• Nenhum resultado encontrado

3 AS PROMESSAS E A CRISE O PARADIGMA QUE NÃO CUMPRE O QUE

3.1 O PARADIGMA DE PUNIR E A SUA CRISE

No capítulo anterior, apresentamos o nascimento do paradigma punitivo, as características deste, bem assim a sua respectiva racionalidade criminal justificadora, qual seja, a racionalidade que obriga a punição enquanto única resposta às violações de preceitos primários incriminadores.

Trouxemos, outrossim, a base científica que nos leva a afirmar que a punição pode ser considerada um paradigma, fundado em duas premissas. A primeira delas de que o crime é uma lesão ao Estado, que se utiliza da sanção como resposta unívoca ao delito. A sanção é a resposta ao delito que vai assumir algumas finalidades de cunho retributivo ou preventivo (geral ou especial). Mas, a carga será sempre aflitiva.

A segunda premissa do paradigma, decorrente da primeira, é a de que a vítima não tem espaço na resolução do conflito criminal, porque o crime não é um problema entre pessoas, mas a ofensa a uma regra estatal, que enseja, simplesmente, a punição.

Estas premissas, que fundam o paradigma, são o sinal inequívoco da crise de legitimação que vive o paradigma. Sobre esse ponto, precisamos fazer uma observação importantíssima: a crise a que nos referimos é evidenciada na ausência de sintonia entre o discurso pregado e a realidade que se observa na prática; é, em outros termos, uma crise entre o que o paradigma penal diz que é e faz e o que ele, efetivamente, é e realiza. Trata-se, sem mais, de uma crise de legitimação, no sentido de que o paradigma de punir prega algo que a prática demonstra não ser possível alcançar de forma satisfatória. A crise só é, então, vislumbrada a partir do momento que se analisa o discurso do paradigma e a sua práxis, no sentido de verificar-se que as promessas feitas não se refletem adequadamente na prática, originando uma incompatibilidade entre as palavras pregadas e o que ocorre no mundo real. Assim, fica a ressalva de que, quando falamos em crise do paradigma de punir, estamos nos referindo à crise entre discurso e prática.

Feita essa pertinente observação, devemos afirmar que o paradigma punitivo atual vive uma crise de legitimação discursiva, que podemos verificar em duas perspectivas: em primeiro lugar, porque afasta do direito criminal um problema que possui relevância social facilmente verificável, o respeito aos interesses da vítima. A segunda perspectiva de problema criminal consiste em que, a punição que é por ele pregada, com a unificação das normas de comportamento e de sanção, não mais se legitima socialmente. Ou seja, a punição não alcança as finalidades que diz ter e que

dela se esperam.

A crise do paradigma de punir não pode ser vista a partir de uma perspectiva isolacionista, porquanto se trata de um fenômeno essencialmente conectado à crise

da modernidade e da sociedade construída a partir das regras inafastáveis da racionalidade ordenadora.

Existem algumas razões para entendermos a crise da modernidade.

Em primeiro lugar, podemos afirmar que o sonho da modernidade de atestar o tipo de vida que vale a pena e o que não vale, na sua busca irrefreável por afastar o caos da ambivalência e fazer prevalecer a ordem, culminou com uma descrição artificial da sociedade, e, demais disto, ajudou a ampliar as situações de ambivalência práticas.

A ampliação da ambivalência e do caos é uma decorrência do “trabalho de sísifo” de classificar e segregar as estruturas do mundo imposto pela modernidade. Conforme já tivemos a oportunidade de explanar, a razão ordenadora da modernidade, para criar um plano apto a alcançar a perfeição, difunde um trabalho de nomeação e classificação das entidades do mundo. Partindo da premissa de que o mundo possui “entidades discretas e distintas”171

, caberia às regras da razão, estabelecidas a partir do trabalho dos legisladores modernos, separar as características boas das ruins, e, consequentemente, estimular a manutenção e ampliação das qualidades consideradas boas.

Ocorre que, em alguns casos, é possível verificar que há a prevalência da situação de indecisão, porquanto que uma mesma entidade pode possuir, ao mesmo tempo, qualidades consideradas boas ou ruins, havendo uma falha na função nomeadora. Em outros termos, essa entidade pode ser ambivalente.

