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Ilusões verdadeiras: Friedrich Nietzsche

No documento A Ideologia da Estética (páginas 172-192)

Não é difícil traçar alguns paralelos entre o materialismo histórico e o pensamento de Friedrich Nietzsche. Nietzsche é, ao seu modo, um materialista completo, apesar da pouca consideração que tem pelo processo do trabalho e suas relações sociais. Poderia se dizer que a fonte de toda cultura para Nietzsche é o corpo humano, se ele não encarasse o próprio corpo como uma expressão efêmera da vontade de poder. Em A gaia ciência, ele pergunta se a filosofia “não tem sido uma simples interpretação do corpo e um mau entendimento do corpo”;1 e observa, com

solenidade debochada, no Crepúsculo dos ídolos, que nenhum filósofo até hoje falou com reverência e gratidão sobre o nariz do homem. Seu pensamento tem frequentemente o sabor do fisiologismo vulgar de Schopenhauer, como por exem- plo, quando especula se a expansão do budismo não deve ser atribuída à perda de vigor consequente da dieta de arroz indiana. Mas ele está certo ao identificar o corpo como a enorme lacuna de toda filosofia tradicional: “a filosofia diz chega pra lá ao corpo, essa miserável ideia fixa dos sentidos, infectado por todos os erros lógicos imagináveis, refutado, impossível mesmo, embora bastante descarado para posar como real!”2 Nietzsche, pelo contrário, voltará ao corpo e tentará pensar tudo

de novo a partir dele, compreendendo a história, a arte e a razão como os produtos instáveis de suas necessidades e impulsos. Sua obra assim leva o projeto original da estética a um extremo revolucionário, pois o corpo nela volta vingativo como a ruína de toda especulação desinteressada. A estética, escreve ele em Nietzsche contra Wagner, é “fisiologia aplicada”.

Segundo Nietzsche, o corpo é o responsável por todas as verdades que pudermos alcançar. O mundo é do jeito que é somente em função da estrutura peculiar de nossos sentidos, e uma biologia diferente nos daria um universo inteiramente diferente. A verdade é uma função da evolução material da espécie: é o efeito passageiro de nossa interação sensível com o ambiente, simples conse- quência do que nós necessitamos para sobreviver e crescer. A vontade de verdade busca construir o tipo de mundo dentro do qual nossos poderes possam melhor se desenvolver e os nossos impulsos funcionar o mais livremente. A vontade de conhecimento é um impulso de conquistar, um aparelho de simplificar e falsificar a rica ambiguidade das coisas para que possamos tomar posse delas. A verdade é somente a realidade domesticada e tabulada pelas nossas necessidades práticas, e a lógica é a equiproporção falsa, no interesse da sobrevivência. Se a unidade

transcendental da apercepção em Kant tem algum sentido, ela se refere não às formas fantasmas da mente mas à unidade provisória do corpo. Nós pensamos como pensamos por causa do tipo de corpo que temos e das relações complexas com a realidade que são consequência disso. É o corpo mais que a mente que interpreta o mundo, parte-o em pedaços assimiláveis e lhes dá sentidos aproxima- tivos. O que “conhece” são os nossos múltiplos poderes sensoriais, que são não só artefatos neles mesmos — produtos de uma história emaranhada — mas também fontes de artefatos, gerando aquelas ficções magnificadoras da vida, pelas quais nós progredimos. O pensamento é certamente mais do que um reflexo biológico: ele é uma função especializada de nossos impulsos que pode refiná-los e espiri- tualizá-los com o passar do tempo. Mas tudo o que pensamos, sentimos e fazemos move-se dentro da grade de interesses de nosso “ser como espécie”, e não chegará a ter uma realidade independente disso. A comunicação mesma, que para Nietzs- che, como para Marx, é sinônimo de consciência, desenvolve-se sob coerção, como parte da luta material pela sobrevivência, não importa o quanto, mais tarde, venha a ser experimentada como um prazer em si mesma. O corpo, “fenômeno mais claro, mais rico e mais tangível” que a consciência,3 representa-se para

