só porque eu sou cigana. Por que vocês acham que todo o cigano rouba, que cigano só vive pra enganar os outros, não é? [...] eu não posso ficar num lugar que desconfiam de mim. A senhora por favor pode dar baixa no meu contrato [...]”. Seu discurso explicita o imaginário coletivo de que os ciganos são salteadores. Discurso que os perseguem e os submetem à preconceitos e violências. Miguel de Cervantes em sua novela A Ciganinha, escrita em 1613, inicia seu texto dizendo, “parece que os ciganos e as ciganas vieram ao mundo apenas para ser ladrões: nascem

de pais ladrões, criam-se com ladrões, [...], e a vontade de furtar e o próprio furto são como que traços inseparáveis neles, que apenas a morte elimina” (CERVANTES, 2015, p. 47). Embora não saibamos em que momento foi criado este discurso, pelo texto de Cervantes, percebemos que está presente há séculos no imaginário de pessoas ao redor do mundo inteiro.

É pelo computador que Dara conhece Júlio (Edson Celulari) e se tornam amigos, confidentes. É para ele que a jovem expõe suas angústias.

[...] eu não quero me casar com homem que eu nunca vi, nem de fotografia!

Eu sou cigana, e casamento cigano é assim, a gente quase nunca tem direito de escolher. Cigano não acredita em paixão, cigano não namora, cigano casa.

E acha que o amor vai nascendo depois na convivência, mas eu não entendo isso, eu só entendo a paixão! [...] . Eu não sei se teria sido melhor pra mim se eu tivesse ficado em casa, só aprendendo a dançar, botar carta, tomar conta da casa. Eu não estaria me sentindo ao meio como eu estou me sentindo agora.

Se no colégio soubessem que eu ando com uma babá o tempo todo atrás de mim, tomando conta pra eu não deixar de ser virgem, iam rir da minha cara.

Não, eu não estou renegando meu povo, mas não nasci em caravana nenhuma.

Passei a minha vida toda aqui no Rio de Janeiro, eu não posso ter a mesma cabeça desse pessoal de mil anos atrás, que andava correndo o mundo dentro de uma carroça.

Em sua primeira, expõe o choque entre as duas culturas, o modo de vida cigano e naquele em que acredita, que foi absorvido/ apreendido no/ pelo cotidiano morando no Rio de Janeiro, vemos aí a interculturalidade.

Ao se encontrarem pela primeira vez, Júlio e Dara se apaixonam. Ele é presidente das empresas Avelar e deseja concorrer ao Senado Federal, vive entre a elite brasileira. Decidem se casar, mas os costumes ciganos de Dara começam a interferir na relação. Ao vê-la lendo a mão de pessoas na rua manifesta-se contrário à atitude. A jovem explica que é uma obrigação - “uma vez por semana, a mulher cigana tem que sair pra ler mão na rua”.

Júlio: Dara, o que eu estou querendo te dizer é que quando se ocupa determinados cargos fica-se submetido à determinadas limitações. Eu sou uma pessoa pública, cobra-se muito de uma pessoa pública.

Dara: Entendi, não fica bem pra um homem como você ser casado com uma cigana, não é? [...] eu sou isso, Júlio, eu sou uma cigana.

Júlio: Dara eu adoro a ideia de você ser uma cigana, isso me encanta, me atrai Dara: Mas ser cigana é isso, respeitar a obrigação de ler mão das pessoas na rua. Isso é um dom! Foi pra isso que eu fui criada, foi pra isso que eu fui preparada desde pequena!

Júlio: A gente é preparado para tanta coisa que não faço, Dara. Você mesmo foi preparada pra se casar com o rapaz que seus pais escolheram e você não se casou. Você foi preparada pra não ir à escola, pra não frequentar o colégio, você prestou vestibular! A gente não consegue ser duas coisas ao mesmo tempo, eu sei o que eu estou dizendo. Ninguém nesse mundo tentou mais do que eu se equilibrar entre dois mundos, é impossível! Inclusive essa crise que eu estou vivendo agora tem origem justamente nessa minha tentativa de ser

dois Júlios, de ter um pé aqui e outro lá, de continuar sendo o socialista, comunitário, o protetor dos injustiçados e, ao mesmo tempo, ser a encarnação do poder e do dinheiro. Tem uma hora que a gente tem que fazer uma escolha, Dara, e é isso que eu estou vivendo agora. [..] É isso que você também está vivendo agora, você vai ter que escolher entre o mundo dos ciganos e os não ciganos.

Dara: Eu já escolhi.

Júlio: Não, você só vai ter escolhido mesmo quando você mudar de valores.

Eu também pensei que tinha escolhido.

Dara: Ah Júlio, o que você está me pedindo é muito! Você fala como se fosse a coisa mais fácil do mundo a pessoa abrir mão de tudo que ela é pra virar outra pessoa.

Júlio: Eu sei que não é fácil mas é preciso.

