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A ironia absoluta: Soren Kierkegaard

No documento A Ideologia da Estética (páginas 130-146)

É de certa forma surpreendente que Soren Kierkegaard — irônico, bufão, apóstolo do paradoxo e inimigo de toda totalidade — não tenha recebido mais atenção nesta era desconstrutiva. Visto de outro ângulo, no entanto, isto não é nada surpreen- dente, pois Kierkegaard combina a devoção à diferença, o humor brincalhão, jogos com pseudônimos e ataques guerrilheiros aos metafísicos, com um compro- misso apaixonado e unilateral a respeito do qual poucos dos irônicos modernos sentirão algo mais que desconforto. Numa era em que nem o existencialismo nem o protestantismo evangélico estão intelectualmente na moda, pode ser valioso passar uma vista d’olhos neste excêntrico solitário cujo poder de perturbar foi menos amortecido pelas mudanças da moda do que se poderia imaginar.1

Uma das muitas excentricidades de Kierkegaard é sua atitude em relação à estética. Entre os filósofos maiores, de Kant a Habermas, ele é um dos poucos que se recusam a dar à estética um valor predominante ou um estatuto privilegiado. Ele se coloca, assim, teimosamente à margem da corrente estetizante da mentali- dade europeia moderna, o que não quer dizer que a estética não seja, do início ao fim de seu trabalho, uma de suas preocupações centrais. Para ele, como para os que deram origem a este discurso, a estética não se refere em primeiro lugar à arte, mas a toda a dimensão vivida da experiência sensível, e se dirige a uma fenome- nologia da vida cotidiana antes de chegar à questão da produção cultural. Como tal, ela é considerada por Kierkegaard como o espaço privilegiado da inautentici- dade. A existência estética é a imediatez vazia e abstrata, uma zona de ser predatória com o temporal e o histórico e na qual as ações do sujeito são apenas vagamente suas próprias. Nesta esfera irrefletida, próxima de algum modo ao estágio freudiano da primeira infância, o sujeito vive num estado de multipli- cidade fragmentada, muito difuso para ser considerado um eu unitário, incapaz de diferenciar-se de seu ambiente, do qual ele é pouco mais do que um reflexo condicionado. Sonhando a si mesmo como uno com o mundo no plano sensível, ele confunde sua própria existência com as impressões dos sentidos de um modo que lembra o registro do imaginário em Lacan. A maior parte da vida social para Kierkegaard não passa de uma versão mais elevada desta passividade sensível — “o imediato com o adendo de uma pequena dose de autorreflexão”, observa ele sarcasticamente em The Sickness Unto Death2 — pois poucos indivíduos podem

elevar-se acima de seu condicionamento social para um estado pessoal autodeter- minado. O julgamento do mundo, comenta ele em seus Diários, não é moral, mas estético, admirando “tudo o que tem poder, astúcia e egoísmo”.3 A sociedade de

classe média nunca cresce, mantendo-se como um brinquedo descentrado nas mãos de seus impulsos repetitivos, como uma criança pequena.

A estética é assim, em uma de suas versões, o “mau” imediato de Hegel; mas é também, contraditoriamente, o seu “mau” infinito da autorreflexão incessante. Esse estágio “mais elevado” ou reflexivo da estética representa uma ruptura com o imediato sensível — não como um movimento ascendente em direção a um eu determinado, no entanto, mas como uma queda em alguma especularidade abissal, onde a ironia tropeça nos pés de outra ironia sem mais centramento resoluto do sujeito do que se pode encontrar no “imaginário” da imediatez corpórea. Hamlet e Caliban são assim imagens invertidas um do outro; está-se na condição estética, seja por ser demasiado ou por ser pouco de si mesmo, por estar preso à realidade ou vagando na possibilidade, em falta com aquela tensão dialética entre essas duas dimensões que é definida paradoxalmente como tornar-se aquilo que se é. A reflexividade nega a imediatez, mas estilhaça-a numa indeterminação infinita não muito distante da própria imediatez. O sujeito autorreflexivo, tão radicalmente vazio quanto o pseudossujeito da imediatez estética, anula a temporalidade e reinventa a si mesmo incessantemente a partir do nada, buscando preservar uma liberdade ilimitada que é, na verdade, simples negatividade se autoconsumindo. O nome desse modo de existência é ironia, e dele a figura de Sócrates é exemplar. A ironia socrática eleva o sujeito acima de sua comunhão inconsciente com o mundo, descolando-o criticamente do real; mas como não produz nenhuma verda- de alternativa, ela deixa o sujeito suspenso em vertigem entre o real e o ideal, simultaneamente dentro e fora do mundo. O real é o elemento do pensador irônico, “mas seu percurso através do real é oscilante e etéreo, pouco tocando o chão. O reino autêntico da idealidade ainda lhe é estrangeiro; ele ainda não se transferiu para ele, mas está a todo momento à beira de fazê-lo”.4 A própria existência de

