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2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E CORPORA DE ANÁLISE

2.1 A PESQUISA QUALITATIVA LONGITUDINAL E OS ESTUDOS FEMINISTAS SOB

A pesquisa qualitativa parte de pressupostos teóricos e interpretativos para uma investigação social mais detalhada, cuja abordagem metodológica revela-se da questão problema articulada no projeto. O propósito da pesquisa guiará o investigador no campo, bem como as teorias por ele abordadas (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 1998;

CRESWELL, 2013; MASON, 2002; MARSHALL; ROSSMAN, 1999; RICHARDSON, 2012). Tanto o cotidiano, como as práticas e as relações entre os sujeitos não são previsíveis, tampouco pariformes. Desta forma, a medida em que o investigador adentra o campo em busca de suas questões outras emergem, fazendo da pesquisa qualitativa uma pesquisa dinâmica, fluida, em que o estar no campo evoca um diálogo permanente com as teorias.

Outro ponto a ser destacado é a importância de se considerar o contexto: cultural, social e político, seja tanto do ponto de vista do pesquisador, quanto do pesquisado. Do lado do pesquisador, faz-se relevante apontar quais as correntes teóricas às quais se vincula e a linha de pesquisa na qual se insere, ambas o conduzirão durante toda a investigação. E no campo, qual o momento histórico e as posições sociais dos sujeitos pesquisados. Nas palavras de Creswell (2013), “atualmente, a pesquisa qualitativa envolve uma atenção mais próxima à natureza interpretativa da investigação e o posicionamento do estudo dentro do contexto político, social e cultural do pesquisador”21 (CRESWELL, 2013, p. 45, tradução livre). Em suma, toda pesquisa qualitativa aflora de um enquadramento histórico que deve ser desvelado pelo cientista, uma

21 “[…] qualitative research today involves closer attention to the interpretative nature of inquiry and situating the study within the political, social and cultural context of the researchers” (CRESWELL, 2013, p. 45).

vez que visa apreender minúcias de um fenômeno social. Essa compreensão só ocorre no e pelo olhar do todo.

Se a investigação qualitativa busca uma maior apreensão de um dado social, ao invés de uma descrição e/ ou quantificação de um estudo, ao optar pela pesquisa qualitativa longitudinal (PQL) procuramos descortinar as mudanças sociais em um determinado período.

É um olhar não apenas intenso, mas também prolongado para verificar certos acontecimentos, contemplar detalhes de uma sociedade através dos anos.

Desta forma, por meio da PQL se analisa as transformações sociais (HOLLAND;

THOMSON; HENDERSON, 2003; SALDAÑA, 2003; RUSPINI, 1999; THOMSON, 2003), seja por uma pesquisa longitudinal de perspectiva futura, que irá acompanhar determinados sujeitos e ou fenômenos ao longo dos anos, ou de uma análise retrospectiva, em que o pesquisador investiga um período já transcrito (RUSPINI, 1999). Independentemente do método escolhido, a PQL implica no reconhecimento do tempo e da mudança, pois não há pesquisa qualitativa longitudinal sem que ambos estejam presentes (CORDEN; MILLAR, 2007; SALDAÑA, 2003; RUSPINI, 1999).

O tempo não é vivenciado da mesma maneira em todas as sociedades, nem mesmo entre os sujeitos de um grupo análogo. Afirmando que “o tempo não é mais linear no paradigma pós-moderno; o tempo ser curva em novas e criativas formas cronológicas”22 (SALDAÑA, 2003, p. 6, tradução livre), Saldaña o observa por meio de três perspectivas: a) o tempo como um construto cultural, nessa visão, podemos compreender que o tempo para um morador de São Paulo e para alguém que vive no interior do Brasil não é o mesmo; b) o tempo generificado e construído como um instrumento de poder e controle e c) como uma construção individual e subjetivamente interpretada, ou seja, a experiência do tempo é particular a cada sujeito, o mesmo acontecimento pode ser vivenciado por diferentes pessoas, mas a duração transcorrerá para cada uma distintivamente.

