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O imaginário Kantiano

No documento A Ideologia da Estética (páginas 55-78)

Por que a filosofia moderna voltou, com tanta frequência, à questão da epistemo- logia? Por que deveria o drama do sujeito e do objeto, a narrativa contínua de seus casamentos e separações, acordos e alianças iníquas, dominar tão fortemente o palco da filosofia moderna, como uma novela sobre dois parceiros incompatíveis continuamente em guerra por um fiapo do território do outro, e que, no entanto, não conseguem superar sua fascinação fatal um pelo outro, e decidem, sempre uma vez mais, depois de dolorosa separação, reestabelecer a relação?

Que o sujeito individual devesse ocupar o centro do palco, reinterpretando o mundo com referência a ele mesmo, é algo que se segue logicamente da prática econômica e política burguesa. Mas quanto mais o mundo é assim subjetivizado, mais esse sujeito cheio de privilégios dissolve progressivamente as condições objetivas de sua própria preeminência. Quanto mais largamente o sujeito estende seu domínio imperial sobre a realidade, mais ele relativiza seu território às suas próprias necessidades e desejos, diluindo a substância do mundo ao conteúdo de seus próprios sentidos. Mas, ao mesmo tempo, ele destrói qualquer critério objetivo pelo qual medir a significação ou mesmo a realidade de sua própria experiência. O sujeito precisa assegurar-se de que é supremamente valioso; mas não pode fazê-lo se seu solipsismo anulou qualquer escala pela qual esse valor possa ser estimado. Sobre que este sujeito é privilegiado, se o mundo foi conti- nuamente reduzido a nada mais do que uma imagem especular dele mesmo? O sujeito burguês seria, nesse sentido, uma criatura tragicamente autodestruidora, para quem até a autoafirmação volta-se inexoravelmente sobre si mesma, buscando devorar suas próprias condições possibilitadoras. “Devemos pensar sobre essa anomalia”, escreve Fredric Jameson,

de que é no ambiente mais completamente humanizado, no que se apresenta como o mais óbvio e completo resultado do trabalho, produção e transformação humanos, que a vida se torna sem sentido, que o desespero existencial primeiro aparece como tal, em proporção direta à eliminação da natureza, do que é não ou anti-humano, do crescente afastamento de tudo que ameaça a vida humana e com a expectativa de um controle quase ilimitado sobre o universo externo.1

Uma certa objetividade é condição mesma da subjetividade, que deve ter toda a solidez de um fato material, e que, no entanto, não pode ser, por definição, nada assim. É vital que o mundo confirme a minha subjetividade, e, no entanto, eu sou um sujeito apenas na medida em que faço esse mundo ser, em primeiro lugar. Ao

apropriar-se de toda a realidade externa, o sujeito burguês descobre, para seu desespero, que apropriou-se de sua própria objetividade junto com ela.

“Objetividade” poderia ser traduzido aqui, toscamente, como o imperativo: “você respeita a minha propriedade, que eu respeito a sua”. O outro estabelece a minha objetividade deixando-me por minha conta, e confere liberdade e objetivi- dade a si mesmo por esse mesmo ato. Propriedade, a marca e o selo mesmo da subjetividade, não é nada se não for apoiada por um sistema complexo de garantias legais e políticas; mas o subjetivismo mesmo de uma ordem baseada na proprie- dade tenderá a virar-se traiçoeiramente contra todas essas sanções objetivas, que não podem nunca ter a mesma força existencial ou realidade ontológica que o sujeito ele-mesmo. O não subjetivo só pode ser autenticado através da experiência do sujeito, onde está sempre em perigo de ser convertido em puro subjetivismo e assim abolido. Por outro lado, aquilo que está para além do sujeito é igualmente desrealizado num mundo onde a subjetividade é a medida de todas as coisas. O sujeito burguês precisa de algum Outro para assegurar-se de que seus poderes e propriedades são mais que alucinatórios, que suas atividades têm sentido porque se desenvolvem num mundo objetivo compartilhado; no entanto, essa alteridade é também intolerável para o sujeito, e deve ser ou expulsa ou introjetada. Não pode haver nenhuma soberania sem alguém sobre quem reinar, mas essa presença mesma do outro ameaça o seu reinado. Aquilo mesmo que confirma a identidade do sujeito não pode deixar de expô-la como algo constrangido; marcar o teu limite (“não se meta na minha propriedade!”) é marcar, ao mesmo tempo, sem alternativa, o meu próprio limite.

