• Nenhum resultado encontrado

O sublime no marxismo

No documento A Ideologia da Estética (páginas 146-172)

Na nossa narrativa, até o momento, a estética, como uma espécie de materialismo incipiente, não parece ter passado muito bem. Em certo sentido, podemos mesmo dizer que tudo o que vimos até agora como estética, poderia ser melhor chamado de anestética. Kant expulsa toda a sensualidade da representação estética, deixan- do de sobra somente a pura forma. Como colocaram Pierre Bourdieu e Alain Darbel, o prazer estético kantiano é “um prazer vazio, que contém em si a renúncia do prazer: é um prazer purificado do prazer”.1 Schiller dissolve o estético numa

indeterminação rica e criativa, em contradição com a dimensão material que ela deve, no entanto, transformar. Hegel é fastidiosamenete seletivo em relação ao corpo, endossando apenas aqueles sentidos que de algum modo parecem intrinse- camente abertos à idealização; e nas mãos de Schopenhauer a história acaba como uma recusa implacável da própria história material. Se Kierkegaard retorna à dimensão estética, é também, de forma claramente negativa: a esté- tica, que foi uma vez consumação da beleza, é agora sinônimo de fantasia ociosa e desejo degradado. Um discurso que começou, com Baumgarten, buscando reconciliar os sentidos e o espírito acaba polarizado violentamente entre um idealismo antissensual (Schopenhauer) e um materialismo irregene- rado (Kierkegaard).

Se as coisas chegam a esse ponto, parece que a única estratégia prolífica seria a de voltar mais uma vez ao início e pensar tudo de novo, mas dessa vez tendo como ponto de partida o próprio corpo. O materialismo implícito da estética poderá ainda ser redimido; mas para descarregá-lo do peso do idealismo que o verga, é necessário uma revolução do pensamento que faça de sua base o próprio corpo, e não um tipo de razão que luta por um espaço próprio. E se uma ideia de razão pudesse ser gerada a partir do próprio corpo, em vez de se incorporar o corpo à razão que está sempre já no seu lugar? E se fosse possível, num desafio corajoso, voltar atrás e reconstruir tudo — a ética, a política, a razão — a partir de uma fundação no corpo? É claro que esse projeto estaria sujeito a muitos perigos: como salvaguardá-lo do naturalismo, de um biologismo, do empirismo sensível, de um materialismo mecanicista ou de um falso transcendentalismo do corpo, todos tão incapacitantes quanto as ideologias que ele pretende criticar? Como pode o corpo humano, ele mesmo, em parte, um produto da história, ser tomado como a fonte da história? Em um tal empreendimento, o corpo não posaria como uma outra simples anterioridade privilegiada, tão espuriamente autofundada quanto o ego fichtiano?

Deve haver, no entanto, algum outro modo de se trabalhar diligentemente esta subida desde o polegar opositor ou o impulso oral até o êxtase místico ou o complexo industrial-militar. É exatamente este projeto que os três maiores “este- tas” do período moderno — Marx, Nietzsche e Freud — irão lançar corajosamente: Marx com o corpo trabalhador, Nietzsche com o corpo como poder, e Freud com o corpo do desejo. A questão imediata então seria como, nesse contexto, falar de teoria? O que dizer de uma forma de pensamento que nega o pensamento? Nega o pensamento, é bom frisar, como uma realidade autônoma, voltando-nos sempre para os interesses corpóreos de onde ele foi gerado. “O próprio elemento do pensamento”, escreve Karl Marx, “o elemento da expressão vital do pensamen- to, a linguagem, é natureza sensível”.2 Se um discurso materialista não trai

necessariamente suas premissas no ato mesmo de sua articulação, é porque, como sugere Marx, a reflexão teórica deve ser ela mesma pensada como prática material.