O tempo pode ser identificado sob três vieses: tempo presente, curso de vida e enquadrado por eventos e pelo período histórico. O tempo presente estaria ligado ao andamento da vida cotidiana. O segundo diz respeito às fases e transições relativas ao curso de vida. Por fim, “o tempo histórico fornece um contexto para o entendimento tanto do tempo presente como do tempo do curso de vida, e ao colocar as pessoas em sua geração chama a atenção para quais os valores e experiências materiais que serão compartilhadas a partir da vivência coletiva do

22 “Time is no longer linear in the postmodern paradigm; time curves in new and creative chronological forms”

(SALDAÑA, 2003, p. 6).

mesmo conjunto histórico de eventos culturais e políticos” 23 (CORDEN; MILLAR, 2007, p.

584, tradução livre).

Desta forma, vislumbramos o tempo de diversas maneiras: aquele vivenciado individualmente e subjetivamente na cotidianidade, cuja experiência se faz pelas construções culturais e de gênero. O tempo que se modifica no curso de vida e, por fim, aquele compartilhado na coletividade através do tempo histórico.

A mudança implica em um processo contínuo (CORDEN; MILLAR, 2007;

SALDAÑA, 2003; RUSPINI, 1999) - ocorre em um período e é identificada de diferentes maneiras pelos sujeitos. “Visto que o tempo é contextual, nossas ações sociais e circunstâncias dentro dele também são contextuais, a mudança é contextual”24 (SALDAÑA, 2003, p.9, tradução livre). Toda transformação social insere-se em um enquadramento histórico e cultural, no decurso entre o antes e o agora. Para compreender o presente, faz-se necessário um olhar para o passado e esta visão contextual do tempo trará algumas nuances daquilo que estar por vir.

Barbosa (2012) critica a natureza presentista das pesquisas em comunicação, para a autora a compreensão do presente se faz no olhar para o passado. As pesquisas em comunicação investigam o processo comunicacional, seja pelas práticas do sujeito ou da produção. Se a história se relaciona com a dimensão humana é na investigação histórica que se compreenderá o presente, o passado e o futuro. “A história nada mais é do que atos comunicacionais de homens de outrora. E só porque são um ato comunicacional é que esses restos, rastros e vestígios puderam chegar ao presente. O passado só se deixa ver sob a forma de processos comunicacionais duradouros” (BARBOSA, 2012, p.149). Todo o discurso se constrói num processo histórico complexo (BARBOSA, 2012).

Isto posto, propomos este olhar para o passado com intuito de estudar os discursos e as transformações sociais relacionadas às mulheres visando a compreensão do presente. Uma vez que a “pesquisa longitudinal pode ser realizada em várias direções e em vários níveis de complexidade”25 (RUSPINI, 1999, p.226, tradução livre) a adotamos a partir de uma análise retrospectiva, investigando os discursos sobre mulheres nas telenovelas de Gloria Perez entre

23 “Historical time provides a context for understanding both present time and lifecourse time, and placing people in their generation draws attention to what values as well as material experiences people might share as a consequence of collective exposure to the same historical set of cultural and political events and exposures”

(CORDEN; MILLAR, 2007, p. 584).

24 “Since time is contextual, and our social actions and circumstances within it are contextual, change is contextual”

(SALDAÑA, 2003, p.9).

25 “[…] longitudinal research can be performed in many directions and at various levels of complexity” (RUSPINI, 1999, p.226).

os anos de 1990 e 2017, para posteriormente observar as suas manifestações no cotidiano das receptoras/ consumidoras.

Apresentar um estudo sobre mulheres à luz dos Estudos Feministas significa dizer que este é um estudo para as mulheres e norteado pela mudança social (DOUCET; MAUTHNER, 2006; SALGADO, 2008; REINHARZ, 1992). Os procedimentos metodológicos das pesquisas feministas tendem a abarcar a diversidade e pluralidade das mulheres e das questões que as envolvem, buscam “inovação metodológica, desafiando maneiras convencionais ou tradicionais de colecionar, analisar e apresentar os dados”26 (DOUCET; MAUTHNER, 2006, p.40, tradução livre). Observar as mudanças sociais no que tange às mulheres implica investigar as relações de poder e questões relativas à justiça social, disparidades que ocorrem não apenas nas relações entre homens e mulheres, mas entre as próprias mulheres. Nesse enfoque, a interseccionalidade é evocada como uma forma de investigação social crítica, cujas estruturas centrais estariam relacionadas ao poder, à desigualdade social, ao contexto social, à complexidade e à justiça social (COLLINS; BILGE, 2016). Nas palavras de Collins e Bilge,

