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Nas décadas de 1970 e 1980, com o avanço do capitalismo, estabeleceu-se uma nova geopolítica mundial dando lugar a uma nova doutrina político-econômica: o neoliberalismo, iniciado na Inglaterra, com Margareth Tatcher, e nos Estados Unidos, com Ronald Regan, sendo definido por Harvey (2005, p. 6) como

uma teoria das práticas político-econômicas, que propõe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e livre comércio.

O neoliberalismo reestabeleceu o livre mercado como o modo dominante de organização dos Estados em boa parte do mundo, sendo introduzido na América Latina e no Brasil no início dos anos 90, a partir de pressões para abertura democrática e sob pressão principalmente do Banco Mundial (BM) e do Fundo Monetário Internacional (FMI), que impunham a diminuição do papel do Estado e a realização de reformas estruturantes. (SOUSA SANTOS, 2005).

Nesse período, dois eventos contribuíram para o avanço do neoliberalismo no campo da educação superior no Brasil: a Reforma do Estado em 1995, proposta pelo então

Ministro da Administração e Reforma do Estado, Luiz Carlos Bresser Pereira, que previa, entre outras, a necessidade de redução dos gastos públicos e o aumento da qualidade dos serviços e transformou a educação superior em atividade não exclusiva do Estado. E também as orientações feitas pelo Acordo de Comércio e Serviços (OMS) em 1994, que incluiu a educação em uma categoria de serviços. (MAUÉS; BASTOS, 2017).

A proposição de menor intervenção estatal e de deliberação de serviços ao mercado desembocou na educação superior, resultando na racionalização dos recursos públicos; maior articulação entre o sistema educacional superior e o setor produtivo; a expansão das IES privadas; reorganização curricular com maior flexibilização da formação acadêmica e uma visão de conhecimento a serviço da economia. Além da importância dada ao treinamento de força de trabalho por competências globais; o estímulo da mobilidade internacional e o desenvolvimento de pesquisas internacionalmente competitivas conectadas às redes globais de conhecimento. (ALMEIDA, 2014).

Sobre esse aspecto, Sousa Santos (2011, p. 16) afirma que as universidades públicas têm passado por uma crise institucional nos últimos trinta anos, ocasionada pela “perda de prioridade do bem público universitário nas políticas públicas e pela consequente secagem financeira e descapitalização das universidades públicas”, induzida, principalmente, pelo neoliberalismo que a partir de 1980 impôs-se internacionalmente.

Em razão da redução de investimentos por parte do Estado, as universidades públicas passaram a se aproximar da iniciativa privada em busca de parcerias e como contrapartida passou a desenvolver um comportamento pró-mercado, tornando-se dependentes de repasses desses agentes para continuarem existindo, fenômeno denominado por Slaughter e Rhoades (2004) de capitalismo acadêmico18.(COSTA & GOULART, 2018).

Concomitante a esse movimento, o neoliberalismo impulsionou a intensificação do processo de globalização, promovendo uma expansão das “trocas” comerciais e culturais, além de uma ampliação de padronização de valores, de costumes e de consumo em esfera mundial. Porém, essa padronização, segundo Leme (2010), não resulta em equidade política, econômica, social, nem cultural, mas sim, aprofunda as desigualdades entre os países, pois nesse processo de trocas e fluxos, os países subdesenvolvidos submetem-se aos interesses transnacionais, sejam eles produtivos ou especulativos, em nome da busca pelo desenvolvimento.

18 Capitalismo Acadêmico, segundo Slaughter e Rhoades (2004), consiste na busca de fontes alternativas por parte das universidades para o suprimento de suas demandas financeiras em decorrência da diminuição de recursos oriundos do Estado Neoliberal.

Nesse sentido, a internacionalização, concebida como cooperação mútua, pode ficar subordinada à lógica do mercado, uma vez que o conhecimento científico, produzido dentro das universidades públicas, é considerado a base para o aumento da capacidade industrial, científica e tecnológica dos países, como evidencia Batista (2009, p. 48):

A internacionalização universitária tem sido ao longo dos tempos resultado de colaboração acadêmica, buscando o avanço da ciência e da educação. Por razões históricas e culturais, os mercados e projetos políticos diferem muito uns dos outros, resultando com isso, diferentes sistemas e instituições de educação superior, facilitando assim as estratégias de cooperação universitária, cativando a internacionalização para benefícios econômicos.