Sócrates é irônica, uma negação infinita da ordem social, feita ainda num plano subético, ainda não alcançando uma subjetividade determinada. Intoxicados pela possibilidade infinita, os irônicos absolutos posteriores, como Fichte e os român- ticos, propõem e derrubam ao mesmo tempo, vivendo subjuntiva ou hipotetica- mente e despojados inteiramente de uma continuidade pessoal. O irônico-esteta vive a realidade como mera possibilidade, usurpando hubristicamente a prerroga- tiva divina em sua liberdade impotente de unir e soltar os nós. O sujeito desespe- rado de The Sickness Unto Death, decidido perversamente a ser o que ele é, remodela extravagantemente a totalidade de seu ser finito à imagem de seu próprio desejo arbitrário. Tal experimentalismo estético (“encantador como um poema oriental”, observa Kierkegaard) é uma espécie de conjuração de si mesmo ex nihilo a cada momento, anulando alegremente o peso da historicidade e da radical facticidade do eu. A verve dessa automodelagem artística ou doação de lei a si mesmo mal esconde o seu niilismo: se o sujeito é capaz de dissolver sua elaborada fabricação num nada, a qualquer instante, a sua onipotência corres- ponde à sua nulidade. O si mesmo como ato gratuito perpétuo é um simples autocancelamento da liberdade: “a ironia, como a velha bruxa, sempre tenta exasperadamente primeiro devorar tudo a sua volta, e depois devorar a si mesma também, ou devorar o seu próprio estômago”.5 A estética assim, como

desenvolvimento livre das múltiplas faculdades do sujeito, sustenta-se sobre um violento e oco desejo de si.

O esteticismo “imediato” e o “reflexivo” descentram o sujeito em direções opostas, seja achatando-o sobre a realidade externa ou mergulhando-o infrutifera- mente nas suas próprias vertiginosas profundidades. Esses modos contrastantes da existência estética são consequência da condição primária do eu kierkegaardiano, como síntese contraditória do finito e do infinito. Assim que essa precária unidade se rompe, o sujeito ou voa para dentro da finitude sensível, abandonando-se a um conformismo covarde com a ordem social, ou se vê monstruosamente inflado e volatilizado, carregado embriagadamente para fora de si mesmo naquele “processo de infinitização”, cuja raiz insidiosa é a imaginação estética. Como uma mistura paradoxal de necessidade e possibilidade, o sujeito irregenerado descobre que cada uma dessas dimensões tenta constantemente vencer a outra: desejar não ser você mesmo é tão desesperador espiritualmente quanto querer desafiadoramente ser você mesmo, menosprezar a necessidade é tão catastrófico quanto negar a possi- bilidade.

Se a ironia é o curinga no baralho estético, a linha limite, ou o ponto desconstrutivo no qual o eu e o mundo estão inicialmente separados, ela também fornece o limiar entre o estético e o ético. Ela é a separação original ou a lâmina cortante que permite ao sujeito efetuar a sua passagem da imediatez descentrada do “imaginário” estético ao estado diferenciado e unificado da “ordem simbólica” ética. Sócrates, em The Concept of Irony é, nesse sentido, a figura liminar, equilibrando-se na borda da subjetividade determinada, sem ter ainda alcançado um estado pessoal como projeto resolvido e decisão autônoma. Só com o judaísmo, a lei, ou o estágio propriamente ético, subirá ao palco. Se o infinito oco da ironia lembra a “má” imediatez do estético, sendo as duas condições semelhantes na sua total indeterminação; a ironia, no entanto, nega esta imediatez, abrindo assim o caminho para o ético. Como a ironia não pode evitar propor aquilo que ela nega, ela acaba negando sua própria negatividade, permitindo o aparecimento da afir- mação. Não se trata pois de rejeitar a ironia. Ao contrário, como veremos, ela é a matriz de grande parte dos escritos de Kierkegaard. A ironia é essencial, mas como um “momento controlado” dentro do processo inacabado da verdade — um momento que, opondo-se ao “mau” infinito, “limita, torna finito, define, e daí produz a verdade, a realidade e o conteúdo...”.6 A ironia não é portanto negada,