A interseccionalidade é uma forma de compreender e analisar a complexidade do mundo, nas pessoas, nas experiências humanas. Os eventos e condições da vida social, política e o self raramente podem ser entendidos como moldados por um único fator. Eles são geralmente moldados por muitos fatores, de maneiras diversas e mutuamente influentes. A desigualdade social, a vida das pessoas e a organização do poder em uma determinada sociedade são melhor entendidas como sendo moldadas não por um único eixo de divisão social, seja raça ou classe, mas por vários eixos que se unem e influenciam uns aos outros. A interseccionalidade utilizada como uma ferramenta analítica dá às pessoas uma melhor visão à complexidade do mundo e de si mesmas (COLLINS; BILGE, 2016, p. 2; 193, tradução livre).27

Uma pesquisa sobre mulheres deve englobar eixos interseccionais e não optar por uma análise isolada, assim, teremos uma maior compreensão social. O feminismo interseccional nos guiará em todas as análises das telenovelas, no entrelaçamento entre gênero, classe, raça/ etnia, sexualidades, entre outros, para que possamos compreender as relações de poder e as mudanças sociais relativas às mulheres. Dessa forma, este projeto “mais do que enunciá-las, requer pensar

26 “[…] methodological innovation through challenging conventional or mainstream ways of collecting, analyzing, and presenting data” (DOUCET; MAUTHNER, 2006, p.40).

27 “Intersectionality is a way of understanding and analyzing the complexity in the world, in people, in human experiences. The events and conditions of social and political life and the self can seldom be understood as shaped by one factor. They are generally shaped by many factors in diverse and mutually influencing ways.

When it comes to social inequality, people's lives and organization of power in a given society are better understood as being shaped not by a single axis of social division, be it race or class, but by many axes that together and influence each other. Intersectionality as an analytic tool gives people a better access to the complexity of the world and of themselves” (COLLINS; BILGE, 2016, p. 2; 193).

sobre elas e organizar a investigação em relação a elas”28 (SALGADO, 2008, p. 86, tradução livre).

Na fluidez da pesquisa qualitativa, o diálogo com os estudos feministas será permanente, sempre que do campo emergir questões a serem pesquisadas. O olhar para as mulheres será feito por teorias que se dedicam a estudá-las em sua complexidade e diversidade.

Segundo Cuklanz (2016), as teorias feministas explicam as relações de poder nos discursos midiáticos, que devem ser analisados pela intersecção de “classe, raça, sexualidade e outras categorias, incluindo religião e etnia”29 (CUKLANZ, 2016, p. 1, tradução livre). Para a autora, a forma de investigar as mulheres na Comunicação foi se transformando ao longo dos anos à medida em que as teorias feministas iam avançando seus estudos sobre as mulheres. Na década de 70, estes focavam na sub-representação das mulheres nos meios de comunicação.

Essa perspectiva de análise permaneceu nos anos 80 que buscava ainda as desigualdades entre homens e mulheres nos discursos midiáticos. As décadas de 90 e 2000 geraram discussões a respeito das representações da violência de gênero e “as maneiras pelas quais essas representações refletiam a ideologia dominante”30 (CUKLANZ, 2016, p. 2, tradução livre).

No que tange os estudos sobre mulheres na Comunicação no Brasil, Escosteguy (2002) afirma que as pesquisas de recepção que utilizam a categoria gênero as fazem para “indicar uma distinção sexual entre feminino e masculino, isto é, como uma variável sociodemográfica”, mais do que uma “mudança no patamar analítico” (ESCOSTEGUY, 2002, p. 2). Com base em uma pesquisa realizada por McAnany e La Pastina entre 1970 e 1993, a autora reconhece que a etnografia vem sendo amplamente utilizada nos estudos de recepção na América Latina e que a pesar de as mulheres serem temas recorrentes nesses estudos, as investigações não ocorrem em diálogo com os estudos feministas. Constata-se o recorte de classe, mas não há a intersecção de raça, etnia ou outras que possam aprofundar o debate acerca das mulheres. “O fato de privilegiar como ambiente de investigação o espaço doméstico e a família” (ESCOSTEGUY, 2002, p. 5), fez com que essas pesquisas fossem compostas em sua maioria por mulheres, o que permitiu uma maior compreensão do universo feminino nos últimos anos, “revelando o contexto no qual recebem as mensagens mediáticas e quais os usos que fazem dessas narrativas dentro de sua vida cotidiana” (ESCOSTEGUY, 2002, p. 5).