Nietzsche como o inconsciente — como um subtexto submerso em toda a nossa vida reflexiva mais refinada. O pensamento é assim sintoma da força material, e uma “psicologia” seria a hermenêutica cética que mostra cruamente os motivos baixos que o impulsionam. Não se contestam ideias mas se mostra a inscrição nelas dos traços dos desejos cegos da humanidade. Pensar é assim inerentemente “ideológico”, a marca semiótica de uma violência que agora se mantém esmaecida lá no fundo. O que fascina Nietzsche é o ruído incessante que sobe do coração da razão, a malícia, o rancor ou o êxtase que a move, o desdobrar-se do instinto em repressão instintual; o que ele ouve num discurso é o murmúrio baixo do corpo falando com toda a sua ambição ou sua culpa. Como Marx, Nietzsche está aí para derrubar a confiança crédula do pensamento em sua própria autonomia, e principalmente toda a espiritualidade ascética (seja ela conhecida como ciência, religião ou filosofia) que vira os olhos com horror diante do sangue e das lutas de onde nascem realmente as ideias. Esse domínio de sangue e luta é o que ele chama de “genealogia”, em contraste com o evolucionismo consolador da “história”. (“Aquela dimensão horrenda de falta de sentido e acaso, que vem até hoje se chamando de ‘história’”, zomba ele em Para além do bem e do mal).4 A genealogia desmascara a origem imaculada de noções

muito nobres, o acaso de suas funções, iluminando a oficina sombria onde todo pensamento é produzido. Valores morais muito elevados são o fruto manchado de sangue de uma história bárbara de dívidas, torturas, obrigações e vinganças, todo o processo de horror pelo qual o animal humano foi sistematicamente violentado e debilitado para ser tornado aceitável para a sociedade civilizada. A história não passa de uma moralização mórbida pela qual a humanidade aprende a se envergonhar dos seus próprios instintos, e “cada pequeno passo na terra foi pago com tortura física e espiritual. . . quanto sangue e crueldade estão por trás de todas as ‘boas coisas’!”5 Tanto para Nietzsche quanto para

Marx, a “moral” não é uma área de problemas, mas está, ela mesma, em questão; os filósofos podem ter investigado sobre este ou aquele valor moral,

mas ainda não problematizaram o próprio conceito de moral, que segundo Nietzs- che, não passa de “uma linguagem de sinais dos afetos”.6

Tanto quanto para Marx as forças produtivas são embaraçadas e constringi- das pelas relações sociais; para Nietzsche, os instintos de vida produtivos são enfraquecidos e reduzidos ao que nós percebemos como sujeição moral, a moral “de rebanho”, covarde e abstrata, da sociedade convencional. Trata-se de um movimento que vai da coerção à hegemonia: “A moral é precedida pela compulsão; ela se mantém mesmo por algum tempo como compulsão, à qual nos submetemos para escapar a consequências desagradáveis. Mais tarde, torna-se costume, mais tarde ainda, obediência livre, e finalmente, quase se torna instinto; daí, como todas as coisas costumeiras e naturais, ela é ligada à gratificação — e então se chama virtude.”7 O que vimos em Rousseau e outros moralistas de classe média como o

movimento extremamente positivo de transição “estética” da lei à espontaneidade, do poder bruto ao hábito prazeroso, é, para Nietzsche, a última palavra em autorrepressão. A velha lei bárbara legada à invenção judaico-cristã do sujeito “livre” como introjeção masoquista da autoridade, abre-se naquele espaço interior de culpa, mal-estar e má consciência que alguns chamam de “subjetividade”. Os instintos vitais saudáveis, impossibilitados de se descarregar por medo da desor- dem social, viram-se para dentro e dão à luz a “alma”, o agente policial dentro de cada indivíduo. O mundo interior se espessa e expande, adquire profundidade e importância, anunciando a morte dos “homens selvagens e livres”8 que feriam e

exploravam sem preocupação. A nova criatura moral é um sujeito “estetizado”, na medida em que o poder agora se transformou em prazer, mas ela prenuncia a falência do velho estilo de animal humano estético, que vivia seus instintos belos e bárbaros em esplêndida liberdade.

