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Prevenção Especial: Em Busca de um Conceito

3 AS PROMESSAS E A CRISE O PARADIGMA QUE NÃO CUMPRE O QUE

3.2 CRISE NA RESOLUÇÃO DOS PROBLEMAS INTRÍNSECOS AO

3.2.2 A Ilusão da Prevenção Especial Positiva

3.2.2.1 Prevenção Especial: Em Busca de um Conceito

A prevenção especial pode ser apresentada, numa primeira aproximação, como a teoria que justifica a pena a partir de uma finalidade de atuação na pessoa do criminoso214. De acordo com as teorias da prevenção especial, o utilitarismo a ser buscado com a pena deve ser focado em uma atuação sobre o infrator, em duas vertentes: positiva, no sentido de conferir à pena uma função educativa, tendente a melhorar a pessoa do infrator; negativa, com o objetivo de inocuizar aqueles que seriam inocuizáveis e eliminar aqueles que não são possíveis de neutralizar215.

Ambas as finalidades, como vai ressaltar Ferrajoli, não se excluem, mas, ao revés, complementam-se, “para a definição do objetivo da pena enquanto fim diversificado e dependente da personalidade, corrigível ou incorrigível, dos condenados”216

. Assim, para aqueles que fossem corrigíveis, o Sistema Penal atuaria como um meio de correção do desvio que possuíssem; quando não fosse possível corrigir, a finalidade precípua seria a de prevenção especial negativa, tendente a neutralizar ou eliminar o criminoso.

Ferrajoli sistematiza três vertentes mais conhecidas de prevenção especial. Em primeiro lugar, Ferrajoli vai apresentar as doutrinas pedagógicas da 214 Cf. DIAS, 2007, p. 54. 215 Cf. FERRAJOLI, 2002, p. 245. 216 Ibid., p. 246.

emenda, de origem mais remota, por meio das quais, “a partir de uma concepção espiritualista do homem”217

definem que a função da pena é transformar os homens delinquentes em seres bons. São teorias formuladas por Platão e reelaboradas por Santo Tomás, que partem da ideia de reabilitação fundada em premissas metafísicas, de penitência e arrependimento que defende a ideia de que os criminosos sofrem de algum desvio moral e que, por conta disso, precisam da pena para pensar nos seus atos e se arrepender dos seus crimes, expurgando de suas mentes o mal que lhes acomete. Trata-se de um conjunto de ideias ligadas às tradições platônicas e ao período medieval, apresentando pouca relação com o pensamento racional iluminista moderno, de maneira que não nos debruçaremos muito sobre as doutrinas da emenda.

As teorias que defendem a prevenção especial, no período moderno, são fruto da mudança na concepção do plano iluminista, em que “o punir menos converte-se naquele disciplinar e tecnológico de punir melhor”218

, ou seja, em que o direito penal deixa de ser utilizado como instrumento puro de retribuição para ser visto como plano de recuperação ou eliminação do criminoso desviante, sempre a partir da punição.

No período moderno, as principais teorias que vão ser desenvolvidas, sobre a prevenção especial, são a da defesa social e o programa de Marburgo, conforme apresentaremos nas linhas que se seguem.

A Terapia ou ideologia da Defesa Social fundamenta a prevenção especial a partir da noção de tratamento. Trata-se de uma teoria concebida no período racional sob forte e nítida influência da criminologia positiva e de seus pressupostos básicos. A criminologia positiva, desenvolvida sob a égide do fascínio pelas ciências naturais e pelo positivismo jurídico de Comte, buscava explicar a etiologia do crime na disfunção biológica (Lombroso), psicológica (Garófalo) ou social (Ferri) do criminoso, partindo de uma perspectiva determinista do homem. Esta corrente do pensamento parte, pois, do suposto de que o delinquente é um ser inferior, pervertido ou degenerado, distinto dos homens de bem.

217

FERRAJOLI, 2002, p. 247.

