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O Caráter Legislador do Paradigma de Punir: Os Réus e as Vítimas

5 RACIONALIDADE RESTAURADORA: A ASCENSÃO DO INTÉRPRETE

5.2 A LINGUAGEM E A MODIFICAÇÃO DA RACIONALIDADE DO SISTEMA

5.2.1 O Caráter Legislador do Paradigma de Punir: Os Réus e as Vítimas

De acordo com o escorço teórico que fizemos nas linhas anteriores, a filosofia da consciência foi a forma de pensar característica da modernidade sólida, no bojo da qual uma pequena classe de seres especiais colocava-se diante das entidades do mundo, a partir de uma postura de superioridade para as analisar sob o prisma objetivo, da reificação. As discussões filosóficas resumiam-se à metodologia adequada, a partir da investigação individual do sujeito cognoscente, para atingir um conhecimento verdadeiro. Não havia a preocupação do sujeito cognoscente como participante das interrelações com aquelas “entidades do mundo”, os outros sujeitos, de modo que a intersubjetividade intrínseca ao ser social que se debruça sobre as ciências sociais foi, muitas vezes, esquecida.

Esse paradigma filosófico repercutiu e repercute, muito, no modelo punitivo que predomina, ainda hoje, na solução dos conflitos penais. Consoante já salientamos, o paradigma de punir resulta na chamada “expropriação dos conflitos pelo estado” a partir da criação de sujeitos especiais, encarregados em impor aos indivíduos uma solução para o acontecimento delitivo.463

No paradigma de punir, há um conjunto de justificativas que conduzem à

obrigação da aplicação de uma pena sempre que houver a confirmação de um preceito primário incriminador, propugnando a unicidade entre a norma primária e a norma secundária do tipo criminal, conectadas entre si como um todo indissolúvel.

Sem quaisquer dúvidas, esse todo indissolúvel, antes demonstrado, conduz à incansável preocupação com a pena, e com a necessidade de justificá-la, uma vez que é a pena a resposta primordial ao acontecimento delitivo464.

462 “Nos conhecemos a história: Moisés desceu da montanha. Carregava nos braços as regras,

gravadas no granito, ditadas por alguém do além do alto das montanhas. Moisés era apenas um mensageiro, as pessoas – numerosa população – eram os receptores controlados pelo alto. Mais tarde Jesus e Maomé agiram de acordo com os mesmos princípios”. (Nils Christie)

463

Cf. FOUCAULT, 2002.

464 “O foco na pena traz outro efeito pouco estudado: a desvalorização do preceito, ou a

supervalorização da sanção em detrimento do preceito, o que resulta numa evidente falha de

Essa solução não é pensada junto com os sujeitos envolvidos, a partir de seus interesses e suas opiniões, mas, ao revés, é imposta a esses, muitas vezes sem questionar as reais necessidades daquela vítima concreta e da comunidade. A situação é bem elucidada nas palavras de Howard Zehr:

O rapaz traumatizado que cometeu o delito transformou-se num criminoso e foi, portanto, tratado como uma abstração, através de estereótipos. A moça ferida tornou-se uma vítima, mas suas necessidades provavelmente receberam pouca ou nenhuma atenção. Os eventos se tornaram um crime, e o crime foi descrito e tratado em termos simbólicos e jurídicos estranhos às pessoas envolvidas. Todo o processo foi mistificado e mitificado, tornando-se assim uma ferramenta útil a serviço da mídia e do processo político.465

Assim, na racionalidade do paradigma de punir, podemos observar a presença marcante de sujeitos estatais responsáveis pela persecução e decisão do conflito criminal, em uma postura de superioridade frente aos jurisdicionados, no sentido de que aqueles sujeitos decidem a “melhor” resolução para o conflito de uma perspectiva abstrata, pautada na aplicação da lei e distanciada da vivência concreta dos envolvidos no fenômeno delitivo, e, sobretudo, distanciada desse processo de diálogo entre os reais protagonistas do crime466.

A responsabilização pelo crime é pensada sempre em termos de sanção, identificada com pena, decorrente do descumprimento de um preceito primário incriminador, cuja titularidade de aplicação cabe ao Estado enquanto sujeito lesado, ainda que mediatamente. Essa sanção é sempre coercitiva, imposta por meio da força, e, acima de tudo, prevalece, acerca dela, o entendimento de que não há coincidência de dever endonormativo entre a violação e a sanção, já que esta é diferente do preceito violado467.