“A percepção sensível”, Marx escreve nos Manuscritos econômicos e filosóficos (MEF),“deve ser a base de toda ciência. Só quando a ciência começa pela percep- ção sensível na sua forma dupla da consciência sensível e da necessidade dos sentidos — i.e. só quando a ciência começa pela natureza — ela é verdadeiramente ciência. Toda a história é uma preparação, um desenvolvimento, para que o homem se torne o objeto da consciência sensível e para que as necessidades do “homem enquanto homem” tornem-se necessidades (sensíveis)”.3

Quase um século depois da proclamação de Alexander Baumgarten do nascimento de uma nova ciência, Marx pede por sua reinvenção. Mas a estética, aquela humilde prótese da razão, suplanta aqui, vingativamente, o que se pretendia que ela apenas complementasse. A percepção sensível, certamente, mas como a base de todo conhecimento? E como pode isso não passar de um empirismo vulgar? Marx utilizará a maior parte dos MEF para pensar de novo a história e a sociedade, e dessa vez, a partir do corpo. Elaine Scarry observa como, em todos os seus escritos, Marx “assume que o mundo é o corpo do ser humano e que, tendo projetado seu corpo no mundo construído, os homens e as mulheres são eles mesmos descorporificados, espiritualizados”.4 O sistema da produção econô-

mica, como aponta Scarry, é para Marx uma espécie de metáfora materializada do corpo, como quando ele fala nos Grundrisse da agricultura como a conver- são do solo num prolongamento do corpo. O capital funciona como um corpo substitutivo do capitalista, provendo-o com uma forma vicária de sensibilida- de; e se a essência fantasma dos objetos é o valor de troca, então é o seu valor de uso material, como coloca Marx ainda nos Grundrisse, que os dota de existência corpórea.

A história que o marxismo tem para contar é um relato classicamente hubrístico de como o corpo humano, através de suas extensões que nós chamamos de sociedade e tecnologia, chega a superar a si mesmo e a levar a si mesmo até o nada, reduzindo sua própria riqueza sensível a uma cifra no ato de converter o mundo em um órgão de seu corpo. Que essa tragédia deva ocorrer não é, natural- mente, uma mera questão de arrogância tecnológica, mas das condições sociais nas quais o desenvolvimento tecnológico se dá. Como são condições de luta, nas quais os frutos do trabalho são disputados ferozmente, há necessidade de uma série

de instituições sociais que tem, entre outras funções, as de regular e estabilizar esses conflitos destrutivos. Os mecanismos pelos quais isso será realizado — repressão, sublimação, idealização e negação — são tão familiares ao discurso psicanalítico quanto ao político. No entanto, a luta pela apropriação e controle dos poderes do corpo não é tão facilmente debelada, e se inscreverá nas instituições mesmas que tentam reprimi-la. De fato, esta luta é tão urgente e incessante que ela lastreia completamente a história das instituições, vergando-a para fora da verdade, e distorcendo sua forma. O processo pelo qual a disputa em torno dos poderes do corpo inscreve-se até a raiz de nossa vida intelectual e institucional é conhecido pelo marxismo como a doutrina da base e da superestrutura. Como o sintoma neurótico, a superestrutura é o lugar onde o corpo reprimido chega a se manifestar para aqueles que são capazes de ler os seus sinais. São corpos de um determinado tipo — nascidos “prematuramente”, potencialmente comunicativos, necessitando trabalhar — que produzem uma história, diferentemente de outros corpos animais. E o marxismo é a narrativa de como essa história foge do corpo, pondo-o em contradição consigo mesmo. Descrever uma forma particular de corpo como histórica é dizer que ela é capaz continuamente de fazer alguma coisa com aquilo que a faz. A linguagem é, nesse sentido, o índice mesmo da historicidade humana, como um sistema cuja peculiaridade é a de permitir acontecimentos que transgridem a sua estrutura formal. Mas um aspecto desta capacidade incompreen- sível de autotransgressão, por parte deste animal linguisticamente produtivo, é o poder de expandir seu corpo numa rede de abstrações que, em seguida, violam a sua própria natureza sensível.

