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4.1 O BRASIL DOS ANOS 90

4.1.2 Explode Coração! Mulheres e culturas

4.1.2.3 Marisa

tão bonita!”. Em contrapartida, o rapaz a tranquilizava e sempre afirmava seu amor, “pois é, mas é você que eu amo, é você! E agora, hum? Será que eu não vou conseguir te convencer nunca disso” (Figura 113)

Com o avanço da relação passaram a falar em casamento, Serginho queria ter filhos com ela, que omitia ter feito laqueadura de trompas. Betty chega a se questionar se desejaria ter mais filhos pois, “mesmo que não tivesse feito [...] eu não estou mais na idade de me aventurar a ter filho de novo”. Em sua fala vemos dois discursos, o de não querer ter filhos e o fato da sua idade ser um empecilho para isso.

Ao final, consegue reverter a laqueadura e engravida de Serginho, com quem passa a viver ao lado dos filhos (Figura 114).

Como vimos, o ideal da madre confere às mulheres o dom de gerar a vida, de serem mães benevolentes e, consequentemente lhes confere a virtude de serem boas esposas, de proporcionar ao homem a paternidade e a continuidade familiar. É um discurso social moralista em que a maternidade se encontra vinculada ao casamento, que pressupõe não haver matrimônio sem filhos. Para Betty ser feliz ao lado do Serginho era obrigatório lhe conceber um filho. O casal, que quebrara as barreiras etárias via-se vinculado a um outro dogma, a de que um(a) filha/o legitima uma união.

Figura 113: Betty e Serginho Figura 114: Betty com a família

Fonte: Explode Coração (Globo, 1995) Fonte: Explode Coração (Globo, 1995)

ou de sua força como mulher, que falava o que pensava, sem medo de julgamentos, ou por que era uma mulher de esquerda, com discursos sociais latentes, que incomodavam os demais (Figuras 115 e 116).

Figura 115: Marisa no trabalho Figura 116: Marisa defendendo um cliente Fonte: Explode Coração (Globo, 1995) Fonte: Explode Coração (Globo, 1995)

Não era uma personagem feminina, suas roupas e seus gestos enfatizavam sua determinação. Para Tadeu (Daniel Dantas), colega de trabalho: “essa aí, a gente se distrai e acaba batendo continência para ela”, ou seja, era vista como uma pessoa dura, característica que se destinava aos homens. Além disso, Marisa era mulher feminista e escrevera um livro sobre o assunto.

Sua sexualidade não foi explorada na telenovela, mostrou-se encantada por Tolentino (Cláudio Cavalcanti), um advogado educado com quem começou a trabalhar. Porém, não fica claro se seu encantamento seria por seu comportamento, que o diferenciava dos demais homens, ou se seu jeito de ser a atraiu a ponto de se apaixonar. De qualquer forma, tornaram-se amigos.

Consideramos relevante ressaltar que Débora Duarte, em 1988, deu vida à Joana Mendonça, em Bebê a Bordo (Globo, 1988), uma profissional de marketing, lésbica, considerada masculinizada para a época - gostava de ser chamada por Mendonça. Em 1995, Marisa aparece com estilo de se vestir semelhante ao de Mendonça: calças, coletes, ternos, etc.

Não era uma mulher feminina se compara às outras personagens. Para compreendermos a construção da personagem deveríamos ouvir a autora e/ ou a atriz. Na impossibilidade de realizarmos uma entrevista, voltamos nossa atenção para o que estava circulando na sociedade da época. A nós, interessa o discurso da personagem posto em circulação em 1995 e como este é visto pelas entrevistadas.

