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AS CARACTERÍSTICAS REVOLUCIONÁRIAS DA JUSTIÇA

4 A JUSTIÇA RESTAURATIVA, O NOVO PARADIGMA MUITO ALÉM DA

4.3 AS CARACTERÍSTICAS REVOLUCIONÁRIAS DA JUSTIÇA

Neste subtópico da pesquisa, com lastro em tudo o que sinalizamos anteriormente, já é possível concluirmos pela modificação parcial do paradigma punitivo propugnada pelo modelo restaurador.

Com lastro na obra traduzida de Kuhn, uma ciência extraordinária, que modifica, total ou parcialmente, a ciência padrão, precisa ser necessariamente inconciliável com a sua antecessora, refutando total ou parcialmente os pressupostos desta, criando uma nova racionalidade científica e modificando a visão de mundo dos cientistas337.

Feitas essas pertinentes observações, devemos apresentar as razões pelas quais defendemos que o paradigma restaurador representa uma ruptura parcial em relação ao paradigma punitivo, afastando a aplicação deste para alguns casos de fenômenos criminosos, consoante trataremos a seguir.

O primeiro ponto para entendermos esta mudança de paradigma já foi assinalado e diz respeito à modificação da concepção do crime. O paradigma restaurador abandona a premissa de abstração do paradigma de punir, deixando de conceber o crime, unicamente, como uma ofensa à norma penal do Estado para o

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JACCOUD, Mylène. Princípios, tendências e procedimentos que cercam a justiça restaurativa. In: SLAKMON, Catherine; DE VITTO, Renato Campos Pinto; PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça

restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

– PNUD, 2005, p. 171.

337 “A recepção de um novo paradigma requer, com freqüência, uma redefinição da ciência

correspondente. Alguns problemas antigos podem ser transferidos para outra ciência ou declarados absolutamente ‘não-científicos’. Outros problemas anteriormente tidos como triviais ou não-existentes podem converter-se com um novo paradigma, nos arquétipos das realizações científicas importantes. [...] A tradição científica normal que emerge de uma revolução científica é não somente incompatível, mas muitas vezes incomensurável com aquela que a precedeu”. KUHN, 1998, p. 138.

compreender como um ato que prejudica pessoas concretas338.

Essa mudança na percepção do crime – alteração das lentes – vai propiciar a modificação da racionalidade criminal moderna. Como vimos, a racionalidade criminal que fundamenta o paradigma obriga a aplicação conjunta das normas de comportamento às normas de sanção, de modo que a primeira não pode ser reconhecida sem que ocasione a aplicação da segunda. No paradigma restaurador,

a punição passa a ser uma mera faculdade, para os fatos não abrangidos pela Justiça Restaurativa. Na justiça restaurativa, se o crime é visto como um dano

concreto, o principal foco passa a ser a visão prospectiva, centrada nas possibilidades do infrator de atuar para minorar as consequências do crime, a partir do consenso obtido pelo diálogo. A punição assume um ponto secundário e residual, portanto.

A assunção de papel secundário para a punição e o foco na reparação vão propiciar uma mudança na teoria do direito e do processo criminal, sobretudo no modo de aferição das garantias constitucionais criminais e nas regras do processo. Apenas para adiantarmos, a Justiça Restaurativa, por ser fruto de uma racionalidade criminal nova – facultativa da punição – modifica a concepção das garantias criminais, não mais verificáveis unicamente como garantias negativas do ofensor frente ao Estado – legalidade, devido processo legal, dentre outras – mas, também, enquanto garantias prestacionais a que fazem jus o ofensor e a vítima do sistema criminal.

É preciso assinalarmos, ainda, que, firmado e cumprido o acordo restaurativo feito entre ofensor e vítima, haverá a extinção do processo crime e o afastamento total das pretensões do Estado com relação àquele fato delituoso, que foi resolvido pelo paradigma restaurativo. Em outros termos, a resposta do paradigma restaurador não convive, segundo pensamos, com a resposta do paradigma punitivo: o verdadeiro sentido da justiça restaurativa é afastar a punição, não

338 Neste sentido, destacamos o pensamento de Howard Zehr; “A lente atual se fundamenta naquilo

que é pouco usual e bizarro. As regras criadas para essas exceções são a norma, valem para as ofensas ordinárias. Alguns ofensores são tão inerentemente perigosos que precisam ficar presos. Alguém tem que tomar essa decisão com base em regras e salvaguardas de direito. Algumas ofensas são tão hediondas que requerem tratamento especial. Mas a reação a esses casos especiais não deveria ser a norma. Portanto, nossa abordagem seria a de identificar o que o crime significa e o que deveria acontecer normalmente quando ele acontece, reconhecendo as necessidades impostas por algumas exceções”. ZEHR, 2008, p. 170.

podendo conviver com esta, sequer para atenuar a pena339. Qualquer tentativa de misturar reparação com punição, conquanto traga consequências positivas para a vítima no caso concreto, não é por nós vista como o paradigma restaurador, uma vez que a lógica de punir é incompatível com a visão restaurativa.

Por fim, uma observação importante: o restaurativismo não é uma mudança total de paradigma que intenta exterminar por completo o modelo punitivo, porque a Justiça Restaurativa admite o seu recorte inicial e determina que, para casos mais considerados socialmente graves (conceito obtido a partir de cada contexto social e histórico, por meio de um diálogo entre os atores sociais), o sistema punitivo deve permanecer em vigor, apesar da crise, uma vez que a comunidade, ainda focada na ideia de perigosidade, não tem condições concretas de aceitar a reparação como única resposta. Para esses casos, infelizmente, o paradigma restaurativo não pode, ainda, ser a regra, porque iria contrariar um dos objetivos precípuos do direito, de manutenção da paz social.

Demais disto, devemos, ainda, afirmar que a mudança de paradigmas é parcial porque o paradigma novo, restaurador, é aplicado, segundo defendemos, apenas para os casos em que haja uma vítima determinada, nos quais haja um consenso e uma voluntariedade da vítima e do ofensor de participar e permanecer no processo de restauração. A justificativa para isso é que obrigar autor e vítima a um processo de acordo representaria uma verdadeira violência aos seus direitos e uma imposição de condutas, algo que a Justiça Restaurativa veda.

Assim, para os casos de crimes de alta gravidade, nos crimes sem vítima determinada (vagos) ou crimes de pequena e média gravidade nos quais não haja voluntariedade do início ao fim do processo restaurativista, a Justiça Restaurativa não é aplicável. Reconhecemos, aqui, essa limitação.

Por conta disto, a nossa conclusão é a de que a Justiça Restaurativa, destrutiva do paradigma punitivo nos casos em que é aplicada, que modifica a racionalidade criminal, a visão de mundo dos cientistas e determina a modificação

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Nesse ponto, ousamos discordar da Professora Selma Santana, que inclui, dentro dos casos de Justiça Restaurativa, a reparação que atenua a pena do paradigma de punir. “A reparação deve constituir uma ‘terceira via’ do Direito Penal, ao lado da pena e da medida de segurança. A reparação substituiria ou atenuaria a pena naqueles casos nos quais convenha, tão bem ou melhor, aos fins da pena e necessidades da vítima. A inclusão no sistema penal, sancionador da indenização material e imaterial da vítima, significa que o Direito Penal se afasta da idéia abstrata e aproxima-se da

de regras de direito e processo é, de fato, um novo paradigma de gestão dos conflitos criminais.