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A Prisão: “Instituição Total” do Paradigma de Punir

3 AS PROMESSAS E A CRISE O PARADIGMA QUE NÃO CUMPRE O QUE

3.2 CRISE NA RESOLUÇÃO DOS PROBLEMAS INTRÍNSECOS AO

3.2.2 A Ilusão da Prevenção Especial Positiva

3.2.2.2 A Prisão: “Instituição Total” do Paradigma de Punir

De mitos e fantasias alimenta-se o imaginário popular sobre as prisões. Nossas ideias flutuam entre a existência de hotéis cinco estrelas e de pedaços do inferno, enquanto os cárceres se enchem cada vez mais de pessoas, muitas das quais pedem uma segunda ou terceira oportunidade que lhes permita situar-se de modo diferente perante o mundo.

Continuamos a abarrotar nossas prisões, tranquilizados pela ilusão eficiente de diminuir a delinquência, pondo atrás das grades os violadores das normas criminais, mas não raro esquecidos da condição de seres humanos

dos que, subtraídos momentaneamente do nosso convívio, abandonamos depois dos muros.240

Remonta ao Iluminismo o nascimento desta estrutura de punir, que ganhou importância como fundamental meio de inibir os castigos corporais e a pena de morte. O Liberalismo burguês, então nascente, não mais admitia os chamados “espetáculos sangrentos”, e a crescente importância dos direitos humanos transformava a prisão “na pena própria dos países civilizados” 241

.A prisão, consoante assinala Foucault, vai representar, para a justiça penal, um marco

238

Cf. MOLINA; GOMES, 2006, p. 392.

239 “Se se compara, o inferno de Dante parece a Disney”. (Eduardo Galeano). 240

PELUSO, Cezar. Uma realidade perversa. In: BRASIL. Ministério da Justiça. Conselho Nacional de Justiça. Mutirão carcerário: raio-x do sistema penitenciário brasileiro. Brasília, 2012. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/mutirao_carcerario.pdf>. Acesso em: 30 jun. 2012, p. 9.

241

importante, consistente no seu “acesso à humanidade” 242 , relegando “ao

esquecimento todas as outras punições que os reformadores do século XVIII haviam imaginado”243

. A prisão é colocada, pois, ao centro do paradigma de punir, como a forma preferida de punição.

Desde o seu nascimento, enquanto castigo, a prisão aparece como uma instituição total, voltada para a disciplina interna dos condenados. De acordo com Erwin Goffman:

Uma ínstituícáo total pode ser definida como um local de residencia e trabalho onde um grande número de indivíduos com situacáo semelhante, separados da sociedade maís ampla por considerável período de tempo, Ievam uma vida fechada e formalmente administrada244.

Na prisão, observamos exatamente as características apresentadas por Goffman: Instituição fechada e formalmente administrada. A prisão nasce com uma carga disciplinar forte, com o objetivo de “tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições”245

.

Assim é que, dentro da prisão, o isolamento do criminoso é uma característica principal. Isolamento não só do mundo exterior, em que foi cometido o delito, mas, em muitos casos, isolamento da própria convivência com os demais detentos246, para que, nessa situação, ele possa refletir sobre o seu comportamento, de modo a se utilizar a “solidão como instrumento positivo de reforma do apenado”247

. A falta de contato que a prisão estabelece entre os seus integrantes e o mundo exterior e, muitas vezes, entre o mundo da própria prisão, é o que “caracteriza as barreiras sociais com o mundo externo”, traço marcante do que Goffman vai estabelecer como instituições totais.

Na prisão, essa instituição total criada pelo paradigma de punir para responder ao fenômeno delitivo, é visível a agregação das três esferas da vida cotidiana das 242 FOUCAULT, 1997, p. 217. 243 Ibid., p. 218. 244

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo, Perspectiva, 1974, p. 11.

245

FOUCAULT, op. cit., p. 222.

246

No caso Brasileiro, basta observar o Regime Disciplinar diferenciado, que consiste em um instrumento sancionatório peculiar, criado dentro da execução penal, para reprovar a conduta daqueles que cometem falta grave ou que estão envolvidos com organizações criminosas (artigo 52, LEP). Caracteriza-se, principalmente, por estabelecer uma privação a mais da liberdade do acusado, isolando-o numa cela com direitos restritos. Trata-se de uma forma de isolar, ainda mais, o criminoso do ambiente social, retirando desse o convívio com os seus próprios pares.

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pessoas em uma única, porque o indivíduo apenado, ao contrário do que costumeiramente ocorre com os demais, possui um único ambiente para “dormir, trabalhar e brincar”248

, sempre submetido à mesma autoridade. Em outros termos, a prisão rompe com a separação entre essas três esferas da vida que, em regra, são realizadas em locais distintos, para promover o intercâmbio de vivências e experiências entre as pessoas.