Sem qualquer critério de objetividade, o sujeito é reduzido a conferir valor a si mesmo, no que é, ao mesmo tempo, o orgulho desafiador dos modernos (“Eu mesmo sou a fonte de meu valor!”) e seu grito oco de angústia (“Eu estou tão sozinho no Universo!”). É a dupla natureza do humanismo, que parece não conhecer nenhuma fronteira mediadora entre a mania de exercer os seus poderes e o conhecimento depressivo de que o faz num grande vazio. É assim que Kant tentará reparar o prejuízo subjetivista produzido pelo empirismo cético de Hume, buscan- do restaurar a ordem objetiva das coisas, mas restaurando-a — já que não há mais condições de retorno a um racionalismo sem sujeito — naturalmente, a partir do ponto de vista do sujeito. Num trabalho heroico, o mundo objetivo deve ser salvo das pilhagens do subjetivismo e pacientemente reconstruído, mas num espaço em que o sujeito, embora constituído pelas célebres categorias, ainda é soberano. Não só soberano, na verdade, mas (em contraste com o sujeito preguiçoso do empiris- mo) euforicamente ativo, com toda a energia produtiva de um empresário episte- mológico. A questão é preservar tal energia formadora sem subverter a dimensão objetiva que garantirá a sua significação; e Kant traçará, na textura mesma da experiência do sujeito, aquilo que aponta para fora dela, para a realidade do mundo material. A atividade produtiva deste sujeito assegurará a objetividade, em vez de miná-la. Não se cortará mais o galho em que se está sentado.

Se a essência da subjetividade é a liberdade, o burguês está condenado à cegueira quando atinge mesmo o ponto mais alto de seus poderes, pois a liberdade é, por definição, incognoscível. Só o que é determinado pode ser conhecido; e de tudo o que podemos dizer da subjetividade, esta certamente não é uma de suas características. O sujeito, princípio fundador de todo o empreendimento, escorre

da rede das representações e figuras com sua própria especificidade: não mais que uma epifania muda ou um silêncio pregnante. Se o mundo é o sistema dos objetos conhecíveis, então o sujeito, que conhece esses objetos, não pode estar, ele mesmo, no mundo, tanto quanto (nota Wittgenstein em seus primeiros escritos) o olho não pode ser objeto de seu próprio campo visual. O sujeito não é uma entidade fenomenal a ser reconhecida entre os objetos no meio dos quais ele se movimenta; ele é aquilo que traz estes objetos à presença, em primeiro lugar, e move-se, portanto, numa dimensão inteiramente diferente. O sujeito não é um fenômeno no mundo mas um ponto de vista transcendental sobre o mundo. Podemos, por assim dizer, vê-lo apenas obliquamente, enquanto ele se dá junto com as coisas que representa, mas como o outro espectral que caminha ao seu lado em The Waste Land, ele desaparece se você o olha de frente. Uma visão direta do sujeito abre-nos uma paisagem vertiginosa de uma regressão infinita de meta-sujeitos. Talvez o sujeito só se possa afigurar negativamente, como excesso vazio ou transcendência de qualquer particular. Não podemos compreender o sujeito, mas assim como com o sublime kantiano, podemos compreender sua incompreensibilidade, que aparece como negação de toda determinação. O sujeito parece, de certa forma, posto para fora do sistema do qual ele é o ponto de segurança, ao mesmo tempo fonte e suplemento, criador e resto. Ele é aquilo que traz o mundo à presença, mas é banido de sua própria criação e não pode de nenhum modo ser deduzido a partir dela, a não ser no sentido fenomenológico de que deve haver alguma coisa para a qual a aparência é uma aparência. Ele governa e manipula a Natureza, mas como ele não contém nenhuma partícula de materialidade na sua própria compo- sição, torna-se misterioso como ele pode ter qualquer relação com coisas tão inferiores como os simples objetos. Esse pródigo poder estruturante ou capa- cidade incompreensível parece, ao mesmo tempo, pura pobreza e negação, mantendo-se, como está, no limite do que pode ser conhecido. A liberdade é o sopro de vida da ordem burguesa, mas não pode ser figurada em si mesma. No momento em que tentamos cercá-la com um conceito, capturá-la em nossas próprias sombras, ela pula fora do horizonte do nosso conhecimento, deixando em nossas mãos nada além das leis severas da necessidade da Natureza externa. O “Eu” denota não uma substância mas uma perspectiva formal sobre a realidade, e não há meios evidentes para se descer dessa unidade transcendental de apercepção à monotonia de sua existência material no mundo. A prática da ciência é possível, mas deve se dar fora do domínio que ele investiga. O conhecedor e o conhecido não partilham um mesmo campo, mesmo que o tráfico íntimo entre os dois, que é o conhecimento, dê a entender que o fazem. Se a liberdade deve florescer, se o sujeito deve estender seu controle colonizador sobre todas as coisas e marcá-las com sua presença inesquecível, então, o saber sistemático do mundo é essencial, e deve incluir o conhecimento de outros sujeitos. Você não pode esperar operar como um capitalista eficiente despreocupadamente ignorante das leis da psicologia humana; e esta é uma das razões pelas quais a ordem dominante necessita ter a seu dispor um corpo de conhecimento detalhado sobre o sujeito, que se costuma chamar de “ciências humanas”. Sem conhecimento você não pode pretender a liberdade; mas, ao mesmo tempo, conhecimento e liberdade são também curiosamente antitéticos. Se é essencial para a minha liberdade que eu deva conhecer outras pessoas, conse-