Estes eram, para Nietzsche, os guerreiros que impunham originalmente seus poderes despóticos a uma população que esperava humildemente por seus coman- dos. “Seu trabalho é uma criação instintiva e a imposição de formas; eles são os artistas mais involuntários e mais inconscientes que já existiram... Não sabem o que é a culpa, a responsabilidade ou a consideração, esses organizadores natos; exemplificam o terrível egoísmo dos artistas que têm o olhar de bronze e se sabem justificados perante toda a eternidade no seu ‘trabalho’, como a mãe no seu filho.”9

É este domínio brutal da classe dirigente que leva para o fundo os instintos livres daqueles a quem subjuga, criando a vida autodestruidora da ciência, da religião, do ascetismo. Mas esta subjetividade doentia é o produto de um magnífico trabalho artístico, e reflete a disciplina que a formou no seu masoquismo ferido:

Este êxtase secreto, essa crueldade de artista, esse prazer em impor a si mesmo uma forma como a um material duro, recalcitrante e sofredor e em queimar uma vontade, uma crítica, uma contradição, um desprezo, um não dentro de si; esse trabalho misterioso, horrivelmente alegre, de uma alma voluntariamente em contradição consigo mesma, que faz a si mesma sofrer com a alegria de fazer sofrer — essa “má consciência” inteiramente ativa — você já adivinhou — como o berço de todos os fenômenos ideais ou imaginativos, também trouxe à luz uma abundância de estranha beleza nova e afirmação, e talvez a própria beleza. . . 10

Nietzsche não se lamenta simplesmente do nascimento horroroso do sujeito humanista, diferente de seus acólitos menos precavidos de hoje em dia. Numa

unidade sedutora de disciplina e espontaneidade, forma sádica e material maleá- vel, este covarde animal autopunitivo é uma obra de arte em si mesmo. Se a arte é estupro e violação, o sujeito humanista haure um prazer estético perverso de uma contínua autoviolação, num sadomasoquismo que Nietzsche muito admira. E como a arte é o fenômeno que dá a lei a si mesmo, em vez de a receber passivamente de fora, o sujeito moral angustiado é, num sentido, um tipo estético mais exemplar que a velha classe dos guerreiros, que dominavam um material essencialmente estrangeiro a ela. A autêntica obra de arte é criatura e criador num único ser, o que é mais verdadeiro do sujeito moral que do chefe guerreiro imperioso. Há alguma coisa bela na má consciência: Nietzsche encontra estimula- ção erótica na autotortura da humanidade, como a própria humanidade também o faz, segundo ele. Mais ainda, essa criatura compulsivamente encantada consigo mesma não é só uma obra de arte por si mesma, mas é a fonte de toda sublimação, e, assim, de todo fenômeno estético. A cultura tem sua raiz no ódio a si mesma, e vinga-se triunfantemente dessa pobre condição.

Tudo isto pode parecer felizmente distante do marxismo; mas há um paralelo num teleologismo de ambos, embora essa palavra soe muito inconfortável aos ouvidos dos discípulos atuais de Nietzsche. A teleologia é um conceito bastante fora de moda hoje entre os marxistas como entre os nietzschianos; mas, como muitas noções demonizadas, ela merece talvez alguma redenção. Para Nietzsche, a ruptura da velha e confiável estrutura instintual do animal humano é, por um lado, uma perda catastrófica, fazendo aparecer o sujeito autopunitivo e carente da ideologia moral, e jogando a humanidade à mercê da mais traiçoeira e enganosa de todas as suas faculdades, a consciência. Por outro lado, esta decadência marca um avanço importante: se a corrupção do instinto torna a vida humana mais precária, ela abre, ao mesmo tempo, de uma só vez, novas possibilidades de experimentação e aventura. A repressão dos impulsos é a base de toda grande arte e civilização, deixando, por assim dizer, um vazio no ser humano que só a cultura poderá preencher. O homem moral é assim uma ponte ou transição essencial para o super-homem: só quando as velhas inclinações selvagens tiverem sido sublima- das pela imposição da moral “de rebanho”, pelo amor covarde da lei, o animal humano poderá tomar nas suas mãos essas tendências e guiá-las segundo a sua vontade autônoma. O sujeito nasce na doença e na sujeição, mas esta é uma oficina essencial para temperar e organizar poderes de outro modo destrutivos, que através da forma do super-homem atravessarão as formações morais como um novo tipo de força produtiva. O indivíduo do futuro então ligará esses poderes à tarefa de forjar a si mesmo como uma criatura livre; liberando a diferença, a heterogenei- dade e a existência singular da sujeição estúpida a uma ética homogênea. A morte do instinto e o nascimento do sujeito produziram, assim, uma Queda afortunada, na qual nossa perigosa confiança na razão calculadora é, ao mesmo tempo, uma insidiosa perda de fibra e o advento de uma existência enriquecida. A lei moral foi necessária na sua época para o refinamento dos poderes humanos, mas agora se transformou numa cadeia que deve ser rompida. “A mais profunda gratidão pelo que a moral obteve até aqui”, escreve Nietzsche em Vontade de poder, “mas agora ela é apenas uma carga que pode se transformar numa fatalidade!”11 “Muitas