Devemos afirmar, ainda, que, dentro da prisão, a vida diária do aprisionado é compartilhada com pessoas que são, como ele, obrigadas a serem do mesmo jeito, e a realizarem as mesmas atividades em horários rigorosamente estabelecidos a partir de uma autoridade superior249.

A vigilância constante também é um traço visível nas instituições totais, gênero do qual a prisão faz parte. Nessas instituições, a supervisão exercida sobre o grupo de pessoas é a partir do controle destas por um grupo em posição hierarquicamente superior.

Demais disto, é importante assinalarmos que o indivíduo que ingressa na instituição total prisão passa por um processo de descaracterização de “despojamento do papel social”250

que outrora assumia. Goffman ilustra:

O novato chega ao estabelecimento com urna concepcao de si mesmo que se tornou possível por algumas disposicóes sociais estáveis no seu mundo doméstico. Ao entrar, é imediatamente despido do apoio dado por tais disposicões. Na linguagem exata de algunias de nossas mais antigas instituições totais, comeca urna série de rebaixamentos, degradacóes, humílhacóes e profanacóes do eu. O seu eu é sistemáticamente, embora muitas vezes nao intencionalmente, mortificado. Comeca a passar por algumas mudancas radicáis em sua carreira moral, urna carreira composta pelas progressivas mudancas que ocorrem nas crencas que tém a seu respeito e a respeito dos outros que sao significativos para ele.251

Por conta disto, durante o aprisionamento, com o convívio diário com um regramento diferente, com a privação da liberdade e com a ausência da família, é possível constatarmos que “a personalidade do detento modifica-se durante o internamento, e tal modificação pode ser muito profunda e deixar sequelas psíquicas irreversíveis, ou, na melhor das hipóteses, temporárias”252

.Isso não nos traz qualquer surpresa, já que, de acordo com as teorias tradicionais de prevenção 248 GOFFMAN, 1974, p. 17. 249 Cf. Ibid., p. 18. 250 Ibid., p. 24. 251

Ibid., loc. cit.

252

especial positiva, o objetivo é, justamente, despojar o indivíduo de suas características negativas para lhe ensinar a ser bom como os demais cidadãos de bem.

Em linhas gerais, essas são algumas das características da prisão enquanto espécie de instituição total apresentada por Goffman: uma instituição que promove o despojamento das características essenciais da pessoa, instituindo um ritmo de vida social obrigatório e previamente fixado com outros sujeitos sociais estranhos e desconhecidos e, principalmente, com limitação de saída e de contato com pessoas com as quais o apenado possui relações de afeto.

Não nos assusta descobrir que essa instituição não tem, em regra, condições de promover a ressocialização do condenado. Querer promover a reinserção social do outro a partir de prisões é uma ilogicidade, uma vez que é impossível educar para a liberdade em situações de não liberdade. Utilizando-nos de uma metáfora, poderíamos dizer que educar para a liberdade na prisão equivale a se preparar para uma maratona de corrida deitado, com ingestão diária de fast food.

À “instituição total” prisão, a preferida do paradigma de punir, segundo pensamos, só se pode atribuir uma única função com uma margem tolerável de certeza: a retribuição, o castigo e a expiação do mal. A prevenção especial, como projeto principal de punir, é um plano mais ilusório do que real, pelos motivos assinalados253.

Por fim, mas jamais menos, impende ressaltarmos que as instalações prisionais, em especial no Brasil, são ambientes verdadeiramente mal projetados, superlotados, sem componentes essenciais de higiene. São, a maioria delas, locais desagradáveis e até mesmo inóspitos, dos quais, infelizmente, não podemos esperar chances de melhora pessoal do apenado. Esta situação foi tratada por Ana Sabadell, que afirma: “Todos sabem que ninguém pode ser ‘recuperado’ nas prisões, onde se convive com a violência mais exasperada, em uma situação de

253

Importante afirmarmos, outrossim, que, no Brasil, as taxas de reincidência são absurdamente altas, estimadas em, aproximadamente, 70%, de acordo com o Ministro do STF Cezar Peluso. Cf. ÍNDICE de reincidência criminal no país é de 70%, diz Peluso. Valor Econômico, São Paulo, 05 set. 2011. Disponível em: <http://www.valor.com.br/legislacao/998962/indice-de-reincidencia-criminal-no- pais-e-de-70-diz-peluso>. Acesso em: 30 jul. 2012.

miséria, corrupção e desrespeito à dignidade humana”254

.

De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional, a situação dos presídios brasileiros é preocupante. Em relatório de visita ao estabelecimento prisional conjunto criminal de Serrinha255, interior do estado da Bahia, obtivemos a informação de que só é liberada a utilização de água (inclusive para o consumo

humano) duas vezes ao dia, sendo que, com isso, eram dadas apenas duas descargas nos banheiros do presídio.