quentemente elas poderão me conhecer também, o que fará com que a minha liberdade seja reduzida. Eu posso sempre me consolar com o fato de que o que quer que seja conhecido sobre mim, será, por definição, não eu, será heterônomo ao meu ser autêntico, pois o sujeito não pode ser capturado numa representação objetiva. Mas nesse caso, pode-se argumentar, eu simplesmente compro a minha liberdade à sua própria custa; ganho-a e perco-a no mesmo ato; pois agora também me privei da possibilidade de conhecer os outros na sua essência, e pode-se pensar que esse conhecimento seja essencial para o meu desenvolvimento próprio.

O saber, em outras palavras, é, em algum grau, contraditório com o poder cuja promoção é a razão da sua existência. Para as “ciências humanas”, os sujeitos devem ser inteligíveis e previsíveis, mas esse tipo de transparência se opõe à doutrina da inescrutabilidade do humano, com a qual o capitalismo tenta mistificar suas relações sociais. Todo o conhecimento, como defende o Romantismo, contém uma ironia secreta ou uma contradição incipiente: ele deve, ao mesmo tempo, controlar o seu objeto e contemplá-lo como Outro, reconhecer nele uma autonomia que ele simultaneamente subverte. A fantasia da onipotência tecnológica total esconde um pesadelo: ao apropriarmo-nos da Natureza, estamos nos arriscando a erradicá-la, a apropriarmo-nos de nada além de nossos próprios atos de consciên- cia. Há um problema semelhante com a previsibilidade, que ao deixar os fenôme- nos nas mãos dos sacerdotes sociológicos ameaça abolir a História. A ciência preditiva funda todas as grandes narrativas progressistas da história da classe média, mas, ao mesmo tempo, pode arruiná-las, convertendo toda a diacronia numa secreta sincronia. A História e o risco, os empreendimentos e a aventura estão num impasse frente à forma mais privilegiada da cognição burguesa, o Eros da História opõe-se ao Thanatos da ciência. Ser livre significa calcular os movi- mentos de seus competidores enquanto se mantendo seguro e impermeável a esse cálculo por parte deles; mas estes cálculos podem, eles mesmos, modificar o comportamento de nossos competidores de maneiras que imponham limites ao nosso próprio projeto livre. Não há nenhum meio para a mente controlar essa situação volátil como um todo; este conhecimento, nos termos de Kant, seria a fantasia metafísica de um entendimento não perspectivista. Uma certa cegueira é a própria condição da história burguesa, que luta com sua ignorância de um final assegurado. O conhecimento é poder, mas quanto mais você tem, mais ele ameaça roubá-lo do seu desejo e torná-lo impotente.

