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3. PROCESSO AUTORAL DE GLORIA PEREZ: IMBRICAÇÕES NA VIDA

3.3 AS HISTÓRIAS CONTADAS PELA AUTORA

3.3.2 Cinco telenovelas para investigar os últimos 30 anos

3.3.2.1 Agora aguenta coração

A novela Barriga de Aluguel (Globo, 1990) surge após a leitura de um artigo médico que abordava a possibilidade de doação de óvulos e de útero para o processo de reprodução assistida. O ano era 1984, mesmo ano em que o primeiro “bebê de proveta” nasceu no Brasil, pelas mãos do médico Dr. Milton Nakamura. E foi com ele, em sua luxuosa clínica, localizada na Av. Brasil, em São Paulo, que Gloria Perez foi conversar para entender mais sobre o assunto (BLOG GLORIA PEREZ).

A autora ficou fascinada frente ao avanço científico da época, a possibilidade de mulheres consideradas inférteis de gestar um filho por meio da doação de óvulos, de um útero ou da superovulação estimulada através de medicamentos. Em sua visita à clínica de Dr.

Nakamura, pode conhecer todas as etapas pelas quais uma mulher passaria para engravidar.

Soube que os óvulos não utilizados eram exportados, mas o que lhe chamou a atenção foi a entrevista com o psicólogo para avaliar o grau de feminilidade da mulher, ou seja, a paciente deveria “ser feminina o suficiente para ter um filho”, a consulta fazia parte do protocolo médico realizado com as pacientes. Contudo, a autora ressalta a disparidade entre o que médico propunha e o psicólogo. “Não bastava a angústia de não conseguir ter um filho, a mulher ainda tinha que submeter-se àquele tipo de avaliação para saber se merecia ser mãe”, ressalta Perez (MEMÓRIA GLOBO, 2008, p. 438).

A reprodução assistida era pouco divulgada no Brasil e restrita à classe alta, dado o elevado valor de cada procedimento. A prática de utilização de uma barriga de aluguel era, e ainda é, proibida no país. Porém, a autora afirma que teve conhecimento da realização desta prática naquela época (BLOG GLORIA PEREZ). Encantada com o avanço tecno-científico e o que ele significaria para as mulheres que desejavam ser mães, Gloria Perez o transforma em tema de telenovela.

Considerada muito fantasiosa à época em que apresentou a sinopse pela primeira vez na Rede Globo, no final da década de 1980, acabou sendo engavetada. O regresso da autora à emissora, após breve passagem pela Rede Manchete, ocorre mediante a promessa de gravar a telenovela Barriga de Aluguel (Globo, 1990), que foi ao ar na faixa das 18h, em agosto de 1990, sob a direção de Wolf Maia.

A história se faz em torno do casal Ana (Cássia Kiss) e Zeca (Victor Fasano) que sonhavam em ter um filho. Ela, uma jogadora famosa de voleibol, realizou diversas tentativas de engravidar, mas não obteve sucesso. Ao saber do experimento realizado pelo ambicioso

médico, Dr. Barone (Adriano Reys), que consistia no aluguel de uma barriga para a reprodução, Ana decide arriscar e convence o marido.

Clara (Cláudia Abreu) é uma jovem, que trabalhava em dois empregos para se sustentar. Vê na barriga de aluguel a possibilidade de ascensão social, porém não imaginava que poderia se apegar à criança que gestava. Diante do conflito criado após a recusa de Clara (Cláudia Abreu) em entregar o bebê, Perez traz um questionamento que percorrerá toda a narrativa, quem é a mãe da criança, a doadora do óvulo ou aquela que a carrega no ventre?

A telenovela inicia o primeiro capítulo com um ato da peça Yerma, de Federico García Lorca, representado por Clara (Cláudia Abreu) e Ana (Cássia Kiss) (Figuras 34 e 35). Aquela inicia sua fala dizendo: “Mas tu hás de chegar amor, meu filho, porque as águas dão sal, a terra, fruta, e o nosso ventre guarda tenros filhos, como as nuvens carregam a doce chuva”. Em seguida esta aparece e diz: “Embora soubesse que o meu filho iria me martirizar depois, iria me odiar, me arrastar pelos cabelos pelas ruas, eu receberia com alegria o seu nascimento, porque é melhor chorar por um homem vivo, que nos apunhala, que chorar por este fantasma sentado por anos e anos em cima do meu coração”.

