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A morte do desejo: Arthur Schopenhauer

No documento A Ideologia da Estética (páginas 115-130)

Embora Schopenhauer seja um dos filósofos mais lúgubres que já apareceram, há uma lado cômico involuntário em seu trabalho que tem a ver com o modo como o corpo está presente nele. Schopenhauer estudou fisiologia na universidade, e é impressionantemente versado em pulmões e pâncreas; torna-se um fato marcante que a sua escolha de disciplinas universitárias tenha refeito o curso de todo o pensamento Ocidental até o neonietzschianismo, muito em moda hoje em dia. Pois é das suas meditações grosseiramente materialistas sobre a faringe e a laringe, sobre cãibras, convulsões, epilepsia, tétano e hidrofobia, que Nietzsche tirou muito do seu próprio reducionismo fisiológico implacável; e todo aquele solene e arcaico discurso novecentista sobre o Homem, em termos de gânglios e região lombar, que sobrevive pelo menos até Lawrence, forma uma espécie de sombrio território intermediário até a ressurgência do interesse teórico sobre o corpo, que na nossa época tem uma dimensão mais positiva e política.

Schopenhauer é bastante desembaraçado ao detectar a sua célebre Vontade, o desejo cegamente persistente que está na origem de todos os fenômenos, em bocejos, espirros e vômitos, coceiras e estremecimentos dos mais variados tipos, e é completamente desatento ao bathos* com o qual sua linguagem desvia-se, sem

aviso, no meio de um parágrafo, das mais altas reflexões sobre o livre-arbítrio à estrutura da medula espinhal ou às excrescências da lagarta. Há uma espécie de bathos bakhtiniano ou plumpes Denken brechtiano nos seus mergulhos súbitos do Geist à genitália, do oracular ao orificial, que nas mãos de Bakhtine é, ao menos, uma arma política contra o medo paranoico da carne que domina o idealismo da classe dominante. Em Schopenhauer, trata-se menos de uma questão de revolta política que uma espécie de grosseria provinciana, como quando ele ilustra o conflito entre o corpo e o intelecto dizendo que as pessoas têm dificuldade de andar e falar ao mesmo tempo: “Pois assim que seu cérebro tem que juntar algumas ideias, não lhe sobrará mais muita força para manter as pernas em movimento através dos nervos motores.”1 Em outra parte, ele especula que o

mundo objetivo infinito e ilimitado “é, na verdade, apenas um movimento ou afecção da massa gelatinosa no interior do crânio”, [2, 273] ou sugere que a pequena estatura e o pescoço curto são especialmente favoráveis ao gênio,

115 * Bathos é uma figura retórica que significa uma descida cômica de um plano elevado ao

“porque por canais mais curtos, o sangue atinge o cérebro com mais energia”. [2, 393] Toda essa leitura literal e vulgar é um tipo de atitude teórica em si mesma, um cascudo sarcástico na altivez do hegelianismo, vindo de alguém, que apesar de também metafísico, encara Hegel como um grande charlatão e a maior parte da filosofia, excetuando Platão, Kant e ele mesmo, como conversa fiada. Feito um satírico juveniliano severo, excêntrico, arrogante e destemperado, ele afirma acreditar que os alemães precisam de suas palavras compridas para dar às suas mentes lentas mais tempo para pensar. A obra de Schopenhauer revela um casa- mento carnavalesco do impositivo e do lugar-comum, que aparece até mesmo no seu nome.