Para Kant, todo o conhecimento do outro está condenado a ser puramente fenomenal, sempre distante das fontes secretas da subjetividade. Alguém pode tabular meus interesses e desejos, mas se eu não posso ser um mero objeto empírico eu devo transcender a tudo o que possa ser mapeado pelo conheci- mento empírico. Nenhuma pesquisa desse tipo poderá resolver a questão delicada de como esses interesses e desejos vêm a ser meus — do que é para mim, e não para você, experimentar esse anseio particular. O conhecimento de sujeitos humanos é impossível, não porque eles sejam tão esquivos, múltiplos e descentrados a ponto de se tornarem impenetravelmente opacos, mas simplesmen- te porque é errado pensar que o sujeito seja um tipo de coisa que se possa chegar a conhecer. Ele não é um objeto possível de cognição, tanto quanto não o é o Ser. O que quer que nós acreditemos conhecer será sempre alguma entidade espiritua-

lizada adequada, pensada segundo a maneira como se pensa um objeto material, uma simples paródia ou imagem fantasma de uma coisa. Jacques Derrida chega a mencionar como Kant pensa a liberdade humana: ele concebe esse mais imaterial dos objetos em termos de um objeto orgânico natural.2 O sujeito não é absoluta-

mente nada comparável a um objeto — o que quer dizer que ele é uma espécie de nada, e que sua orgulhosa liberdade também não passa de um vazio.

É claro que ter um conhecimento fenomenal dos outros pode ser o suficiente para usá-los em função dos nossos interesses. Mas isso pode não ser suficiente para construir o tipo de subjetividade universal que uma classe dirigente necessita para sua solidariedade ideológica. Para esse propósito, talvez seja possível aproximar- se de algo que, embora não seja estritamente um saber, é ao menos algo muito semelhante. Esse pseudossaber é o que se conhece como estética. Para Kant, quando concorremos espontaneamente num juízo estético, e somos capazes de concordar que um certo fenômeno é sublime ou belo, estamos exercendo uma forma valiosa de intersubjetividade, estabelecendo-nos como uma comunidade de sujeitos sensíveis ligados por um sentido imediato de nossas capacidades compar- tilhadas. O estético não é cognitivo, mas ele tem algo da forma e da estrutura do racional; e ele assim nos une com toda a autoridade da lei, mas num nível mais afetivo e intuitivo. O que nos reúne enquanto sujeitos não é o conhecimento, porém uma inefável reciprocidade de sentimentos. E esta é certamente uma razão impor- tante pela qual a estética ocupa um lugar tão central no pensamento burguês. Pois a terrível verdade é que numa ordem social marcada pela divisão de classes e a competição no mercado, pode ser que finalmente aqui, e só aqui, os seres humanos possam se sentir juntos em alguma espécie de íntima Gemeinschaft. No nível do discurso teórico, conhecemos uns aos outros apenas como objetos; no nível da moral, conhecemos e respeitamos uns aos outros como sujeitos autônomos, mas não podemos constituir nenhum conceito sobre o que isto significa, e um senti- mento concreto pelos outros não faz parte deste conhecimento como elemento essencial. Na esfera da cultura estética, no entanto, podemos sentir nossa humani- dade compartilhada com toda a imediatez de nossa resposta a uma bela pintura ou excelente sinfonia. Paradoxalmente, é aparentemente no aspecto mais frágil, privado e intangível de nossas vidas que nós combinamos o mais harmoniosamente uns com os outros. Esta é, ao mesmo tempo, uma doutrina surpreendentemente otimista e amargamente pessimista. Por um lado: “É maravilhoso que a unidade humana possa ser alcançada na intimidade mesma do sujeito, e em suas reações aparentemente mais erráticas e caprichosas: no gosto estético!” Por outro lado: “Como a solidariedade humana é tão frágil e precária que só pode se enraizar em algo tão flexível e vago como o juízo estético!” Se é à estética que cabe o esforço de conjugar a comunidade humana, a sociedade política certamente deixa muito a desejar.