A existência concreta da situação de ambivalência determina um maior esforço da função nomeadora/classificadora, no sentido de que “a ambivalência só pode ser combatida com uma nomeação ainda mais exata e classes definidas de modo mais preciso ainda”172. Esse aumento do trabalho de nomear e classificar as entidades, “o

trabalho de sísifo” por nós referido, termina por ser a mola autopropulsora da ambivalência, porque cria regras mais exigentes em relação ao mundo dos fatos que contrariam a “descontinuidade e a transparência do mundo”, dando “mais lugar ainda à ambiguidade”. Em termos mais claros, o trabalho de nomeação é autopropulsor 173 da ambivalência, porque esta característica é intrínseca às 171 BAUMAN, 1999, p. 9. 172 Ibid., p. 11. 173

entidades do mundo e só ganha relevo negativo a partir do momento em que se cria uma função de nomeação e segregação tendente a afastar da entidade algo que não pode ser suprimido174. Assim, a projeção geométrica da sociedade, a partir das regras da razão, passa a produzir mais situações práticas de ambivalência.

Demais disso, é importante afirmarmos que a obsessão por traçar projetos, planos e regramentos para alcançar uma sociedade perfeita e estável foi um sonho que a prática cotidiana, em muitos momentos, frustrou175. Consoante assinala Bauman, a era moderna, conquanto tenha trazido muitos benefícios sociais para uma parcela da sociedade, apresentou uma conta muito alta, um preço custoso demais176. E, além disso, “o reino esperado da razão ordenada se materializava muito devagar”177

, havendo dúvidas acerca da possibilidade da sua materialização. A própria modernidade iludiu-se, demonstrou que o seu projeto é, por demais, utópico, vaidoso178 – porquanto não havia como alcançar um código ético universal – e, por isso mesmo, “inacabável”179

, uma vez que a ética tinha que conviver com a ambivalência intrínseca do ser humano180.

O trecho extraído do livro de Lewis Carrol, Alice através do espelho, demonstra a crise da era moderna. Na história, Alice e a Rainha Vermelha começam a correr

174 “Por si mesmo o estranho é desprovido de todos os atributos, é de fato um homem sem

qualidades (exigia-se que os judeus fossem diferentes tanto dos não judeus quanto dos judeus, observou Gilman). Sejam quais forem as qualidades que possam lhe dar um corpo e assim retirá-lo do vazio, são qualidades gratuitamente conferidas e podem ser por capricho retiradas. Na sua ausência de substância, o estranho é um arquétipo da da universalidade: sem peso, insubstancial, inefável, a não ser que injetado com conteúdos de outras pessoas; em nenhum lugar está em seu lugar ‘natural’, é a própria antítese do concreto, do específico, do definido”. BAUMAN, 1999, p. 22.

175 “O impulso para a ordem dotada de um propósito tirou sua energia, como todos os impulsos para a

ordem, do horror à ambivalência. Porém, foi mais ambivalência o produto final dos impulsos modernos, fragmentados, para a ordem. A maioria dos problemas que hoje enfrentam os

administradores das ordens locais é produto da atividade para resolução de problemas”. Ibid., loc. cit.

176 “O preço da modernidade é a alta incidência de doenças psicóticas ou neuróticas: a civilização cria

o seu próprio mal estar e põe o indivíduo num conflito permanente – potencial ou aberto – com a sociedade”. Id., 2010, p. 160. 177 Ibid., p. 158. 178 Cf. Id., 1997, p. 15. 179 Id., 2011a, p. 88.