As mulheres começam a adentrar no mercado de trabalho no final dos anos 1970 e início de 1980, inicialmente em posições tidas como exclusivamente femininas, como secretária, professora, entre outras. A abertura econômica e o aumento de mulheres com diploma universitário transformaram o mercado de trabalho brasileiro, que começa a ser

ocupado por elas em cargos de chefia. Em uma tentativa de desconstruir a imagem de fragilidade feminina, optam por roupas que lhes confiariam maior credibilidade, como os ternos oversized - ternos grandes, largos e com ombreiras. Para Dorfles (1988, p.13), "[...] a moda não á apenas um fenômeno frívolo, epidérmico, superficial, mas é o espelho dos hábitos, do comportamento psicológico do indivíduo, da profissão, da orientação política, do gosto...". A vestimenta confere identidade às pessoas, inserem-nas em determinados grupos, como as exclui de outros, pode ser considerada símbolo de resistência, como outrora foi a calça jeans. Nos anos de 1990, as mulheres que estavam no mercado de trabalho adotaram roupas mais sérias como uma forma de se inserirem em um ambiente majoritariamente masculino e de se distanciarem da esfera privada.

Neste momento, o movimento feminista e o movimento lésbico estavam em crescimento no Brasil e em boa parte da América Latina. Os encontros feministas que se iniciaram no final da década de 1970 se intensificaram, tonaram-se redes autônomas espalhadas pelas diversas regiões do país, tratando de temas como aborto, saúde, violência sexual e doméstica, questões raciais e políticas (TELES, 1999).

O ativismo lésbico também surge em meados dos anos 1970 e se intensifica após a ditatura civil-militar. A violência física e sexual, a saúde mental e o silenciamento eram pautas deste movimento no Brasil. (LESSA, 2007). O Somos, formado em 1978, era um movimento homossexual composto apenas por homens e, em 1981, as mulheres começaram a participar do grupo, que se apropriou das palavras bichas e lésbicas ressignificando-as, retirando o sentido pejorativo que possuíam. “O jornal Lampião e o grupo Somos, de São Paulo, são consagrados hoje como referências da primeira onda de mobilização política em defesa da homossexualidade no Brasil” (SIMÕES, FACCHINI, 2009, p. 81-82). Nos anos de 1990, os movimentos LGBT ganham visibilidade com os eventos nacionais e a ampliação por meio de redes, conquistam espaço nas mídias e inserem-se no campo político. Em 1993, o termo lésbica é adicionado ao encontro nacional de homossexuais que passa a denominar: Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais. O evento nacional de 1995 foi o primeiro a ser financiado com recursos do Ministério da Saúde, [...] registrando um recorde de número de grupos, com presença de 84 entidades, entre elas 34 grupos gays ou mistos, três grupos exclusivamente lésbicos e três grupos de travestis” (SIMÕES, FACCHINI, 2009, p.144).

No período em que Explode Coração (Globo, 1995) vai ao ar, dois grandes movimentos encontram-se em ebulição, o feminista e o lésbico.

Segundo Wesely (2012), homens e mulheres passam pelo o que autora denomina de processo de socialização de gênero, - as mulheres, principalmente após o primeiro ciclo

menstrual - , aprendem “normas de masculinidade e feminilidade", que é construída a partir de binarismos como feminino/ masculino; mulher/ homem; frágil/ forte; poder/ submissão. Ao falar do corpo feminino Halberstam (1998, p. 58-59) afirma,

as exigências da feminilidade heterossexual coincidem com a renúncia a um corpo saudável. Por esta razão, muitas mulheres, não apenas lésbicas, ao longo do tempo, cultivaram a estética corporal masculina para trabalhar, brincar, competir, ou simplesmente sobreviver. A mulher heterossexual masculina não precisa ser vista como uma lésbica em negação, ela pode ser apenas uma mulher que rejeita as restrições da feminilidade.

Para esta autora, a renuncia à feminilidade hegemônica é vista como uma forma de resistência da mulher para que pudesse circular em espaços em que não lhe eram permitidos.

