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A Justiça Restaurativa e a Protagonização entre Vítima e Autor: O Giro

5 RACIONALIDADE RESTAURADORA: A ASCENSÃO DO INTÉRPRETE

5.2 A LINGUAGEM E A MODIFICAÇÃO DA RACIONALIDADE DO SISTEMA

5.2.2 A Justiça Restaurativa e a Protagonização entre Vítima e Autor: O Giro

A mudança de paradigma da Justiça Restaurativa, decorre, como vimos, de uma nova forma de enxergar e efetivar o funcionamento da justiça criminal. Em

outros termos, a Justiça Restaurativa transforma a racionalidade que obriga à punição, na racionalidade que faculta a punição àqueles estritos casos nos quais não seja possível outra alternativa de responsabilização do infrator. A Justiça

Restaurativa visa, portanto, a desconstruir o mito de Beccaria, segundo o qual é necessária, em todo caso, a existência de pena, certa, proporcional, aflitiva.

A modificação da unidade entre as normas de comportamento e de sanção, típica da racionalidade criminal moderna, é o objeto precípuo da modificação restaurativa, que visa a afastar parcialmente, em casos especificados, consoante já afirmamos, o modelo tradicional de gestão do crime, no qual a principal responsabilização do infrator ao preceito primário ocorre por meio de um diálogo

conciliatório no qual ele, a vítima e a comunidade participam, e podem opinar sobre

a melhor solução para reparar a lesão ocasionada com o crime.

Sem quaisquer dúvidas, o que Justiça Restaurativa propõe, mais do que qualquer outro conjunto teórico, é um limite ao irrefreável desejo de punir do Estado. Ao invés de punição, responsabilização, no lugar de aflição de dor, restauração da paz jurídica e das consequências advindas com o crime, no lugar de conflito, diálogo.

O afastamento da obrigatoriedade de punição culmina com a ruptura antes

propugnada entre as normas de comportamento e de sanção, para a aceitação da possibilidade de existência de crime sem pena, mas com uma responsabilização que atenda aos interesses dos reais afetados com o delito. Verificamos, de fato, uma

modificação do arcabouço doutrinário do direito criminal para a construção de uma nova racionalidade, na qual o direito criminal passe a se preocupar mais em ser direito do que em ser penal.

478 “Falar com as pessoas em vez de brigar com elas; entendê-las em vez de repudiá-las ou aniquilá-

las como mutantes; incrementar sua própria tradição bebendo com liberdade na experiência de outros grupos, em vez de excluí-los do comércio de idéias. É isso que a tradição própria do intelectual, constituída pelas discussões em curso, prepara as pessoas para fazerem bem.” (Bauman).

No paradigma restaurador o ofensor é incluído em um processo trilateral e consensual, que possui formas distintas de averiguar a responsabilidade criminal,

mas que, ao final, culmina com uma solução que o responsabiliza e, ao mesmo tempo, livra-o do destino certo e seguro da pena aflitiva e invasiva.

Com relação à vítima, o paradigma restaurativo oportuniza a sua inclusão no processo, consubstanciando o verdadeiro acesso à justiça, por meio do qual a vítima vive todo o processo decisivo, expondo seus motivos, seus anseios e, ao final, acordando com a melhor forma de responsabilização, que efetivamente repare os prejuízos emocionais e materiais que lhes foram causados. Decerto, não parece

haver melhor garantia de proteção para qualquer sujeito do que a satisfação com o resultado final do processo, e com a reparação de todo o prejuízo que fora sofrido.

“A justiça não pode ser feita para e por elas. As vítimas precisam se sentir necessárias e ouvidas ao longo do processo”480

. As vítimas sentem necessidades, portanto, ter o seu poder de fala garantido enquanto efetivação da justiça torna-se imperioso.

Além de propiciar um diálogo direto entre vítima e ofensor, devemos assinalar que o diálogo com a comunidade, em muitos casos, contribui para a responsabilização a partir da intersubjetividade linguística. De fato, não podemos olvidar que as comunidades também se sentem violadas com a ocorrência do crime, e necessitam, em alguns casos, participar do processo com voz ativa para que suas respectivas faltas também sejam supridas. Não podemos, portanto, esquecer, em determinados casos, a natureza pública do crime, mas sempre pensando como uma necessidade além da vítima e não como “o ponto de partida da justiça”481

.

Esse ideal positivo de proteção alcançado pela Justiça Restaurativa foi bem sintetizado por Selma Pereira de Santana, nas lições abaixo transcritas:

A reparação do dano, segundo esta compreensão, não constitui uma questão jurídico-civil, mas algo que contribui fundamentalmente para a realização dos fins da pena: ela possui um importante efeito ressocializador, na medida em que obriga o autor do delito a enfrentar-se com as conseqüências de sua atitude, como, outrossim, a conhecer os legítimos interesses da vítima; viabiliza o fomento do reconhecimento das normas; pode conduzir a uma reconciliação entre autor-vítima, e, conseqüentemente, facilitar a reintegração do primeiro deles; contribui para a prevenção integradora, ao oferecer um caminho de restauração da paz jurídica, pois ‘só quando se haja reparado o dano, a vítima e a comunidade

480

ZEHR, 2008, p. 183.

481

considerarão eliminada – amiúde, inclusive, independentemente de um castigo –, a perturbação social originada pelo delito.482

A Justiça Restaurativa, portanto, ajuda na construção de um sistema criminal que se preocupa mais em resolver os problemas das pessoas naquela situação particularizada, empoderando-as, conferindo-lhes voz e auxiliando-as a sobreviver, apesar do crime.