No paradigma de punir, o diálogo ocorre entre o Juiz, o Promotor/Procurador e o advogado do réu, sempre vinculado a questões técnicas e no curso de argumentações que, ao final, vão interferir no conhecimento do Juiz. Nesse pelo fato de serem condutas às quais se comina uma pena e não pelo fato de a vida e o patrimônio serem valores dignos de respeito e proteção”. SICA, 2007, p. 42.

465

ZEHR, 2008, p. 57.

466 “Moisés e seus funcionários poderiam ter colocado nomes nisto: violência, roubo, comportamento

indecente, assassinato. Ele poderia aplicar o termo geral ‘crime’. Eles poderiam distribuir papéis como ‘vítimas’, ‘agressores’ e ‘testemunhas’. E eles veriam qual pena seria aplica àqueles designados como agressores”. CHRISTIE, Nils. Civilidade e estado. In: PASSETI, Edson; SILVA, Roberto Baptista Dias da (Org.). Conversações abolicionistas: uma crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo: IBCCRIM, 1997, p. 245.

467

Cf. MACHADO NETO, Antonio Luiz. Compêndio de introdução à ciência do direito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 193.

processo, “a vítima e o ofensor tornam-se expectadores que não participam de seu próprio processo”468

, ou seja, que não participam diretamente da decisão de suas próprias vidas469.

No paradigma de punir, “não parece haver qualquer intenção ‘visível’ de se ‘conversar’ com o público leigo, agora tratado apenas como uma coleção de objetos ‘sobre os quais atuar’”470

.Vítima e réu são, portanto, tratados como meros objetos do desenrolar do processo crime. Há uma intrincada linguagem técnica que não permite o diálogo com os protagonistas do crime, tampouco propicia o entendimento destes sobre o tecnicismo que envolveu o desenrolar da decisão. Temos, em verdade, um paradigma de punir que promove uma verdadeira comunicação no estilo “torre de babel”! Na nossa prática judiciária, na qualidade de advogada de réus e vítimas, por diversas vezes presenciamos a angústia destes quando deparados com o ambiente formal dos fóruns e delegacias, sem entender a linguagem falada pelos “doutos da lei”.

Demais disto, no desenrolar processual, a visão dos profissionais do direito – Advogados, Juízes e Promotores – é bem ilustrada na metáfora do legislador, porque estes atuam como portadores de um conhecimento especial instrumental, com o objetivo primordial de falarem e decidirem a vida do réu no processo crime, num procedimento copiado, conforme sintetizado por Hulsman, “da doutrina julgamento final’ e do ‘purgatório’ desenvolvida em algumas variedades da teologia cristã ocidental”471

.

Os personagens do direito atuam, portanto, na qualidade de substitutos do “outro”, excluindo esse outro do processo decisório de resolução do crime. Nesse particular, não podemos deixar de concordar com Hulsman, quando este assenta:

Argumentaríamos que as atividades de profissões e as burocracias somente podem ser uteis a clientes quando são guiadas por uma participação ativa de todas as pessoas em cujo nome estão trabalhando. No referencial da justiça criminal, não há – em princípio – nenhum espaço para tal participação e orientação. Quando a polícia está trabalhando dentro de um referencial de justiça criminal, tende a não ser mais dirigida pelos desejos e reclamações das pessoas que apresentaram a queixa, mas pelas exigências do procedimento legal que estão preparando. O queixoso – a pessoa que pediu providências para a polícia torna-se, ao invés de um guia

468

ZEHR, 2008, p. 76.

469

Já cuidamos dessa questão alhures, mas não nos custa referir novamente que a vítima é a principal excluída de todo o processo, em um sistema que não foi criado para ela;

470

BAUMAN, 2011b, p. 314.

471

para as suas atividades, uma ‘testemunha’. Uma testemunha é, principalmente, uma ‘ferramenta’ para levar procedimentos legais a um fim com sucesso. De forma comparável, o modelo de procedimentos no tribunal impede – ou de qualquer jeito torna extremamente difícil – que a vítima expresse livremente sua visão da situação ou entre numa interação com a pessoa que está fazendo o papel de suposto agressor no tribunal.472.

Dentro do contexto do paradigma de punir, é verdade, muitos juristas de formação vanguardista já começam a defender a interpretação e aplicação do direito e da decisão processual penal a partir da filosofia da linguagem, abandonando a postura isolada do sujeito cognoscente distanciado do mundo.