180 A modernidade criou uma realidade utópica a ser seguida. De acordo com Bauman: “As utopias

modernas diferiam em muas de suas pormenorizadas prescrições, mas todas elas concordavam em que ‘o mundo perfeito’ seria um que permanecesse para sempre idêntico a si memso, um mundo em que a sabedoria hoje aprendida permaneceria sábia amanhã e depois de amanhã, e em que as habilidades adquiridas pela vida conservariam sua utilidade para sempre. O mundo retratado nas utopias era também, pelo que se esperava, um mundo transparente – em que nada de obscuro ou impenetrável se colocava no caminho do olhar; um mundo em que nada estragasse a harmonia; nada ‘fora do lugar; um mundo sem sujeira, um mundo sem estranhos”. Id. O mal estar na pós-

modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,

numa busca desesperada por algo, que Alice ainda não sabe o que é. Nessa busca, correm numa velocidade assustadora, corrida esta que pode ser compreendida como a busca moderna pelo regramento, pela ordem e contra a ambivalência. Nada obstante, a despeito de correrem tanto, ao final, Alice e a Rainha continuam estagnadas, paradas no mesmo local. A modernidade é assim: apesar de planejar, de usar a prancheta como objeto principal do trabalho do legislador moderno, ou seja, de não medir esforços para vencer e fazer prevalecer a razão e o mundo livre do pecado, a ambivalência não desaparece e a sonhada sociedade, ordenada e sem caos, não se firma. Bauman elucida:

A modernidade é o que é – uma obsessiva marcha adiante – não porque sempre queira mais, mas porque nunca consegue o bastante: não porque se torne mais ambiciosa e aventureira, mas porque suas aventuras são mais amargas e suas ambições frustradas. A marcha deve seguir adiante porque qualquer ponto de chegada não passa de uma estação temporária. Nenhum lugar é privilegiado, nenhum melhor do que outro, como também a partir de nenhum lugar o horizonte é mais próximo do que de qualquer outro.181

Na modernidade, a despeito do incansável planejamento, não foi possível alcançar a fase contemplativa da razão. Tudo isso por uma razão muito simples: as metas do mundo moderno de afastar o caos e a ambivalência, da sociedade livre do próprio “pecado” são inatingíveis. Não se trata de uma utopia construtiva que nos move adiante, mas de uma obsessão compulsiva por um mundo ordeiro, artificial, que não conseguiremos concretizar, porque o pluralismo e a desordem são intrínsecos à humanidade.

A crise da modernidade vem, outrossim, acompanhada do colapso de algumas instituições, anteriormente consideradas confiáveis dado a sua “solidez, longevidade, confiabilidade e capacidade de realização”182

.Uma dessas instituições que estão em descrédito é a prisão.

Com o paradigma punitivo, a situação, portanto, não é destoante da crise da modernidade. Apesar de planejar e trazer razões justificacionistas para o modelo que temos, tentando convencer de que a punição é a melhor e única forma de resolver conflitos criminais, minando as utopias criativas dos cientistas dessa disciplina, traçando metas para as penas e medidas de segurança, com o fim de exterminar a criminalidade ou o criminoso, é comum observarmos que essas metas

181

BAUMAN, 1999, p. 18.

182

não se cumprem: a sensação de insegurança nas grandes capitais só aumenta, os índices de criminalidade, ainda que com o fenômeno das cifras ocultas, tornam-se cada vez mais altos e a reincidência assume níveis alarmantes183. O crime, enquanto fenômeno normal, não nos abandonou e nós não conseguimos lidar com ele, de forma adequada.

Na esteira do que afirma Marcos Rolim184, podemos dizer que o nosso sistema criminal (sobretudo o policiamento e a segurança pública) sofre da “síndrome da rainha vermelha”, ou seja, da síndrome de empenhar esforços em grande escala para, ao final, não conseguir sair do local onde se encontra estagnado.

Para analisarmos, com mais detalhes, a crise do paradigma de punir, trataremos, em primeiro lugar, dos problemas que pertencem ao direito criminal, mas que não são satisfatoriamente por ele respondidos. Em outros termos, cuidaremos dos problemas da crise da razão de punir e da ilusão da prevenção especial.

Em segundo lugar, cuidaremos do problema da vítima e das consequências do delito, que são correlatos ao crime, mas são afastados pela racionalidade criminal moderna que propugna, unicamente, a punição.

3.2 CRISE NA RESOLUÇÃO DOS PROBLEMAS INTRÍNSECOS AO PARADIGMA