Figura 34: Clara e Ana recitam Yerma Figura 35: Ana à frente e ao fundo Clara Fonte: Barriga de Aluguel (Globo, 1990) Fonte: Barriga de Aluguel (Globo, 1990)

Nesta primeira cena, Gloria Perez traz seus conhecimentos literários acerca da obra de Lorca, conhecimentos que faz questão de enfatizar nas entrevistas, adquiridos principalmente ao longo de sua juventude, no Acre, em que visitava a biblioteca pessoal de seu pai para ler. A palavra yerma vem do latim e em espanhol significa “lugar que não pode ser cultivado, infértil”.

Na obra de Lorca, Yerma é uma mulher que não pode ter filhos, mas deseja profundamente ser mãe. Ao longo da peça os motivos pelos quais ela não consegue gerar uma vida vão sendo revelados: “o marido indiferente, a manutenção da honra, um sentido de integridade que ela tenta preservar a todo custo, o confinamento e a vigilância a que é submetida pelo marido e pelas cunhadas e, acima de tudo, a revelação de um amor frustrado, que poderia tê-la realizado

enquanto mulher” (MACHADO, 2008, p. 03). Por meio de Yerma, Perez inicia sua telenovela e apresenta o conflito que transcorrerá ao longo de toda a narrativa.

O capítulo conta a história de Ana (Cassia Kiss) e Clara (Cláudia Abreu) e ao longo de quase 50 minutos vai apresentando outras personagens que farão parte do enredo. Ana (Cassia Kiss) sonha desesperadamente em ter um filho com seu marido Zeca (Victor Fasano).

Ao perceber que sua menstruação estava atrasada deduz que está grávida e vai às compras com uma amiga. Em casa, Ana e Zeca celebram a gestação, rodeados pelos presentes que ela comprou (Figura 36). Feliz com a notícia, Zeca questiona Ana se não foi por esta razão que ela enjoou do cigarro, no que ela responde: “a gente sempre enjoa com alguma coisa”. Conquanto não apareça na cena, o cigarro estará presente em outros capítulos, evidenciando o consumo de um produto que prevaleceu em alta ao longo de muitos anos no Brasil e no mundo. Ana era uma jogadora profissional que fazia uso do cigarro, que não era visto como um produto nocivo à saúde e associado às pessoas bem sucedidas.

Figura 36: Ana e Zeca comemoram a gravidez Fonte: Barriga de Aluguel (Globo, 1990)

Era uma mulher da classe média alta (Figura 37), jogadora de voleibol profissional, que estava no auge da carreira, tendo participado de campeonatos brasileiros e mundiais (Figura 38). Por causa do desejo de ser mãe e por sua idade, 31 anos, acreditava que participaria pela última vez de um campeonato. O capítulo ainda mostra as demais jogadoras do time informando que estavam indo jogar em outros países e Ana creditava este acontecimento à falta de patrocínio ao esporte brasileiro. O voleibol profissional se desenvolve, no Brasil, a partir da década de 1980 e nos anos de 1990, com o surgimento de ligas/ campeonatos e com a conquista de vários prêmios, se estabelece no país (DEF, 2017).

Figura 37: Ana em seu apartamento de frente para o mar Figura 38: A jogadora Ana sendo entrevistada Fonte: Barriga de Aluguel (Globo, 1990) Fonte: Barriga de Aluguel (Globo, 1990)

Após uma partida, Ana percebe que sua menstruação desceu e se revolta, principalmente com o marido. Afirma que para ele o tempo não é um problema, mas para ela é, pois já passou dos 30 anos. Diz que todos a cobram um filho, afinal já são 8 anos de casamento. Zeca chega a falar em adoção, mas Ana sequer o ouve.

Paralelamente aos conflitos de Ana (Cassia Kiss), Clara (Cláudia Abreu) é apresentada, uma jovem, que logo nas primeiras cenas sofre um aborto espontâneo. Clara veio de Pilares, zona norte do Rio de Janeiro, para Copacabana, onde divide o apartamento com Yara (Lady Francisco), uma prostituta. Trabalha durante o dia, junto com a amiga Ritinha (Denise Fragua), como vendedora em uma loja de tecidos (Figura 39). À noite, é dançarina/ garçonete do Copacabana Café, local em que trabalham diversas atrizes e modelos e onde ela poderá ganhar alguma visibilidade para obter ascensão profissional e social (Figura 40).