De fato, a incongruência torna-se, nas suas mãos, a base de uma teoria da comédia bem desenvolvida. O cômico, segundo ele, nasce da subsunção paradoxal de um objeto por um conceito que o recebe de forma heterogênea, de modo que uma insistência na não identidade do objeto e do conceito, à maneira de Adorno, pode vir a explicar por que os animais não riem. O humor, nesta visão generali- zante, atua com um alto estilo e significados baixos, e assim como a própria filosofia de Schopenhauer, tem uma estrutura irônica ou dialógica. Isto é, em si, profundamente irônico, pois a discrepância entre percepto e conceito que provoca o riso é exatamente a disjunção entre a experiência e o intelecto, entre a vontade e a representação, que está no centro da atitude enojada de Schopenhauer frente à humanidade. A estrutura interna desta mais sombria das visões é assim a estrutura de uma piada. A razão, nele, serva bruta e disparatada da vontade imperiosa, é sempre falsa consciência, um mero reflexo do desejo que se crê absurdamente capaz de apreender o mundo como ele é. Os conceitos, numa versão familiar do irracionalismo novecentista, não podem prender-se à riqueza intrincada da expe- riência, e aparecem sempre desajeitados e brutamente reducionistas. Se isso joga o próprio ser da humanidade na ilusão, fazendo com que pensar simplesmente seja autoenganar-se, ao mesmo tempo fornece os elementos de uma teoria do humor freudiana:

[A percepção] é o meio do presente, do prazer e da alegria; sendo especialmente não associável a nenhum esforço. Com o pensamento acontece o oposto; ele é a segunda potência do conhecimento, cujo exercício sempre requer algum, e às vezes conside- rável, esforço; e os conceitos do pensamento frequentemente se opõem à satisfação imediata dos desejos, pois como veículos do passado, do futuro e do que é sério, eles agem como instrumentos de nossos medos, nossos arrependimentos e todos os nossos cuidados. Deve portanto ser agradável ver esta governante severa, incansável e perturbadora, a nossa razão, pelo menos por uma vez presa da inadequação. É nesta medida que o semblante, ou a aparência do riso, está tão de perto relacionado ao da alegria. [2, 98]

A comédia é a zombeteira vingança da vontade sobre a representação, o golpe malicioso do id schopenhaueriano contra o superego hegeliano; mas esta fonte de hilariedade é também, curiosamente, a raiz de nossa imensa desesperança.2

Se o humor e a desesperança estão tão próximos, é porque a existência humana, para Schopenhauer, é menos uma grande tragédia que uma pálida farsa. Debatendo-se na lida de sua vontade voraz, levados por um apetite implacável que idealizam incansavelmente, os homens e as mulheres são menos protagonistas

trágicos que pobres obtusos. O símbolo mais adequado para o empreendimento humano é o da toupeira de patas em forma de pá: “cavar esforçadamente com suas enormes patas em forma de pá é o negócio de sua vida; cerca-o a noite permanente ... o que ele obtém com esta vida tão cheia de dificuldades e vazia em prazeres? A alimentação e a procriação, ou seja, os simples meios para continuar e começar de novo, em novos indivíduos, o mesmo destino melancólico”. [2, 353-4] Nada parece mais óbvio a Schopenhauer do que a ideia de que seria indubitavelmente preferível que o mundo simplesmente não existisse, pois o projeto inteiro é um horrível erro que já devia ter terminado há muito tempo, e só um idealismo enlouquecido pode acreditar que os prazeres da existência valem mais que seus pesares. Só a mais escandalosa ilusão de si mesmo — ideias, valores, todo o resto dessa parafernália sem sentido — pode cegar os indivíduos para esta verdade risivelmente manifesta. Mergulhada na sua bruta estupidez, a humanidade insiste em encarar como valiosa uma história que só registra massacres, miséria e desgraças. Nossa capacidade de representá-la como tolerável só pode ser pensada como uma astúcia da vontade, como uma esperteza inferior com que ela se protege de nosso conhecimento de sua própria futilidade. É difícil para Schopenhauer evitar um riso histérico à vista desta raça pomposamente ciente de sua própria importância, tomada por uma fome de viver sem remorso; cada um secretamente indiferente ao seu próximo, devotamente convencido de seu próprio valor; espa- lhando-se uns sobre os outros na perseguição de objetivos imediatos que rapida- mente se transfomam em cinzas nas suas bocas. O mundo é um enorme mercado, “esse mundo de criaturas constantemente carentes, vivendo o seu tempo simples- mente a devorar uns aos outros; levando sua existência com ansiedade e privações, com fases constantes de terríveis aflições, até caírem finalmente nos braços da morte”. [2, 349] Não há nenhum grande telos neste “campo de batalha de seres atormentados e em agonia”, [2, 581] só “a gratificação momentânea, o prazer fugidio condicionado pela necessidade; muito e longo sofrimento, luta constante, bellum omnium, todos caçadores e todos presas, pressão, privação, necessidade e ansiedade, gritos e gemidos, e isso continua in saecula saeculorum ou até quando novamente a crosta do planeta se romper”. [2, 354] Se os seres humanos fossem capazes de, por um momento, contemplar objetivamente este seu apego perverso à infelicidade, necessariamente se enojariam dele. A raça toda é como um mendigo doente que nos pede ajuda para prolongar sua existência miserável, mesmo quando, numa perspectiva objetiva, sua morte fosse o mais desejável. Somente um humanismo sentimental consideraria esse juízo insensível e não friamente razoá- vel. Nesse quadro, uma vida mais afortunada é a que tem necessidades suportáveis e comparativamente um pouco menos dor , mas o resultado disso é o tédio. O tédio é para Schopenhauer o principal motivo para a sociabilidade, pois é para evitá-lo que procuramos a companhia pouco amável uns dos outros. Tudo isto prepara o palco para uma grande tragédia, mas mesmo isso nós estragamos: “nossa vida deve conter todos os pesares da tragédia, mas nós não conseguimos assumir a dignidade de personagens trágicos, e na visão mais cuidadosa da vida, somos inevitavelmente personagens tolos de uma comédia”. [1, 322] A História é um teatro de revista de baixa categoria, sem nada da solenidade ática: “ninguém tem a mais remota ideia de por que essa tragicomédia existe, ela não tem espectadores, e os atores mesmos só se preocupam indefinidamente com muito pouco ou nenhum prazer”. [2, 357]