Se Marx pode invocar uma ciência com base sensível sem cair no lugar-co- mum do empirismo, é porque os sentidos para ele são menos uma região isolável — cujas “leis” pudessem então ser investigadas racionalmente — que a própria forma de nossas relações práticas com a realidade. “A objetividade dos possíveis objetos da experiência”, escreve Jürgen Habermas, “é assim [para Marx], fundada na identidade de um substrato natural — especificamente, o da organização corporal do homem — que é orientada para a ação e não numa unidade original de apercepção...”5 A percepção sensível, para Marx, é, em primeiro lugar, a

estrutura constitutiva da prática humana, mais que um conjunto de órgãos contem- plativos; na verdade, ela só se torna este último na medida em que já é, previamen- te, a primeira. A propriedade privada é a “expressão sensível” da alienação do homem em relação ao seu próprio corpo, o deslocamento sombrio de nossa plenitude sensível em direção ao impulso único de possuir: “todos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples alienação de todos — no sentido de ter. Para dar à luz sua riqueza interior, a natureza humana foi reduzida à sua absoluta pobreza”.6

O que acontece sob o capitalismo, para o jovem Marx, é uma espécie de ruptura e polarização da vida sensível em duas direções antitéticas, cada uma, um travesti grotesco do corpo sensível autêntico. Num nível, o capitalismo reduz a plenitude corpórea de homens e mulheres à “simplicidade crua e abstrata da necessidade” — abstrata, porque quando a mera sobrevivência material está em jogo, as qualidades sensíveis dos objetos intencionados por essas necessidades não se tematizam. Em fala freudiana, pode-se dizer que a sociedade capitalista transforma os impulsos, pelos quais o corpo humano

transcende suas próprias fronteiras, em instintos — aquelas exigências fixas, monotonamente repetitivas, que encarceram o corpo dentro de suas fronteiras:

Reduzindo as necessidades do trabalhador ao mínimo necessário para manter sua existência física e reduzindo sua atividade ao movimento mecânico mais abstrato ... o economista político declara que o homem não tem outras necessidades, nem na esfera da atividade nem na do consumo... Ele transforma o trabalhador num ser sem necessidades nem sentidos e a sua atividade numa pura abstração de toda atividade. 7

Mas se o capitalista rouba o trabalhador de seus sentidos, ele faz o mesmo consigo mesmo: “Quanto menos você comer, beber, comprar livros, for ao teatro, sair para dançar, ou para beber, pensar, amar, teorizar, cantar, pintar, esgrimir, etc...., mais você poupa e maior se tornará o tesouro que nem as traças ou os vermes podem consumir — o seu capital.”8 A vantagem do capitalista sobre o trabalhador é que

ele opera uma espécie de dupla substituição. Tendo alienado a sua vida sensível ao capital, ele é então capaz de recuperar vicariamente sua sensibilidade alienada pelo poder do próprio capital: “tudo o que você é incapaz de fazer, o seu dinheiro vai fazer por você: ele pode comer, beber, sair para dançar, ir ao teatro; pode comprar quadros, educação, curiosidades históricas, poder político; pode via- jar, ele é capaz de fazer todas essas coisas por você...” 9 O capital é um corpo

fantasma, um monstruoso Doppelgänger que sai para caçar enquanto seu mestre dorme, consumindo mecanicamente os prazeres de que ele austeramente abstém-se. Quanto mais o capitalista renuncia ao seu prazer, devotando seus esforços, em seu lugar, à modelação deste alter-ego zumbi, mais satisfações de segunda mão ele é capaz de colher. Tanto o capitalista quanto o capital são imagens de mortos-vivos, um animado, apesar de anestetizado; o outro inani- mado, mas ativo.

Se um dos aspectos da sociedade capitalista é um brutal ascetismo, a sua imagem especular invertida é um esteticismo fantástico. A existência sensorial é despida, num nível, às necessidades básicas, só para ser extravagantemente inflada num outro nível. A antítese do escravo assalariado, cegamente biologizado, é o ocioso exótico, o parasita em busca de prazeres, para quem “a realização dos poderes essenciais do homem é simplesmente a efetuação de sua própria existência desordenada, seus caprichos e noções bizarras e delirantes”.10 Se o trabalhador é