freada abruptamente pelo ato do compromisso; ao contrário, ela sobrevive como a própria forma deste compromisso, que vive a discrepância entre seu interior intenso e o mundo externo com o qual continua a se envolver praticamente. O compromisso então eleva a ambivalência da ironia a um patamar mais alto, preservando um pouco da sua atitude cética diante da realidade social mas combinando isso com uma crença positiva. Nessa medida, a ironia é articulada ao humor e à comédia que, ao derrubarem as pretensões do mundo, carregam com elas uma positividade mais profunda do que a subversão socrática.

Há um outro modo de negatividade em Kierkegaard que invade a outrora repleta esfera da imediatez estética: trata-se da experiência da angústia. A angústia é o encontro de si com o seu próprio nada, ou mais especialmente, a nossa resposta a este perturbador néant que nos persegue mesmo na mais pura e sensual falta de autoconsciência. Mesmo a imediatez estética, sonhando a sua abençoada indife- renciação, sempre já trai alguma negação fugidia, como alguma obscura premo- nição da diferença, da alteridade e da liberdade. É como se o espírito já vislum-

brasse suas próprias possibilidades futuras mesmo dentro da serena autoignorância da experiência estética — como se, em termos hegelianos, a anulação da imediatez fosse um movimento imanente dentro da própria imediatez. A própria plenitude da experiência estética não pode se livrar de ser sinistramente sugestiva da falta — não, certamente, falta de alguma coisa específica, pois senão, como esse estado poderia ser percebido como pleno? Mas uma ausência necessariamente vinculada à sua mera existência. Pode-se descrever esse sentimento misterioso, em termos heideggerianos ou sartrianos, como aquela ansiedade inomeável que experimentamos quando a plenitude mesma de um objeto inadvertidamente traz à mente o não-ser que ele contingentemente preencheu; ou pode-se figurá-la de outro modo como um momento dentro do imaginário lacaniano — a presença obscura da mãe ao lado da imagem no espelho da criança, por exemplo — que ameaça romper sua coerência. Pode ser mesmo que a angústia kierkegaardiana tenha ressonâncias na categoria de “abjeto” de Julia Kristeva, aquela experiência origi- nária de náusea, horror e desgosto que acompanha os nossos primeiros esforços de separação da mãe pré-edípica.7 Qualquer que seja o modelo mais apropriado, é

claro que para Kierkegaard não haverá nenhuma genuína inocência estética, edênica ou pré-edípica — a Queda sempre já aconteceu; de outro modo, como poderia Adão violar as ordens de Deus pela primeira vez? A desobediência de Adão é vista em O conceito de angústia como um paradoxo absurdo: é desta transgressão que surgiu um conhecimento da diferença, de sorte que, foi a proibi- ção primordial ela-mesma, em estilo freudiano, que abriu a possibilidade do desejo; Adão não poderia ter caído a não ser que alguma pré-compreensão vaga da possibilidade da liberdade já estivesse atuando em sua inocência antes do erro, de modo a ser catalisada pelo tabu que a criou. Adão foi assim acordado à pura possibilidade da liberdade, ao simples estado de ser capaz, e esta é a condição da angústia. A angústia, como Kierkegaard comenta, em termos impressionante- mente schillerianos, “não é um determinante da necessidade, mas também não o é da liberdade; é uma liberdade travada, onde a liberdade não é livre em si mesma mas travada, não pela necessidade mas por si mesma”.8 Como a condi-

ção estética do ser em Schiller, a angústia está indecidivelmente suspensa entre a liberdade e a necessidade; mas o que era para Schiller um estado de potencial inominado extremamente positivo, é para Kierkegaard uma forma de angst ontológica.