Os números nos dizem ainda mais. De acordo com dados do mutirão carcerário256, publicado pelo CNJ neste ano de 2012, a situação dos presídios brasileiros é bastante complicada. Na região Norte, os presídios de Rondônia têm média de ocupação de dois presos por vaga; os do Pará contam com 75% do déficit de vagas. No Acre, “o calor é uma punição adicional para quem cumpre pena”257

já que as celas são escuras e mal ventiladas; o Estado conta, ainda, com a maior população presa: 1 a cada 200 mil habitantes. O Amapá possui apenas um único presídio, abrigando 1,8 mil homens e mulheres em celas apertadas258, sem colchão ou camas, dormindo no chão.

No nordeste, a situação preocupante, como visto no presídio de Serrinha, interior baiano, é a escassez de água. De acordo com o relatório:

Adjetivos não faltam para classificar os presídios nordestinos. No Rio Grande do Norte, algumas unidades foram comparadas pelo Mutirão a calabouços, onde até respirar é difícil, por causa da falta de ventilação e do mau cheiro. No Ceará, ruína foi o termo escolhido para descrever algumas penitenciárias inspecionadas, enquanto na Bahia o pátio de uma unidade foi comparado a um campo de concentração. Um cenário árido de desrespeito aos direitos humanos259.

Demais disto, a criminalidade é uma constante nos presídios e, de acordo com o relatório mencionado do CNJ, “no presídio Aníbal Bruno, o maior do País, em

254

SABADELL, Ana Lúcia. Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 179.

255

Cf. BRASIL. Ministério da Justiça. Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.

Relatório de visita ao estabelecimento prisional Conjunto Penal de Serrinha, do Estado da Bahia. Brasília, 20 jun. 2011b. Disponível em:

<http://portal.mj.gov.br/depen/data/Pages/MJE9614C8CITEMIDA5701978080B47B798B690E484B49 285PTBRNN.htm>. Acesso em: 30 jun. 2012, p. 6.

256

Cf. Id. Ministério da Justiça. Conselho Nacional de Justiça. Mutirão carcerário: raio-x do sistema penitenciário brasileiro. Brasília, 2012b. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas- judiciarias/Publicacoes/mutirao_carcerario.pdf>. Acesso em: 30 jun. 2012, p. 15.

257 Ibid., p. 17. 258 Cf. Ibid., p. 21. 259 Ibid., p. 61.

Pernambuco, são os presos que detêm as chaves e cuidam da circulação de pessoas dentro da unidade”260

, administrando a cantina e vendendo mercadorias no interior da penitenciária. O relatório continua mencionando a situação de outras regiões Brasileiras, mas, para os fins desta pesquisa, bastam-nos as informações acima referidas.

Diante dessas condições, outra não poderia ser a realidade, senão a de que a prisão é considerada, hoje, o meio menos efetivo de “ressocialização”, porquanto contribui, inegavelmente, para o avanço da criminalidade, e para o aperfeiçoamento de técnicas de delitos.

É imprescindível ainda afirmar, por manifestamente oportuno, que o fracasso da ressocialização ainda permaneceu nas chamadas alternativas à prisão, vistas inicialmente com um anseio, típico da novidade. Com efeito, desde o programa de Marburgo de Von Lizst, que propugnava a ressocialização por meio da individualização da pena, muito se discutiu sobre as penas alternativas ao cárcere, que se caracterizam pela privação de outros direitos do condenado, distintos da liberdade. Malgrado a existência de muitas discussões e incontáveis projetos, o que foi possível constatarmos foi um resultado diferente daquele esperado.

Consoante bem destacou Leonardo Sica, no contexto de aplicação das penas substitutivas, “as taxas de encarceramento subiram vertiginosamente, contrastando com o discurso das alternativas e, mais do que tudo, indicando que algo está equivocado no enfoque ou na transposição prática de todo esse arcabouço de ideias”261

.

Demais disto, para além do aumento progressivo das taxas de encarceramento, as quais, decerto, deveriam diminuir com a adoção dos substitutos criminais, outra questão que merece destaque é o fato de que as alternativas não alteraram o modelo punitivo de resposta ao delito. Ao revés, elas encontram-se neste modelo de punir, como bem ilustrou Leonardo Sica:

De nada adianta pensar em penas e medidas alternativas ao castigo prisional dentro de um paradigma exclusivamente punitivo-retributivo, no qual, pela própria natureza dos mecanismos existentes (basicamente a pena), acabará sempre prevalecendo a resposta da força, impulsionada por

260

BRASIL, 2012b, p. 61.

261

fatores externos ao sistema.262

Em vista do exposto, não subsistem dúvidas de que prevenção especial é um discurso que pretende inserir, no direito penal, o discurso de inclusão e atuação positiva na pessoa do outro, a partir da ilusória premissa de que a pena, punitiva e aflitiva como é, tem condições efetivas de corrigir, reinserir ou ressocializar aquele que cometeu crimes.

3.3 PROBLEMAS RENEGADOS PELO PUNITIVISMO. A VÍTIMA E AS