Por essa razão, as políticas de internacionalização da educação são prioritariamente voltadas ao desenvolvimento científico e tecnológico, bem como a inserção do País no cenário internacional, pois este é o tipo de conhecimento que o mercado demanda, como ratifica Chauí (2001, p. 20):

A ciência e a tecnologia tornaram-se forças produtivas, deixando de ser mero suporte do capital para se converter em agentes de sua acumulação. Consequentemente, mudou o modo de inserção dos cientistas e técnicos na sociedade porque se tornaram econômicos diretos, e a força e o poder capitalistas encontram-se no monopólio dos conhecimentos e da informação. (CHAUÍ, 2001, P. 20).

Sobre essa questão, Bourdieu (1976) já dizia que o espaço científico é lugar por disputa de capitais, uma vez que a ciência passa a ser uma mercadoria, produzida nas universidades e apropriada pelo capital, a exemplo da política de patentes, em que os pesquisadores passaram a investir e direcionar seu trabalho à produção de pesquisa aplicada, atendendo as demandas das empresas; a política de direitos autorais, em que o conhecimento é oferecido à venda, como uma fonte de recursos para as universidades; a instalação de parques tecnológicos nas universidades, visando facilitar a parceria entre universidades e empresas, dentre outras.

Por conseguinte, a universidade pública, onde é produzido cerca de 90% do conhecimento científico no Brasil, muitas vezes, deixa de responder às necessidades da sociedade, constituindo-se “casa de cristal para abrigar pretensos grupos de excelência alienados, sem o compromisso de problematizar a realidade social a fim de nela intervir para modificá-la.” (SALOMON, 2000, p. 17, grifo do autor).

É com base nesses condicionantes que podemos compreender a tendência da internacionalização como estratégia nacional para inserção da economia dos países em desenvolvimento no cenário mundial, competitivo e globalizado. E é nesse contexto, que o Brasil desenvolveu políticas de internacionalização do ensino superior, cujo marco nacional foi o Programa Ciência sem Fronteiras (2012-2016), um programa de mobilidade acadêmica,

criado para promover a consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação e da competitividade brasileira. Para tal, definiu áreas prioritárias para concessão de bolsas de estudo19.

Essas áreas consideradas prioritárias, dispostas na Portaria Interministerial nº 01, de 09 de janeiro de 2013, englobam cursos de exatas, engenharia, tecnologias, ciências biomédicas e ciências do mar e foram estabelecidas de acordo com estudos realizados pela Secretaria de Educação Superior do MEC, pelo Ministério da Indústria e Comércio e pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), que identificaram as necessidades de qualificação profissional para o país, com a finalidade de promover o crescimento econômico. (CAPES, 2011).

Observa-se que as ciências humanas e sociais não foram contempladas diretamente no programa por não pertencerem ao campo de produção de tecnologia e inovação, considerado prioritário para a noção de “desenvolvimento” do Estado Neoliberal, o que revela não somente a concepção de ciência que permeia as ações do Estado, bem como suscita reflexões acerca das intencionalidades e propósitos da formulação do CsF, encenando que sociedade se projeta a partir dessas fronteiras da ciência.

Demo (2012, p 47) exemplifica o valor social da ciência quando diz que através da tecnologia, “poderíamos hoje saciar a fome de todo o mundo; é um projeto tecnológico dominado. Todavia, não usamos esse conhecimento para tal objetivo, mas na linha da manipulação dominativa que redunda da manutenção da fome num contexto de riqueza”. Dessa forma, cabe à comunidade acadêmica ponderar: Os intercâmbios e as cooperações internacionais geram produtos que atendem a que interesses: aos interesses do capital ou às necessidades da sociedade?

O intuito dessas discussões analíticas sobre o campo da internacionalização nas universidades não é trazer uma resposta retórica, mas abrir os horizontes para que possamos compreender o que está nas entrelinhas, especialmente de uma política pública, cuja formulação é orientada por intencionalidades e interesses; é trazer elementos teóricos para o entendimento dessa mudança de sentidos que a internacionalização assume no contexto neoliberal, pois essa mudança é apenas uma tendência e não uma realidade acabada.

Pretende-se, principalmente, fazer emergir o desafio idealista de se buscar conhecimento para além das nossas fronteiras, que contribuam para a promoção do desenvolvimento em bases solidárias e não exploratórias, e que se adequem à realidade social,

considerando suas particularidades, cultura, filosofias, valores, pois a ciência tem sua função social e serve – ou ao menos, deveria servir – para o bem-estar social.

Com base nisso, esta avaliação do Programa CsF como política de internacionalização, fundamenta-se em uma perspectiva contra hegemônica, que se distancia dos modelos hegemônicos de avaliação e busca “a compreensão da ação das políticas públicas em contextos culturais, sociais e econômicos heterogêneos” (GUSSI; OLIVEIRA, 2015), como se verá a partir da próxima seção.

4 A VIAGEM DE IDA: ANÁLISE DE CONTEÚDO DO PROGRAMA CIÊNCIA SEM