A sociedade política onde Kant viveu não era, de nenhum modo, uma sociedade burguesa completamente desenvolvida, e, assim, falar dele como um filósofo burguês pode parecer a alguns algo de anacrônico. O seu pensamento, no entanto, alimenta por muitos caminhos os ideais do liberalismo da classe média, e é utópico, nesse sentido enriquecido e positivo. Do coração da autocracia, Kant defende valores que se mostrarão, em última instância, subversivos daquele regime; mas seria muito parcial vê-lo só por esse lado, como um campeador liberal,

e não perceber como seu pensamento já está desvelando alguns dos problemas e contradições da ordem emergente da classe média.

Se não podemos, falando estritamente, conhecer o sujeito, ao menos — para nos consolar — podemos conhecer o objeto. Numa ironia notável, esta última operação torna- se, na sociedade burguesa, tão impensável quanto a outra. Sabe-se que Kant percebe o sujeito humano como numenal, algo completamente aquém da investigação conceitual; mas é também conhecido que ele dá o mesmo destino ao objeto, como o infame e inescrutável Ding-an-sich que transborda de um dos horizontes do conhecimento enquanto o espectral sujeito desaparece pelo outro lado. Georg Lukács argumenta que este caráter opaco do objeto em Kant é um efeito da reificação, pela qual os produtos materiais mantêm-se heterogêneos na sua rica particularidade, em relação às categorias formais mercantilizadas que tentam subsumi-los.3 Eles devem ser consignados à escuridão “irracional” do

incognoscível, deixando o pensamento em face de sua própria sombra. A Ding-an- sich é, nesse sentido, não uma entidade suprassensível mas o limite material de todo pensamento reificador, um eco pálido da resistência muda do real. Recobrar a coisa-em-si como valor de uso e produto social seria então simultaneamente revelá-la como a totalidade social suprimida e restabelecer aquelas relações sociais que as categorias mercantilizadas escondem. Preocupado com a materialidade, como Kant se mostra, sem dúvida, é como se a matéria não pudesse aparecer em toda sua irredutibilidade no interior do seu sistema; mas é precisamente a matéria, na forma de certas relações sociais contraditórias, que gera a estrutura de todo o sistema, em primeiro lugar.

A coisa-em-si é, assim, uma espécie de significante vazio daquele conheci- mento total com que a burguesia nunca deixa de sonhar, mas que suas próprias atividades fragmentadoras, compartimentadoras, frustram continuamente. No ato de conhecer, o sujeito não consegue deixar de projetar, a partir de sua perspectiva inevitavelmente parcial, a possibilidade fantasma de um conhecimento para além de todas as categorias, que então afetará o que ele pode conhecer sempre relativa- mente. O sujeito está sempre sob o domínio de uma epistemofilia rábica, que é ao mesmo tempo uma consequência lógica do seu projeto — apreender tudo com um só pensamento! — e potencialmente subversiva dele. Pois essas ilusões metafísicas simplesmente distraem sua atenção em relação à atividade própria do conhecimen- to que será sempre um conhecimento a partir de uma perspectiva ou outra. “Por um lado”, escreve Lukács, “[a burguesia] adquire controle crescente sobre os detalhes de sua existência social, submetendo-os às suas necessidades. Por outro lado, ela perde — também progressivamente — a possibilidade de ganhar o controle intelectual da sociedade como um todo, e assim perde suas próprias qualificações para liderança.”4 No auge de seu domínio, então, a classe burguesa

encontra-se estranhamente despossuída pela ordem que ela criou, clivada entre uma subjetividade incognoscível de um lado e um objeto incontrolável, do outro. O mundo real é irracional, para além do controle do sujeito, um traço invisível de resistência às categorias do entendimento, que o confrontam à maneira de formas abstratas e vazias expulsando a facticidade bruta. As categorias, elas mesmas, são, nesse sentido, modeladas segundo a forma da mercadoria. Em tal situação, deve-se aceitar estoicamente a irredutibilidade do real ao pensamento, reconhecendo assim os limites de sua própria subjetividade ou pode-se seguir a trilha de Hegel e tentar

recuperar o objeto material no interior da mente. A estratégia de Kant assegura para o sujeito um ambiente real, mas à custa da limitação dos seus poderes. Os

No documento A Ideologia da Estética (páginas 55-78)