A vida é um drama absurdo, grotescamente ruim, cheio de repetições farsescas, um leque de variações triviais com um roteiro insípido.

Há algo de divertido na consistência incansável da tristeza schopenhaueria- na, com toda a monótona e mecânica repetição das condições que denuncia. Se a comédia para ele envolve a subsunção de objetos a conceitos inadequados, então isso é ironicamente verdadeiro quanto ao seu próprio pessimismo, que marca tudo com a mesma cor inexorável, tornando-se engraçado como toda monomania. Qualquer conversão obsessiva da diferença à identidade acaba sendo cômica, não importa quão trágica seja sua aparência imediata. Não ver nenhuma diferença entre assar a perna de um carneiro e assar um bebê, ver a ambos como simples expressões indiferentes do mesmo desejo metafísico é tão ridículo quanto confundir o seu pé esquerdo com a ideia de justiça natural. Parte de nosso gozo com a visão desse poço de miséria é certamente um desabafo frente ao desfile do egoísmo monstruo- so que lutamos para camuflar — embora no caso da visão completamente pessi- mista de Schopenhauer, nosso riso possa incluir uma certa defesa nervosa. Sua ignorância perversa do que nós sentimos serem os aspectos mais positivos da vida é tão exagerada que se torna divertida, como riríamos com alguém cujo único interesse pelos grandes pintores fosse saber quantos deles tinham mau hálito.

O intenso pessimismo de Schopenhauer, no entanto, é, em certa medida, nada escandaloso — e pode ser visto mesmo como o sóbrio realismo que ele conside- rava. Apesar de ser uma perspectiva parcial, trata-se de um fato que através da história das classes, o destino da grande maioria dos homens e mulheres tem sido de sofrimento e trabalho insensato. Schopenhauer pode não estar com toda a verdade, mas possui uma parcela maior dela do que os humanistas românticos que ele pretende criticar. Qualquer visão da humanidade mais esperançosa que não encare esta face particular tende a se enfraquecer. O relato dominante da história até hoje tem sido certamente este de massacres, miséria e opressão. A virtude moral nunca floresceu como força decisiva em qualquer cultura política. Em qualquer lugar em que esses valores tiveram alguma força precária, eles sempre estiveram confinados a uma dimensão de privacidade. As monótonas forças dirigentes da história têm sido o ódio, o desejo e o domínio; e o que há de mais escandaloso nesta herança sórdida é que é possível perguntar às vidas de inúmeros indivíduos se eles não estariam melhor mortos. Qualquer parcela de liberdade, dignidade e conforto sempre ficou restrita a uma pequena minoria, enquanto a indigência, a infelicidade e o trabalho árduo foi sempre o quinhão da grande maioria. “Entrar para uma fábrica de tecidos ou qualquer outra aos cinco anos de idade e sentar lá todos os dias, primeiro dez, depois doze e finalmente catorze horas por dia, a fazer sempre o mesmo trabalho mecânico, é pagar muito caro pelo prazer de respirar.” [2, 578] As mutações dramáticas da história humana, suas periódicas rupturas e revoluções, têm sido, num sentido, meras variações no tema consistente da explo- ração e da opressão. Nem poderia qualquer transformação futura, apesar de radical, afetar o passado desse destino de modo substancial. Apesar de todos os esforços de Walter Benjamin para levantar os mortos com o toque de clarim de sua eloquência; apesar de todas as urgentes tentativas de reunir em volta do bando frágil dos vivos as sombras fertilizadoras dos injustamente sufocados, a verdade é que os mortos só podem se sublevar na imaginação revolucionária.3 Não há