correntes foram presas ao homem”, nota ele em O viandante e sua sombra, “para que ele desaprenda a se comportar como um animal; e na verdade, ele se tornou

mais dócil, mais espiritual, mais alegre, e mais circunspecto que qualquer animal. Mas atualmente ele ainda sofre por ter carregado essas correntes tempo demais...”12

Não pode haver indivíduo soberano sem o costume paralisante: tendo sido disci- plinados para internalizar a lei despótica que os iguala a mônadas sem rosto, os seres humanos estão prontos agora para aquele autogoverno estético e superior em que cada um dará a lei a si mesmo, de forma inteiramente singular e autônoma. Um tipo de introjeção dará lugar a outro, em que a riqueza da consciência desenvolvida será incorporada como um tipo recém-nascido de estrutura instintual, vivida com toda a espontaneidade robusta dos velhos impulsos bárbaros.

Há certamente uma analogia distante entre essa visão e o materialismo histórico. Para o marxismo, também, a transição da sociedade tradicional para o capitalismo implica uma falsa lei homogeneizante — a da troca econômica, ou a democracia burguesa — que gasta a particularidade concreta até ter dela apenas um fantasma. Mas esta “queda” é uma queda feliz, para cima e não para baixo, pois dentro da carapaça tola da igualdade abstrata são alimentadas as forças mesmas que poderão romper com o reino da necessidade, visando a um futuro reino de liberdade, diferença e excesso. Moldando, por necessidade, o trabalhador coletivo organizado, e envolvendo uma pluralidade de poderes históricos, o capi- talismo, para Marx, planta as sementes da sua dissolução, tanto quanto a era do sujeito, aos olhos de Nietzsche, prepara o campo para a sua superação. E Marx, como Nietzsche, encara às vezes essa superação como uma superação da moral como tal. Quando Nietzsche fala do modo como a consciência torna abstrato e em- pobrece o real, sua linguagem é semelhante ao discurso de Marx sobre o valor de troca:

Em função da natureza da consciência animal, o mundo do qual podemos nos tornar conscientes é só uma superfície — um mundo-signo, um mundo que é tornado comum e mesquinho; o que quer que se torne consciente, torna-se, ao mesmo tempo, oco, magro, relativamente estúpido, generalizado, signo, sinal do rebanho; todo tornar-se consciente envolve uma grande e completa corrupção, falsificação, redução à superficialidade, e generalização.13

O que é verdade da consciência como tal, na visão extremamente nominalista de Nietzsche, é para Marx, o efeito da mercadoria, pelo qual uma riqueza complexa de valor de uso é reduzido a um pobre motivo de troca. Mas para ambos os filósofos, a história se realiza pelo seu lado mau: se para Marx, o processo de mercantilização emancipa a humanidade dos privilégios e do paroquialismo da sociedade tradicional, abrindo o espaço para as trocas livres, iguais e universais, para Nietzsche o movimento da humanidade “tornar-se calculável” é uma neces- sidade de seu ser-de-espécie, pois sem essa calculabilidade ela não sobreviveria. A lógica é uma ficção aos olhos de Nietzsche, pois duas coisas nunca poderão ser idênticas; mas como o tornar-equivalente do valor de troca, ela é ao mesmo tempo repressiva e potencialmente emancipatória.