Explicita ainda um discurso preconceituoso de que mulheres heterossexuais masculinas são vistas como lésbicas em negação. Isto posto, ao investigarmos as mulheres, em suas multiplicidades e pluralidades, devemos levar em consideração as feminilidades e masculinidades de seus corpos. A personagem de Marisa além de suas roupas e uma não-feminilidade, possuía um discurso negativo em relação aos homens. Para Hook (2019), ao representar as feministas como mulheres que odeiam homens, a mídia contribui para a lesbofobia, para o esvaziamento do movimento feminista e para a criação de um estereótipo de que todas as feministas são lésbicas.

Como advogada, Marisa trabalhava na vara da família, discussões como infidelidade dos homens casados, divórcio e violência eram levantadas pela personagem:

onde é que tá essa criatura teúda e manteúda que não existe mais [falando das mulheres]. Os homens inverteram tudo, esses cínicos! Agora querem ser eles os teúdos e manteúdos, porque só cai esse tipo de processo na minha mão. [...]

eles ficam exigindo anos de casado, anos de companheirismo, ficam exigindo [...] os presentes de noivado, pensão alimentícia [...]. Nesse último processo que caiu na minha mão, o cara fugiu com os bens da mulher. Me deixa engasgada, entalada. [...] Homem é tudo igual! (Personagem Marisa).

O discurso acima revela a opinião de Marisa sobre as mulheres que não dependeriam mais dos homens já que tempos eram outros, porém não melhores. O homem passara a se aproveitar das brechas da lei para retirar tudo de uma mulher. É importante frisar que até a criação da lei do divórcio, em 1977, 95% dos casamentos possuíam comunhão universal de bens. Com a lei, constituiu-se o regime da comunhão parcial de bens, que progressivamente tornou-se o mais convencional no Brasil (GLOBO NEWS, 2014).

As cenas em que aparece, concentram-se na empresa Avelar, em sua relação com os diretores e seus subordinados, principalmente com a secretária executiva Hebinha (Sônia de Paula).

Hebinha: Não acredito!

Marisa: O que que foi? Ele [Avelar] ainda vem pro escritório?

Hebinha: Eu não sei o que está acontecendo, ele faz isso de propósito, só pra me prender aqui até tarde, pra não dar tempo, dona Marisa, de eu fazer a minha unha, trocar a lâmpada da minha varanda, que está queimada há mais de duas semanas. Ele adora que eu volte pra casa segurando naqueles ônibus bem cheios.

Marisa: Você, que só sabe viver como uma mulher submissa, quando aparece um homem como o Avelar fica com todas as suas carências preenchidas, não é?

Hebinha: Não Acredito! A senhora tá debochando de mim? Eu não sou advogada como a senhora não dona Marisa, eu sou apenas uma secretária, secretária!

Marisa: Isso não é motivo pra perder a sua dignidade, me aguarde, me aguarde.

(Marisa sai e volto pouco depois)

Marisa: Aqui ó… É pra ler, hein? Leia, isso aqui vai esclarecer a sua cabecinha, abrir a suas ideias! Fui eu que escrevi, está aqui ó: a mulher liberada!

Hebinha: Eu vou me liberar de quem, do chefe? A senhora não sabe o quanto eu pago de aluguel.

O diálogo expõe a visão feminista de Marisa, que indaga a submissão de Hebinha, faz questão de entregar-lhe o livro que escreveu sobre o assunto para que possa “abrir sua cabeça”.

O feminismo interseccional não estava presente em seu discurso, ou mesmo na sociedade da época, Marisa não compreendia a razão do seu discurso não ser aceito pela secretária. A fala de Hebinha evidencia questões de classe, não poderia se libertar do patrão por ter contas a pagar e depender daquele trabalho. Ao contrário de Marisa, uma advogada que trabalhava tanto na empresa, como autônoma, caso optasse por largar a empresa teria outras oportunidades (Figura 117).

Figura 117: Marisa com Hebinha Fonte: Explode Coração (Globo, 1995)

Leal às suas convicções, Marisa sempre questionava as arbitrariedades. Em uma cena ao lado de Júlio, fica perplexa ao ver uma jovem (Dara) sendo agredida no meio da rua e o solicita que façam algo para socorrê-la.