devastado pela necessidade, o desocupado das classes altas é aleijado pela falta dela. O desejo, irrefreado pelas circunstâncias materiais, torna-se perversamente autoprodutivo, um campo de “apetites refinados, antinaturais e imaginários” que crescem luxuriosamente em suas extremas sutilezas. Esta imagem é, para Marx, o correlativo social do idealismo filosófico, como é, paradoxalmente, também, o mais prosaicamente material de todos os fenômenos: o dinheiro. O dinheiro para Marx é algo inteiramente idealista, uma dimensão de fantasia quimérica na qual toda identidade é efêmera e qualquer objeto pode ser transmutado de imediato em qualquer outro. Como os desejos imaginários do parasita social, o dinheiro é um fenômeno puramente estético, autoalimentado, autorreferente, autônomo em re- lação a toda verdade material e capaz de conjurar uma pluralidade infinita de mundos para a existência concreta. O corpo humano, sob o capitalismo, é assim fissurado pelo meio, dividido traumaticamente entre o materialismo bruto e o

idealismo caprichoso; ou muito em falta ou muito extravagente; seco até os ossos, ou inchado de erotismo perverso. O ponto dialético que se esperaria é que cada um desses opostos trouxesse o outro à existência. O narcisismo e a necessidade, apetites famintos ou exorbitantes, são (como Theodor Adorno poderia ter dito) as metades partidas de uma liberdade corpórea integral, que elas, no entanto, não têm como somar.

O objetivo do marxismo é restaurar para o corpo os seus poderes pilhados; mas só com a superação da propriedade privada os sentidos poderão voltar a si mesmos. Se o comunismo é necessário, é porque nós somos incapazes de sentir, saborear, cheirar e tocar tão plenamente como poderíamos:

A superação da propriedade privada é assim a completa emancipação de todos os sentidos e atributos humanos; mas é essa emancipação porque os sentidos e atributos tornaram-se humanos, tanto subjetiva quanto objetivamente. O olho tornou-se um olho humano, assim como seu objeto tornou-se um objeto social e humano, feito pelo homem e para o homem. Os sentidos tornaram-se assim teóricos na sua práxis imediata. Eles se relacionam com a coisa em função dela mesma, mas a coisa ela mesma é uma relação objetiva e humana consigo mesma e com o homem, e vice-versa. A necessidade e o gozo assim perderam sua natureza egoística, e a natureza perdeu sua mera utilidade, no sentido de que seu uso se tornou um uso

humano. 11

Marx é o mais profundamente “estético” na sua crença de que o exercício dos sentidos, poderes e capacidades humanas é um fim absoluto em si mesmo, sem necessidade de justificação utilitária; mas o desabrochar dessa riqueza sensível por si mesma só pode ser alcançado, paradoxalmente, através da prática rigorosamente instrumental da destruição das relações sociais burguesas. Só quando os impulsos corpóreos tiverem sido liberados do despotismo da neces- sidade abstrata, e o objeto, igualmente, tiver sido restaurado da abstração funcional para o seu valor de uso sensível particular, será possível viver esteticamente. Só através da subversão do estado, nós seremos capazes de experimentar nossos corpos. Como a subjetividade dos sentidos humanos é uma questão inteiramente objetiva, produto de uma complexa história material, é só através de uma transformação histórica objetiva que a subjetividade sensível poderá florescer:

Só através do desenvolvimento objetivo da riqueza da natureza humana poderá a riqueza da sensibilidade subjetiva humana — um ouvido musical, um olhar para a beleza da forma, em síntese, sentidos capazes de gratificação humana — ser cultivada ou criada. Pois não só os cinco sentidos, mas também os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor etc.), numa palavra, o sentido

humano, a humanidade dos sentidos — tudo isso só vem a ser através da existência

de seus objetos, através da natureza humanizada. O cultivo dos cinco sentidos é a obra de toda a história anterior. O sentido que é prisioneiro da necessidade prática bruta tem só uma significação restrita. Para um homem faminto a forma humana da comida não existe, só existe sua forma abstrata; ela pode mesmo estar presente em sua forma mais tosca, e seria difícil dizer como essa maneira de comer difere da dos

animais... a sociedade plenamente desenvolvida produz o homem em toda a riqueza

de seu ser, o homem rico, dotado profunda e abundantemente de todos os sentidos, como sua realidade constante.12