A época atual é assim, tanto para um quanto para o outro, propedêutica para uma condição de existência mais desejável, ao mesmo tempo obstaculizando-a e preparando-a, uma matriz protetora, já definitivamente superada. Os dois filósofos são parceiros também em outras posições. Ambos desdenham todo idealismo anódino e conversas sobre o outro mundo: “O mundo verdadeiro”, Nietzsche

comenta num idioma marxista, “foi construído sobre uma contradição com o mundo real”.14 Todos os dois propõem uma energia — da produção, da “vida” ou

da vontade de poder — que é fonte e medida de todo valor mas está para além de qualquer valor. Eles também se encontram no seu utopismo negativo, desenhando as formas gerais de um futuro mas não prevendo seus conteúdos; e os dois imaginam esse futuro em termos de abundância, excesso, superação, incomensu- rabilidade, recuperando uma sensualidade e especificidade perdidas através de um conceito transfigurado de medida. Ambos desconstroem as unidades idealizadas em seus conflitos materiais escondidos, e são tremendamente precavidos contra qualquer retórica altruísta, por baixo da qual detectam os movimentos fugidios do poder e do autointeresse. Se só são morais as ações feitas puramente em função dos outros, Nietzsche observa na Aurora, então não há ações morais. Nenhum dos dois dá um alto valor à consciência, que é reprovada por sua hubris idealista, e recolocada num lugar mais modesto dentro do campo mais vasto das determina- ções históricas. Para Nietzsche, a consciência é incuravelmente idealista, sempre marcando com um “ser” enganosamente estável o mundo dos processos materiais, da “mudança, da transformação, da multiplicidade, das oposições, contradições, guerra”.15 Para Marx, esse impulso da mente, metafísico ou reificador, parece ser

inerente às condições específicas do fetichismo da mercadoria, onde a mudança é, da mesma forma, congelada e naturalizada. Ambos são céticos em relação à categoria do sujeito, embora Nietzsche de modo mais acentuado que Marx. Para o Marx tardio, o sujeito aparece simplesmente como um suporte para a estrutura social; na visão de Nietzsche o sujeito é um mero truque de gramática, uma ficção conveniente para sustentar os fatos.

Mas se o pensamento de Nietzsche pode ser comparado com o marxismo, ele também pode ser decifrado por ele. O desprezo que Nietzsche demonstra pela moral burguesa é bastante compreensível nas condições do Império alemão de seu tempo, em que a classe média se contentava mais em buscar influência dentro do regime autocrático de Bismarck que em lhe confrontar politicamente de modo decisivo. Deferente e pragmática, a burguesia alemã repudiava seu papel histórico revolucionário pelos benefícios de um capitalismo instalado, em larga medida, a partir de cima — pelo estado protecionista de Bismarck — e pela proteção que esta acomodação às políticas de classe dirigente podiam oferecer contra o que se tornaria rapidamente o maior partido socialista no mundo. Desprovida de repre- sentação política própria, pela oposição implacável de Bismarck ao governo parlamentar, frustrada e ensombreada por uma aristocracia arrogante, a classe média fazia compromissos e manobrava dentro das estruturas de poder de estado, covarde nas suas demandas políticas aos seus superiores e aterrorizada pelo crescente clamor socialista de seus subordinados. Diante desta classe indecisa e conformista, Nietzsche afirma orgulhosamente os valores viris e de passo firme da velha nobreza ou casta de guerreiros. Mas é igualmente possível ver este individualismo autárquico como uma versão idealizada da própria burguesia, com todo o ousado dinamismo e autossuficiência que ela teria em circunstâncias sociais mais propícias. O ativo e aventureiro Übermensch busca com nostalgia a velha nobreza militar, mas em seu empreendimento explícito insolente, ele também prefigura um sujeito burguês reconstituído. “Ter e querer ter mais — crescimento, em uma palavra — isto é a vida em si mesma”, Nietzsche comenta em Vontade de

poder, no meio de uma diatribe antissocialista. Se, ao menos, os industriais fossem nobres, reflete ele, em A gaia ciência, talvez não existisse nenhum socialismo de massas.

Seu projeto, no entanto, é mais complexo e paradoxal que qualquer sonho carlyliano ou disraeliano de enxertar o vigor heroico da aristocracia dentro de uma burguesia lerda. Ele se preocupa mais com uma contradição aguda no interior da própria classe média. O problema é que a “superestrutura” moral, religiosa e

No documento A Ideologia da Estética (páginas 172-192)