Alexandre Morais da Rosa, apenas para citar um exemplo, vai assinalar que a decisão no processo penal deve ser vista como bricolage de significantes, ou seja, a atividade do juiz deve se assemelhar ao trabalho do bricoler, que “executa um trabalho sem que exista um plano rígido previamente definido, mas que se deixa levar pelos utensílios que possui à mão, construindo, remontando, colando, integrando, com o material disponível”473

. Assim, afirma, o juiz deve trabalhar sem descartar todos os significantes do que ocorre no processo, com depoimento de partes, testemunhas e demais meios probatórios produzidos474. Em outros termos, o que vai assinalar Alexandre Morais da Rosa é que os Magistrados (um-juiz) ao proferirem a decisão, vão obter a verdade processual possível, não a partir de regras metódicas ideais, mas por um processo “vertido na e para linguagem”475

. Nesse sentido, o autor faz um contraponto

Os “juristas de ofício” trabalham com conceitos pré-dados pelo “senso comum teórico”, enquanto o jurista-bricoler maneja significantes. Não que faça muita diferença na base, dado que na verdade ambos somente possuem significantes. Mas o “jurista de ofício” está preso aos conceitos fornecidos – prêt-à-porter – pelo senso comum teórico e suas indústrias (doutrina e jurisprudência), ao passo que o “jurista-bricoler” aceita deslizar/ousar com e nos significantes, num processo ético (Dussel) de atribuição de sentido realizado com os “outros”, partes no processo, e o

Outro.476

A construção da decisão a partir da linguagem fica clara no pensamento do autor em questão, uma vez que este concebe o juiz não mais como o sujeito sozinho em sua consciência jurídica que é responsável por descobrir a verdade, mas como o

472

HULSMAN, 1997, p. 200.

473

ROSA, 2004, p. 367.

474 “De sorte que, no ato decisório, é o um-magistrado que(m) monta, a partir das pretensões de

validade enunciadas pelas partes (Cap. 7o), o que se chama de ‘verdade processual’, lançando mão das provas, dos significantes produzidos validamente, manejando a técnica de ‘bricolage jurídica’, ou seja, construindo com o que tem à mão, sem o pretendido controle racional total”. Ibid., p. 369.

475

Ibid., p. 372.

476

sujeito responsável por extrair a verdade a partir dos significantes trazidos ao processo pelas partes.477

Não temos dúvida de que essa forma de conceber a decisão no processo penal é positiva, preocupando-se com a valorização do diálogo entre partes para a construção do resultado final e afastando a postura do juiz inquisidor tão frequentemente arraigada na práxis judiciária brasileira. Nos casos de manutenção do paradigma de punir, pensamos não haver melhor forma de assegurar o contraditório, a produção probatória e a ampla defesa para a formação da sentença penal – condenatória ou absolutória.

Nada obstante, essa concepção do processo de decisão a partir da analogia com o bricoler, ou seja, a partir da percepção de que o magistrado deve construir a verdade analisando o trabalho trazido aos autos pelas partes, conquanto traga benefícios para a resolução dos casos que permanecem no cenário do paradigma de punir, não deve continuar sendo a única opção. Isso por duas grandes razões: em primeiro lugar, a linguagem técnica de princípios e regras jurídicas permanece inacessível para o réu - que se posiciona por meio de seu advogado e, em segundo lugar – e também para a vítima – que, por vezes, não participa da formação desse convencimento, mormente porque, na maioria dos casos, não dispõe de meios para custear um assistente de acusação, ficando de fora do desenrolar do processo crime.

As verdadeiras partes do conflito, portanto, permanecem alijadas e afastadas da decisão, sendo noticiadas da “justiça” final do processo pelos outros, os técnicos do saber jurídico. Além disso, a resposta alcançada no caso final continua a ser punitiva, ou seja, uma resposta que não tem o condão de aparar as arestas materiais e emocionais causadas pelo delito.

477

Não é mais o descobridor de verdades, mas o inventor de associações de significantes. O discurso jurídico está inserido na linguagem sem os totalitarismos anteriores e a linguagem, pela mão do ator jurídico, rediz, refaz ou se cala; desliza em uma cadeia escolhida com responsabilidade ética por ele. Cf. Ibid.

5.2.2 A Justiça Restaurativa e a Protagonização entre Vítima e Autor: O Giro