ordem dirigente. Não podemos chamar de volta o campesinato medieval esmagado ou os escravos assalariados do capitalismo industrial incipiente, as crianças que morreram amedrontadas e desamadas nos barracos miseráveis da sociedade de classes, as mulheres que vergaram as costas sob regimes que as trataram com arrogância e desprezo, as nações colonizadas que ruíram sob um opressor que as via ao mesmo tempo como sinistras e adoráveis. Não há nenhuma forma literal pela qual as sombras desses mortos possam ser chamadas para exigir justiça daqueles que os oprimiram. O caráter passado do passado é a simples verdade: reescrita ou recuperada como quisermos, os condenados da história passaram e não vão compartilhar de nenhuma ordem social mais compassiva que possamos ainda criar. Apesar de toda a sua excentricidade caseira e de sua obstinada monomania, a visão espantosa de Schopenhauer é precisa em muitas de suas características. Ele está errado em pensar que a vontade destrutiva é a única que existe; mas num sentido ele está correto em vê-la como a essência de toda a história até o momento. Não se trata de uma verdade particularmente agradável para os políticos radicais, mesmo sendo esta a motivação de sua prática. Que esta narrativa intolerável não tenha continuidade é a crença que inspira a sua luta, mesmo que o peso terrível desta história possa prestar um mudo testemunho contra a praticabi- lidade de sua fé. A fonte de energia da política radical é assim sempre a fonte potencial de seu amortecimento.

Schopenhauer foi talvez o primeiro e principal filósofo moderno a colocar no centro de sua obra a categoria abstrata do desejo em si, independente desta ou daquela vontade particular. É esta poderosa abstração que a psicanálise utilizaria mais tarde, embora seja provável que Freud, que dizia considerar Schopenhauer um dos seis maiores homens que já viveram, não tenha conhecido a sua obra antes de ter desenvolvido as suas principais teorias. Assim como a sociedade capitalista está se desenvolvendo nesta época ao ponto em que será possível a Marx extrair dela o conceito-chave do trabalho abstrato, uma operação conceitual só possível com base em condições materiais determinadas, assim o papel determinante e a repetição regular do desejo na sociedade burguesa permite agora uma dramática mudança teórica: a construção do desejo como uma coisa em si mesma. Trata-se de um acontecimento metafísico especial, ou uma força com identidade própria, comparando-se com ordens sociais anteriores em que o desejo ainda é fortemente particularizado, muito intimamente ligado às obrigações tradicionais ou locais para que possa ser reificado desta maneira precisa. Com Schopenhauer o desejo torna-se o protagonista do teatro humano, e os sujeitos humanos simplesmente seus portadores obedientes ou seus servos. Isto não depende só da emergência de uma ordem social na qual, na forma de um individualismo possessivo corriqueiro, o desejo transformou-se na ordem do dia, na ideologia dirigente e na prática social dominante; mas é resultado da percepção de um infinito de desejo numa ordem social em que o único fim da acumulação é acumular mais. Num colapso traumá- tico de qualquer teleologia, o desejo transforma-se em algo independente de fins particulares, ou, ao menos, grotescamente desproporcional a eles; e uma vez que deixe de ser intencional (no sentido fenomenológico), ele começa a se impor monstruosamente como uma Ding-an-Sich, um poder opaco, incompreensível, autogerado, inteiramente sem propósito ou razão, como uma terrível caricatura da divindade. A Vontade schopenhaueriana, como uma espécie de propositividade

sem propósito, é, neste sentido, um travesti selvagem da estética kantiana, um artefato falso e inferior. Poderíamos perfeitamente passar sem sua existência.