“O pecado se autopressupõe”, escreve Kierkegaard, querendo talvez dizer que suas origens são, em qualquer sentido temporal, bastante impensáveis. O pecado não tem lugar nem origem, existindo sob o signo da contradição. Pecar é ter sido sempre capaz de fazê-lo; e assim o pecado pode ser tanto a ruína de qualquer ética racional ou da busca de origens transcendentais, como a experiência da angústia é a negação imanente da inocência. Decerto, qualquer temporalização mitológica da Queda, como em Paraíso perdido, tenderá a cair de cabeça num paradoxo insuperável, como torna claro O conceito de angústia. Se Adão é a origem do pecado original, então ele não tinha em si próprio aquela mancha, o que o coloca fora da raça de que ele foi o pai e portanto o exclui dos frutos da Expiação. Se ele é o único indivíduo que não teve história, então a raça provém de um indivíduo que não era um indivíduo, fato que anula igualmente os conceitos de raça e de indivíduo. Como pode a raça humana ter uma origem de fora dela? E se

não pode haver origem transcendental que escape à contaminação pela história que ela gera, então não há inocência originária, e a inocência surge no mundo sob o signo de sua própria dissolução, “chega a existir como aquilo que existia antes de ser anulada e agora está anulada”.9 A inocência não é assim uma perfeição a

ser recobrada “pois assim que se a deseja, ela está perdida”.10 Como Adão, todos

nós trazemos o pecado no mundo, o que é originário não é a inocência mas aquela possibilidade estrutural de transgressão que deve sempre já ter estado presente, e da qual a consciência se manifesta como angústia. A angústia é uma espécie de significante flutuante, um obscuro sentido primordial da possibilidade da diferen- ça antes que a diferença realmente ocorra, e que Kierkegaard chama de “a aparência da liberdade diante de si mesma como possibilidade”.11 É menos a

apreensão tateante da imediatez sobre alguma possibilidade diferente dela, do que alguma coisa como o nascimento da possibilidade da possibilidade; menos a intuição de um “outro” do que os primeiros movimentos da própria possibilidade categorial da alteridade. Há uma dimensão paranoide nesta condição, já que a alteridade é ao mesmo tempo atraente e intimidante na sua indeterminação, gerando o que Kierkegaard chama de “simpatia antipatética”. Enquanto o outro se mantiver para além da apreensão do eu, o sujeito é incapaz de definir a si mesmo e fica como se exterior ao seu próprio ser; mas a ansiedade deste estado é também curiosamente agradável, pois para o sujeito definir-se a si mesmo no outro é encontrar-se e perder-se simultaneamente. O próprio nada do eu é, ao mesmo tempo, sedutor e repelente, combinando em si o terror e a sedução do sublime. Assim não surpreende ver Kierkegaard associando a angústia especialmente às mulheres, que são, de modo similar, ao mesmo tempo, amedrontadoras e tentado- ras. A angústia é “uma debilidade feminina, na qual a liberdade desmaia”.12 Ela

encarna, como o sublime, “o infinito egoístico da possibilidade, que não nos tenta como uma escolha definida, mas alarma e fascina com a sua doce ansiedade”.13

Na sua própria imediatez sensível, na sua falta de espírito esteticista, a mulher inspira o néant da angústia e se afigura, contraditoriamente, como um abismo sublime pronta a engolfar o eu medroso. A angústia é o “nada inexplicável” que sombreia toda a sensibilidade, o mais fraco e puramente negativo traço do espírito escondendo-se dentro dela, e assim uma imagem adequada da fêmea inocente e traiçoeira:

Mesmo isso que em termos humanos é a coisa mais bela e amável, a jovialidade feminina, pura paz e harmonia e alegria — mesmo aí temos o desespero. Pois isto é felicidade, mas a felicidade não é uma característica do espírito, e em sua profundi- dade remota, em suas partes mais internas, em seus recessos escondidos, mora também a angústia ansiosa que é o desespero... Toda imediatez, apesar de sua paz e tranquilidade ilusórias, é angústia, e então, com muita consistência, angústia do nada...14