Figura 39: Ritinha e Clara na loja de tecidos Figura 40: Clara dança no Copacabana Café Fonte: Barriga de Aluguel (Globo, 1990) Fonte: Barriga de Aluguel (Globo, 1990)

A família de Clara e a amiga Ritinha moram em Pilares, local em que, segundo ela, jamais cresceria profissionalmente, permaneceria estagnada. No bairro vemos a vizinhança, os bares tocando samba, um espaço aparentemente alegre, onde todos se conhecem (Figura 41).

Sr. Ezequiel (Leonardo Villar), pai de Clara, é sapateiro e mora com a filha Raquel (Sura Berditchevsky), ambos são extremamente religiosos e conservadores, o oposto de Clara. A sapataria do Sr. Ezequiel é um anexo da casa simples em que vivem (Figura 42).

Figura 41: Ritinha e Clara em Pilares Figura 42: Clara visita família na sapataria Fonte: Barriga de Aluguel (Globo, 1990) Fonte: Barriga de Aluguel (Globo, 1990)

Em Pilares mora João (Humberto Martins) antigo amor de Clara e por quem Ritinha é apaixonada, vemos aí a possibilidade de um triângulo amoroso. Ainda no primeiro capítulo, Clara conhece Tadeu (Jairo Mattos), por quem se encanta ao conhecê-lo no Copacabana Café.

Outros dois núcleos surgem com a figura do Dr. Barone (Adriano Reys). O primeiro, o hospital em que trabalha, desenvolvendo estudos relacionados à reprodução assistida. Disputa o local com o Dr. Molina (Mário Lago), médico que há anos tenta implementar um centro de medicina popular, mas que vem perdendo espaço para os “bebês de proveta”, responsáveis por um grande volume de dinheiro para pesquisa e tratamento de pacientes. Dr. Barone é um homem vaidoso e muito ambicioso, foi o realizador do primeiro bebê de proveta do Rio de Janeiro, e faz questão de aparecer em todos os noticiários. Sua fama conquista toda a cidade e é nele em que Ana (Cassia Kiss) deposita sua esperança de ter um filho. Porém, em uma consulta, é informada que ela nunca conseguirá ter um bebê, o que a deixa transtornada.

Braço direito de Dr. Barone (Adriano Reys) no hospital, Luisa (Nicole Puzzi) é também amante do médico, que é casado com Aída (Renée de Vielmond), socialite, que faz questão de convidar a todos para celebrar o nascimento dos bebês de proveta em sua mansão (Figuras 43 e 44).

O capítulo termina com João (Humberto Martins) juntamente com Ritinha (Denise Fragua) no Copacabana Café e Ana (Cassia Kiss) em uma partida de voleibol. Quando João vê Clara (Claudia Abreu) dançando não se contém e dá um tapa em sua cara. Ao mesmo tempo, na quadra de vôlei, uma jogadora encosta em Ana e também leva um tapa na cara.

Figura 43: Aída recebendo convidados Figura 44: Mansão da família Barone Fonte: Barriga de Aluguel (Globo, 1990) Fonte: Barriga de Aluguel (Globo, 1990)

Em relação aos demarcadores sociais e culturais de consumo podemos citar as roupas, como o moletom utilizado para prática esportiva (Figura 45), e os móveis de decoração das casas. Anteriormente citado, o cigarro é outro produto que nos chama a atenção. O telegrama foi mencionado por João (Humberto Martins), que disse que não o enviou à mãe, pois não quer que ela se preocupe no dia em que não conseguir se comunicar. E o computador no consultório do Dr. Barone (Figura 46), que também aparecerá em De Corpo e Alma (Globo, 1992) na sala de audiência do juiz, demarcando um produto que era restrito poucos e utilizado apenas profissionalmente.

Figura 45: Ana e amiga correndo na praia Figura 46: Consultório Dr. Barone Fonte: Barriga de Aluguel (Globo, 1990) Fonte: Barriga de Aluguel (Globo, 1990)

A novela foi sucesso de audiência no país e de exportação, foi vendida para 32 países, incluindo toda a América Latina, menos Chile, pois lá o tema era proibido, Espanha, Itália, Alemanha, Grécia e Turquia, batendo recorde de vendas na Globo (ESTADO DE S. PAULO, 1991, p. 70)