Uma vez que o desejo aparece pela primeira vez homogeneizado numa unidade singular, ele pode ser objeto de juízo moral enquanto tal — um movimento completamente ininteligível aos moralistas, para quem não existe nenhum fenô- meno como o “desejo”, mas apenas este ou aquele apetite particular, sobre o qual deve-se fazer um juízo particular. Quando o desejo é hipostasiado desta maneira, então será possível, numa longa linhagem romântico-libertária que vai de William Blake a Gilles Deleuze, encará-lo como superiormente positivo; mas as precondi- ções para este tipo de juízo são as mesmas da denúncia de Schopenhauer ao desejo tout court, aceitando as categorias do humanismo romântico, mas impudentemente invertendo os seus valores. Como Schopenhauer, você pode reter todo o aparato totalizante do humanismo burguês na sua forma mais afirmativa — o princípio singular central informando toda a realidade, o todo cósmico integrado, as relações estáveis entre fenômeno e essência — ao mesmo tempo que traiçoeiramente esvazia suas formas de seu conteúdo idealizado. Você pode drenar a substância ideológica do sistema — liberdade, justiça, razão, progresso — e preenchê-lo, ainda intacto, com os materiais reais degradados da existência burguesa cotidiana. É isso, precisamente, o que a noção de Vontade em Schopenhauer consegue, funcionando estruturalmente da mesma maneira que a Ideia hegeliana ou a força vital romântica, mas agora reduzida à rapacidade grosseira do burguês médio elevada ao nível cósmico e transformada no princípio metafísico que move todo o universo. É como se retivéssemos toda a parafernália das Ideias platônicas mas a chamássemos de Lucro, Filisteísmo, Egocentrismo etc...

O resultado deste movimento é ambivalente. Por um lado ele naturaliza e universaliza o comportamento burguês: tudo, desde a força da gravidade até a comoção cega de um piolho ou os movimentos do intestino, tudo é investido com a mesma ânsia fútil, todo o universo é refigurado à imagem do mercado. Por outro lado, esse mesmo gesto engrandecedor e generalizante serve para desacreditar o Homem burguês o mais completamente, desenhando-o repelentemente grande, projetando seus apetites sórdidos como a substância mesma do cosmos. Reduzir o homem a um piolho é ao mesmo tempo desculpá-lo, como um fantoche desampa- rado da Vontade, e insultá-lo. Essa desbancada estremece a ideologia burguesa até às raízes, ao mesmo tempo que seu efeito naturalizador exclui a esperança de qualquer alternativa histórica. O sistema de Schopenhauer aparece no auge do destino histórico burguês, ainda confiante em suas formas de unificar, essenciali- zar, universalizar, mas precisamente nestes gestos, inflando até proporções into- leráveis o conteúdo mesquinho da vida social. Este conteúdo é assim desacreditado pelo próprio movimento que lhe dá um estatuto metafísico. As formas do sistema hegeliano viram-se contra ele com uma vingança; a totalização é possível, mas agora só numa forma puramente negativa.

Isto também é verdade em outro sentido. Para Hegel, o sujeito livre articula uma dimensão universal de consciência (Geist), que está, no entanto, no cerne mesmo da sua identidade como aquilo que faz dela o que ela é. E este princípio transcendental, para ser ele mesmo, tem necessidade da individuação. Schope- nhauer preserva esta estrutura conceitual mas lhe empresta uma torção malévola. O que me faz aquilo que eu sou, a vontade da qual eu sou uma simples materiali-

No documento A Ideologia da Estética (páginas 115-130)