A mulher mais perfeita é, em síntese, igualmente doente — tanto quanto a alegria sensual da Grécia Antiga, ao excluir o “espírito”, como a vê Kierkegaard, seria obscurecida por profunda tristeza. A angústia é aquele espaço em que o espírito irá habitar, e que antecipando sua chegada abre dentro do prazer sensível o lugar vazio em que ele germinará. O estético, para Kierkegaard, é assim inseparável da doença, mesmo que essa doença seja o mensageiro necessário da transição para o

estado ético. A sensualidade não é, em si mesma, pecaminosa, insiste O conceito de angústia; mas sem pecado não há sexualidade. O reconhecimento da diferença e da alteridade, essenciais à sexualidade, são também possibilidades estruturais do pecado; e como, sem sexualidade, não poderia haver história, o pecado é a precondição de ambos. É neste sentido, então, que o pecado é original — não como uma fonte transcendental da qual flua a história de após o erro, mas como uma condição sempre presente de liberdade, diferença e alteridade que subjaz à nossa existência histórica.

Em constraste com a indeterminação polimorfa da estética, a esfera ética para Kierkegaard significa antítese, decisão e compromisso energicamente unilateral. Se o sujeito estético habita num perpétuo presente, uma espécie de paródia inferior do momento eterno da fé, o sujeito ético, através de uma resolução apaixonada no presente, liga o seu passado culpado (devidamente reconhecido e arrependido) a um futuro de possibilidades a serem cumpridas. É assim que ele se faz existir como um sujeito determinado, temporalmente consistente, “tensionado” em todos os sentidos do termo. O paradoxo deste projeto é que o eu existe e ao mesmo tempo não existe antes dessa crise revolucionária de autoescolha: pois para que a palavra “escolha” tenha sentido, o eu deve, de algum modo, preexistir àquele momento, mas é igualmente verdade que ele só emerge no ser através desse ato de decisão. Uma vez que esta decisão é tomada, como uma orientação fundamental do próprio ser, e não uma opção por isso ou aquilo em particular, ela deve ser reencenada incessantemente; e este processo de transformação contínua, no qual o sujeito reúne sua história num projeto autoconsistente, pode parecer uma espécie de automodelação estética. O que o distingue desta autoinvenção exótica, no entanto, é não só sua parcialidade radical, mas sua abertura a tudo o que no sujeito é simplesmente dado: sua finitude inescapável e temporalidade culpada. Se a auto- determinação ética é uma espécie de constructo estético, é de um tipo carregado e provisório, cuja origem está para além de seu domínio e cujo fim não está à vista. De qualquer modo, ela rompe decisivamente com a inércia do ser estético limitado à aventura dinâmica de transformar-se, sendo marcado por um interesse apaixona- do que expulsa a ataraxia da estética ao mesmo tempo que denuncia o alto desinteresse do pensamento especulativo. (O humor é para Kierkegaard a alterna- tiva ao pensamento “objetivo”, sendo uma forma mais frutífera de desapego.) Viver na esfera ética é estar infinitamente interessado em existir —“existir” para Kierkegaard significa uma tarefa mais que um dado, algo para ser alcançado mais do que recebido. O desinteresse teórico ou estético nunca dará acesso ao bem e à verdade; só uma militância implacável poderá esperá-lo. Ver a vida verdadeira- mente é vê-la nem com certeza nem inteira. A verdade é carregada, tendenciosa, e ciumentamente exclusiva de uma forma que nenhum pluralismo liberal ou compassividade estética pode compreender.15 “Dom Hegel” é como Kierkegaard

apelidou desdenhosamente o filósofo que tentou escrupulosamente englobar todos os aspectos da realidade na sua poderosa totalização.

Na medida em que seja sequer possível distinguir sujeito e objeto na esfera da imediatez estética, pode-se dizer que esse registro do ser envolve uma interação íntima dos mundos interno e externo. É com esta interação simétrica que a estética

“reflexiva” rompe: o narcisista autoirônico ou ignora o mundo externo inteira- mente, ou o trata simplesmente como o material manipulável das suas fantasias. O sedutor de Ou isso ou aquilo está preocupado apenas com suas estratégias eróticas, não com o objeto desventurado a que elas se dirigem; a sua reflexividade tornou-se, por assim dizer, sua imediatez. Existir ironicamente é viver a discre- pância entre o interior e o exterior, estar ambiguamente suspenso entre a sua subjetividade negadora e o mundo que ela confronta. Na medida em que a esfera

No documento A Ideologia da Estética (páginas 130-146)