Marisa: Que vandalismo foi aquele?

Júlio: Deve ser coisa de família, você não vai querer se meter numa briga dessa, né?

Marisa: Vou querer me meter sim, o que que é isso? Desde quando ser família dá direito a alguém ser violento com outro alguém? Até parece que você não conhece leis? O que é isso Júlio? Você está compactuando com uma coisa dessa?

Júlio: Eu estou compactuando com o quê, Marisa?

Marisa: Quem submiti é cúmplice! É como se tivesse sendo você violento com aquela moça! Engraçado, você parou o carro pra ver uma cigana exótica e não para o carro pra socorrer uma moça que está sofrendo violência?

O diálogo traz luz a violência contra a mulher, que para a advogada é crime e deve ser combatida. Porém, pelo comportamento de Júlio vemos o silenciamento, o discurso de que se trata de um problema familiar e, como tal, cabe somente à família resolver as desavenças.

Ditados como “em briga de marido e mulher, não se mete a colher” e/ou “roupa suja se lava em casa” sempre circularam no cotidiano brasileiro. Por e através deles, as violências domésticas e contra a mulher eram silenciadas e/ ou ignoradas por quem presenciasse. Qualquer que fosse o motivo “da briga” (violência), esta deveria ser resolvida no ambiente familiar e não extrapolá-lo. Embora Marisa não tenha de fato parado para socorrer a moça, lança a questão para o debate público, tema ainda incipiente na sociedade, pois como vimos, a mulher começa a ter seus direitos reconhecidos legalmente a partir de 1988. A pesquisa “tolerância social à violência contra as mulheres” feita pelo IPEA, em 2014, mostra uma discrepância que envolve o assunto:

78% dos 3.810 entrevistados concordam com a prisão de um marido violento e 89% discordam que “um homem pode xingar e gritar com sua própria mulher”. O resultado da pesquisa seria satisfatório se não fosse pelos “89% dos entrevistados [que] tenderam a concordar que ‘a roupa suja deve ser lavada em casa’; e 82% de que ‘em briga de marido e mulher não se mete a colher’” (IPEA, 2014, p.3). Pela pesquisa apresentada pelo instituto, vemos que as pessoas não toleram a violência contra a mulher, mas afirmam que os problemas devem ser resolvidos entre casal - expondo a vulnerabilidade e fragilidade da mulher frente ao silenciamento da maioria.

Pela pesquisa apresentada em 2014 e pelos discursos das telenovelas da década de 1990, vemos que havia uma naturalização da violência contra a mulher, que era tolerada, nos dias atuais não se tolera, mas o seu enfrentamento por parte da população em geral ainda é pequeno.

Marisa passa a se compadecer de Vera (Maria Luiza Mendonça), filha de Avelar e esposa de Júlio, a quem o pai controlava (Figura 118). Decide advogar para ela quando ela é colocada em um hospital psiquiátrico à sua revelia, para uma sonoterapia. Questiona Eugênia (Françoise Forton) sua passividade perante a agressão cometida à sua prima. “Eu queria que você gritasse, que chamasse a polícia, que fizesse qualquer coisa pra impedir que a Vera fosse arrastada dessa maneira. Imagina, botar alguém a ferros, em uma camisa de força, porque não quer mais continuar no casamento, é absolutamente medieval!”.

Figura 118: Marisa e Vera Fonte: Explode Coração (Globo, 1995)

Marisa não era compreendida por muitos, estranhavam seus discursos e atitudes.

Porém, fica claro que era uma personagem que vinha questionar o status quo da sociedade brasileira da época, levantar questões polêmicas. Fazia isso por meio da comédia, com pequenas falas, mas com significados potentes. Ao final, pede demissão das empresas Avelar e monta um escritório em “defesa dos direitos femininos”.