Dara: Júlio, eu larguei a minha casa, larguei o meu povo, eu não tenho ambiente no meio de vocês. As únicas pessoas que eu tenho aqui são seu Augusto, a Odaíza, a Sarita, e você, mais ninguém. E mesmo me sentindo isolada, como eu me sinto, eu sei quem eu sou, eu não perdi o meu referencial, porque eu ainda cultivo os meus costumes. O dia que eu largar tudo como você está falando, cadê a Dara? Eu não vou mais saber quem eu sou.

Júlio: Você é essa garota rebelde [...]. Isso é você, Dara. Eu quero te preservar, acredite. Daqui a pouco quando você começar a sair do meu lado nos jornais, revistas, você vai entender que eu estou dizendo. [...]. Me promete que você nunca mais vai fazer isso que você fez hoje, me promete?

Dara: Prometo. Eu prometo que você nunca mais vai me ver lendo a mão de ninguém na rua.

O discurso entre os dois apresenta mais uma vez o conflito de gerações. Ele é um homem mais velho, acostumado a viver regido pelas normas sociais, acredita que só exista um jeito de a pessoa ser, não é possível mover-se sobre dois mundos, ter várias identidades. Seu discurso é endossado pela elite, pelos modos como preserva determinados comportamentos, temendo a exposição e se firmando na aparência, em um ideal de família, de conduta, de desempenho, entre outros. Dara, por sua vez, é uma mulher jovem, que enxerga a possibilidade de transitar por mundos diferentes sem a presunção de fragmentar a sua cultura, mas matizá-la à outra em um processo intercultural, ao qual Garcia Canclini (2000) intitula de processo de hibridação, um “movimento de trânsito e provisório” [...] para compreendermos “as estratégias de entrada e saída da modernidade” (GARCÍA CANCLINI, 2000, p. 64). É menos uma ação coercitiva e mais coesiva, num processo nem sempre sinérgico. Em suma, enxergar a

“hibridação, como um processo de interseção e transações, é o que possibilita ao multiculturalismo evitar o que tem a ver com a segregação e pode se tornar intercultural”

(GARCÍA CANCLINI, 2000, p.65).

Dara será constantemente interpelada por suas escolhas por aqueles que desejam a manutenção do status quo.

Avelar: É Dara, é verdade, as tradições sufocam mesmo, mas não me parece que a gente possa escapar delas. Existe algumas regras mais fáceis de serem

aceitas e outras mais difíceis, mas, de um modo geral, nós vivemos sempre dentro dessas regras, não é?

Dara: Por que você está me dizendo isso?

Avelar: Não, nada, só um comentário. Eu fico imaginando que você veio de uma comunidade tão rígida e imagina que fora dessa comunidade as pessoas vivam uma liberdade absoluta, não é?

Dara: E não vivem?

Avelar: Não, não, não vivem. É claro que você ainda não pode enxergar isso, porque liberdade pra você é não respeitar algumas leis que você conhece, mas nós também temos as nossas leis, você pode ter certeza disso. E você que vai casar com o Júlio, vai ter que estar bastante consciente disso.

Dara: Como assim? O que que senhor quer dizer com isso?

Avelar: Que a vida de um homem público, de um político é uma vida, vamos dizer assim, bastante controlada, sujeita a muitas interferências. Um homem público não pode viver da mesma maneira que um homem comum. E a esposa de homem público também tem que se sujeitar a essas regras.

Dara: Eu sei.

Avelar: Será que o seu temperamento cigano se submeteria a isso?

Dara: Eu estou disposta a tudo pelo julho, doutor Avelar. Eu sou muito apaixonada por ele.

Avelar é um homem da elite, dono das empresas em que Júlio trabalha, e que possui interesses em sua candidatura ao Senado Federal. Em sua fala, demarca a sua posição social e ressalta a Dara a importância de seguir as regras e o modelo de comportamento que lhes são impostos. Seu discurso revela o preconceito aos ciganos e o desconforto em de ter que aceitar uma pessoa de uma classe social e etnia diferente. Ainda que Dara fosse uma cigana da classe média alta, estudada, não era a mulher ideal para estar ao lado de Júlio Falcão. Avelar separa o casal e casa Júlio com sua sobrinha Eugênia (Françoise Forton).

Dara descobre que está grávida e ao decidir procurar um emprego não é aceita em lugar algum. Para evitar um escândalo, se casa com Igor, sem informar-lhe sobre a gravidez.

Na noite de núpcias, o homem decide respeitar o seu desejo de não ter relações sexuais e, para enganar a comunidade cigana, corta e enxuga seu braço ensanguentado em um lençol entregue à família, provando a pureza da jovem. A convivência com Igor era difícil, pois Dara era contrárias às tarefas domésticas destinada as mulheres ciganas. Por exemplo, se recusava a passar as roupas de Igor, uma atividade simples que ele poderia fazer.

Dara sente as contrações na praia e Igor faz o parto da criança (Figura 109). Ao final, o cigano afirma que a jovem deve voltar para os braços de Júlio, que é quem ela ama verdadeiramente (Figura 110).

Figura 109: Dara em trabalho de parto Figura 110: Dara e Júlio com a família

Fonte: Explode Coração (Globo, 1995) Fonte: Explode Coração (Globo, 1995)