Relacionando a mudança da racionalidade criminal gerada pela Justiça Restaurativa e seu conjunto teórico com a modificação de paradigma filosófico sinalizada outrora, afirmamos que modelo criminal restaurativo se apresenta mais compatível com a nova filosofia da linguagem e com a ascensão da categoria de intérprete no cenário do intelectual moderno-líquido das ciências sociais.

Na Justiça Restaurativa, o processo que se forma a partir do diálogo entre os verdadeiros protagonistas do delito absorve, segundo pensamos, a transformação filosófica que abandona a consciência do sujeito cognoscente para escolher a linguagem entre os sujeitos afetados pelo crime como método de obtenção e validação da resposta criminal. A razão para a conclusão explanada nos parece clara: no processo restaurativo, o mediador tem condições de auxiliar, a partir do jogo linguístico entre ele e as partes e entre estas, a obtenção da responsabilização a partir de uma perspectiva não solitária e sim integrada com a comunidade de comunicação criminal (vítima, ofensor e sociedade, a depender do processo escolhido para a restauração). Warat vai sinalizar que a mediação, um dos processos na Justiça Restaurativa, consoante sinalizamos:

[...] seria um salto qualitativo para superar a condição jurídica da modernidade, baseada no litígio e apoiada em um objetivo idealizado e fictício, como é o descobrir a verdade que não é outra coisa que a implementação da cientificidade como argumento persuasivo. É uma verdade, que deve ser descoberta por um juiz, que pode chegar a pensar-se com poder de um semideus na descoberta de uma verdade que, no entanto, é imaginária.483

No processo mediativo, a linguagem acontece diretamente entre a vítima e o ofensor, sem necessidade de representação por profissionais especializados. Em outras palavras, na Justiça Restaurativa são as partes que têm a palavra para lidar com o problema, protagonizando o processo, contando com profissionais do direito ou da psicologia, a depender do caso, apenas para auxiliá-los nessa situação. A

482

SANTANA, 2006, p. 103-04.

483

construção da responsabilização a partir dos sentidos, como citamos acima, não ocorre a partir da fala dos advogados e promotores de justiça, mas a partir da fala direta entre autor e vítima do crime. A Justiça, portanto, é vivida diretamente; o ofensor deixa de ser tratado como mero objeto do processo criminal, sob o qual vai recair uma punição severa, caso preenchidos os requisitos e a vítima deixa de ser neutralizada e ignorada: ambos se transformam em atores principais da resolução do problema a partir da linguagem.

Conforme assinalado por Howard Zehr:

Uma parte improtante da justiça é a troca de informações –uns sobre os outros, sobre os fatos, sobre a ofensa, sobre necessidades. As vítimas querem respostas para suas dúvidas quanto ao que aconteceu, por que aconteceu e quem fez aquilo (sic). Rostos precisam substituir estereótipos. Essa troca de informações é vital e idealmente ela deveria acontecer numa interação direta. Num contexto assim é possível tratar do que aconteceu no passado e do que vai acontecer no futuro. Os resultados dessa interação devem ser registrados na forma de acordos passíveis de serem quantificados e monitorados.484

As partes, vistas como contribuintes da decisão acerca da responsabilização do crime, deixam de ser tratadas como mero estereótipos do crime – a vítima indefesa ou fracassada, o ofensor malvado – e o conflito penal é desmistificado, vivenciado a partir da perspectiva sujeito-sujeito como um acontecimento que faz parte de uma comunidade de pessoas plurais, gerando responsabilidade aos ofensores485.

E, o mais importante: o processo restaurativo origina para o ofensor uma responsabilidade concreta pelo que fez, tendo em vista que sua atuação é voltada para corrigir o problema que ele causou à vítima do seu crime. A responsabilização se volta a uma mera abstração, mas a uma situação concreta e particularizada, de sorte que o processo de mediação pela linguagem auxilia o ofensor “reconhecer e compreender o dano” e a agir para consertar o que foi feito, a partir de uma responsabilização partilhada e participativa, entre ele, a vítima (e a comunidade, a

484

ZEHR, 2008, p. 193.

485 Consoante observado por Jorge de Figueiredo Dias, “[...] a idéia central de que se trata de um

processo democrático de alcançar a solução de um problema em que participa constitucionalmente e de modo inclusivo – num ambiente em que todas as opiniões são respeitados (sic) e todas as contribuições avaliadas – todo o grupo ou conjunto de pessoas directamente interessadas no problema. Quando todos os envolvidos no debate ou no diálogo se prestam a cumprir o que foi acordado através de uma nroma decisória, está alcançada a universalização concreta e pragmática do processo instalado para se alcançar o consenso: o consenso como processo e não

necessariamente também o consenso (auto)legitimador”. DIAS, Jorge de Figueiredo. Acordos sobre

a sentença em processo penal: o “fim” do estado de direito ou um novo “princípio”? Porto: Conselho distrital do Porto, 2011, p. 22.

depender da situação)486.

Acreditamos, assim, que o paradigma de Justiça Restaurativa abarca, de forma mais ampla, o giro linguístico da filosofia da linguagem, abandonando a imagem do legislador do conhecimento que utiliza o método individual de obtenção do conhecimento para incluir o intérprete da verdade intersubjetiva dos protagonistas do crime e da comunidade lesada.

5.3 O PAPEL DO INTÉRPRETE NO CONTEXTO DA NOVA RACIONALIDADE