Se a estética burguesa suspende, por um raro instante, a distinção entre sujeito e objeto, Marx preserva essa distinção no ato de transgredi-la. Diferentemente do idealismo burguês, ele insiste nas precondições materiais objetivas da emancipa- ção sensorial; mas os sentidos são já, conjuntamente, objetivos e subjetivos, modos de prática material tanto quanto de riqueza experiencial. O que ele chama de “história da indústria” pode ser submetido a uma dupla leitura: o que, do ponto de vista do historiador, é uma acumulação de forças produtivas, é, fenomenologica- mente falando, o texto materializado do corpo humano, o “livro aberto dos poderes essenciais do homem”. As capacidades sensíveis e as instituições sociais são frente e verso uma da outra, perspectivas divergentes do mesmo fenômeno. E tanto quanto o discurso da estética evoluiu, com Baumgarten, como uma tentativa de mapear aqueles aspectos sensíveis que uma racionalidade objetiva punha em risco de supressão, Marx adverte que “uma psicologia para a qual este livro [dos sentidos], a parte mais acessível e tangível da história, estiver fechado, nunca poderá se tornar uma ciência real com um conteúdo genuíno”.13 O que é

necessário é uma forma de conhecimento que possa examinar as precondições materiais das diferentes relações sensoriais com o mundo: “a percepção sensí- vel de um adorador de fetiches é diferente da de um grego, porque sua existência sensível é diferente”.14

Os Manuscritos de Paris, de Marx, assim, superam de um só golpe a dualidade entre o prático e o estético, que está no coração do idealismo filosófico. Redefinindo os órgãos dos sentidos reificados, mercantilizados, daquela tradição como produtos históricos e formas de prática social, Marx relocaliza a subjetivi- dade corporal como uma dimensão de uma história industrial em evolução. Mas este refrear cuidadoso da subjetividade idealista é, por ironia, feito inteiramente em nome do sujeito: a única razão para lembrar o caráter objetivo do sujeito é melhor compreender as precondições políticas nas quais os poderes subjetivos possam ser exercidos como meros fins em si mesmos. Num sentido, o “estético” e o “prático” estão indissoluvelmente unidos, em outro, o último existe em função do primeiro. Como aponta Margaret Rose, Marx inverteu Schiller ao apreender a liberdade humana como uma questão da realização dos sentidos e não como uma liberação deles; 15 mas herda o ideal estético schilleriano de um desenvolvimento

humano inteiro e multiverso, e defende, como os estetas idealistas, que as socie- dades humanas são, ou devam ser, fins em si mesmas. As relações humanas não requerem nenhum fundamento metafísico ou utilitário, mas são a expressão natural do “ser da espécie” humana. Tal como Schiller, na conclusão de sua Educação estética do homem, fala de como a sociedade humana nasceu por fins pragmáticos mas evolui para além da utilidade até tornar-se um prazeroso fim em si mesma, Marx encontra os delineamentos desses laços “estéticos” no cerne do politicamen- te instrumental:

Quando os trabalhadores comunistas se reúnem, o seu objetivo imediato é a instru- ção, a propaganda etc... Mas ao mesmo tempo eles adquirem uma nova necessidade — a necessidade de sociedade — e o que aparece como um meio, torna-se um fim. Este desenvolvimento prático pode ser observado de forma marcante nas reuniões dos trabalhadores socialistas franceses. Fumar, comer e beber etc. não são mais meios para criar laços entre as pessoas. A companhia, a associação, a conversa, que por seu lado, têm a sociedade como seu objetivo, são o bastante para eles. A fraternidade dos

homens não é uma frase vazia, é uma realidade, e a nobreza do homem brilha sobre nós a partir dessas figuras consumidas pelo trabalho.16

Se a produção é um fim em si mesma, para o capitalismo, ela também o é, num sentido bem diferente, para Marx. A atualização dos poderes humanos é uma necessidade prazerosa da natureza humana, que não necessita de justificação funcional, assim como uma obra de arte. De fato, a arte se apresenta para Marx como o paradigma ideal da produção material, precisamente por ser tão evidente- mente autotélica. “Um escritor”, comenta ele, “não encara o seu trabalho como um meio para um fim. O trabalho é um fim em si mesmo; e será tão pouco um “meio” para ele e outros, que, se necessário, ele sacrificará a sua própria existência

No documento A Ideologia da Estética (páginas 146-172)