28 “significa más que enunciarlas: requiere pensarlas a ellas y organizar la investigación en relación con ellas”

(SALGADO, 2008, p. 86).

29 “[…] class, race, sexuality, and other categories including religion and ethnicity” (CUKLANZ, 2016, p. 1).

30 “[…] the ways in which these representations reflected dominant ideology” (CUKLANZ, 2016, p. 2).

Em 2017, elaboramos um breve levantamento de dados que pudesse apontar algumas nuances em relação aos estudos sobre as mulheres na Comunicação, em especial aqueles que adotam como corpus as telenovelas. Buscamos na plataforma Capes, de periódicos, trabalhos que continham as palavras mulher(es) e telenovela(s) e que pelo resumo identificasse o interesse de investigação pelas mulheres no polo da produção (telenovela) e/ ou recepção. Realizamos essa mesma busca no Congresso da Compós, nos GT’s: “Estudos de Televisão” e “Recepção:

processos de interpretação, uso e consumo mediáticos” e na Intercom Nacional, GP’s: “Ficção Seriada” e “Televisão e Vídeo”, o período analisado foi entre os anos de 2013 a 2017. Na plataforma de periódicos Capes foram encontradas 19 produções que atendiam aos critérios pré-estabelecidos. Na Compós, encontramos seis artigos, enquanto na Intercom Nacional foram 17 artigos.

Não podemos inferir que a presença de autoras feministas tenha despertado uma discussão aprofundada sobre as mulheres, entretanto faz-se importante constatar que os artigos escritos desde 2016 apresentam um maior número de autoras feministas, alguns estudos anteriores a esta data não apresentaram nenhuma corrente feminista entre suas referências bibliográficas. Verificamos, assim, que há um aumento gradativo em estudar as mulheres à luz dos estudos feministas, discussão que se faz necessária, pois são teorias que visam entendê-las em sua diversidade, pluralidade e complexidade, paralelamente às relações de poder.

Distanciando-se de reflexões que investigam as mulheres sob lentes teóricas exclusivamente masculinas – com um olhar do homem sobre a mulher (DOUCET; MAUTHNER, 2006).

Em sua tese de doutorado, Tomazetti realiza um levantamento entre os anos de 1972 a 2015, de teses e dissertações que realizam algum tipo de interface com os estudos feministas e de gênero - das 13.265 investigadas, foram encontradas 316 pesquisas. Optamos por realizar o mesmo procedimento feito nas revistas e nos congressos, lançamos nosso olhar nas teses e dissertações que possuíam em seu título as palavras mulher(es) e telenovela(s) entre os anos de 1990 a 2015, apenas três pesquisas foram encontradas (Tabela 1). Como ressalta o autor, estes eram “estudos com mulheres, porém não das mulheres” (TOMAZETTI, 2019, p. 90).

Ano Título Autor Universidade

1990 Yo compro esa mujer – kirsh, romantismo e consumismo nas telenovelas latino-americanas

Cristiane Henrique Costa

UFRJ 2010 Telenovela e a identidade feminina de jovens de classe

popular

Lírian Sifuentes UFSM

2014 Mundos possíveis e telenovela: memórias e narrativas melodramáticas de mulheres encarceradas

Valquíria Michela John UFRGS Tabela 1: Pesquisas entre 1990 e 2015 cujos títulos possuíam as palavras mulher(es) e telenovela(s)

A análise de discurso de linha francesa (ADF) foi utilizada na análise das telenovelas definidas como corpora e na análise das falas das entrevistadas, pois não há discurso sem ideologia e a opacidade do texto é fruto de um sujeito socialmente construído. A seguir, abordamos como a ADF contribuiu para a compreensão dos sentidos produzidos nas narrativas e daqueles que circulam socialmente entre/sobre as mulheres.

2.2 O DISCURSO SOBRE AS MULHERES SOB A ANÁLISE DE DISCURSO DE LINHA