218

Abandonando os postulados clássicos do livre-arbítrio219, os positivistas da criminologia vão assinalar que o homem criminoso é um ser identificável entre os demais que precisa de uma intervenção estatal para tentar melhorar a patologia – biológica, social ou psicológica – que lhe acomete.

De acordo com a perspectiva de Lombroso (seguramente, a mais difundida da escola positiva), o criminoso era um ser diferente, que, sob uma análise de evolução social (Darwin), é involuído e primitivo, e, por conta disto, dedica-se à criminalidade. Para Lombroso, a natureza atávica do criminoso, identificável por características físicas220, que faziam deste um selvagem, impossibilitado de se comportar como os normais, dada a sua constituição inata.

O homem criminoso, portador de determinados atributos físicos, que deveriam ser desvendados e reconhecidos, para que o direito criminal punitivo estivesse legitimado a atuar preventivamente, a “sequestrar’ o criminoso em face dos temíveis efeitos sociais/morais que pode causar, tudo – cinicamente – em nome da ‘paz social’ e ‘segurança jurídica’, tecnicamente chamada de Defesa Social”221

.

A partir da identificação do criminoso, seria possível estabelecer a pena adequada para ele: “higiênico-preventiva, terapêutico-repressivas, cirúrgico- eliminatórias, dependendo do tipo de delinquente – ocasionais, passionais, habituais, loucos ou natos e dos fatores sociais, psicológicos e antropológicos do crime”222

.

Às perspectivas de Lombroso, Ferri e Garófalo agregam com maior ênfase, respectivamente, desvios sociológicos e psicológicos223.

Dessa forma, esse sujeito, diferente, deveria ser submetido a uma pena, que

219 De acordo com Baratta: “De fato, a escola liberal clássica não considerava o delinquente como um

ser diferente dos outros, não partia da hipótese de um rígido determinismo sobre a base do qual a ciência tievsse por tarefa uma pesquisa etiológica sobre a criminalidade e se detinha principalmente sobre o delito, entendido como conceito jurídico, isto é, como violação do direito e, também, daquele pacto social que estava, segundo a filosofia política do liberalismo clássico, na base do estado de direito”. BARATTA, 2002, p. 31.

220 “Então, ‘numa manhã nublada de dezembro’, examinou o crânio do famoso bandido Vilhella,e teve

aquela faísca de jubilosa intuição que acompanha tanto os descobrimentos brilhantes quanto as invenções mais esdrúxulas. Pois viu naquele crânio uma série de traços atávicos que evocavam mais o passado simiesco que o presente humano [...] Dentre essas características encontravam-se

‘sobrancelhas espessas, quase se encontrando acima do nariz’, nariz aquilado, orelhas pontudas na parte superior.” GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 122. 221 ROSA, 2004, p. 214. 222 FERRAJOLI, 2002, p. 249. 223

tinha como finalidade a terapia de cura do condenado, e, ainda, a defesa da sociedade. A pena era apresentada mais como um remédio do que como uma punição; quase um favor ao condenado. “O criminoso em não sendo um igual, se considerada a divisão entre o mundo dos bons e dos maus, pode e deve, na lógica da Defesa Social, ser liquidado ou reformado para ser igual aos bons, os que se impõem pela força”224. Dessa forma, o criminoso que fosse “corrigível”, deveria ser

tratado pelo sistema criminal, para ser igual aos outros seres normais e de bem da sociedade; o incorrigível, por seu turno, deveria ser neutralizado, para a defesa da sociedade.

Constatamos, assim, que, se a pena visava a corrigir o condenado, para que esse voltasse à sociedade como um homem de bem, ela deveria durar o tempo suficiente para que se atingisse a cura, não se cabendo falar em limite máximo de condenação.

Ferrajoli destaca, ainda, o programa de Marburgo, e o projeto socializante de diferenciação das penas. Essa vertente da ressocialização preconiza que “a função de prevenção especial das penas” ocorrerá por meio das “individualizações e diferenciações”. No contexto dessa concepção, a ressocialização seria buscada por meio da pena justa, diferenciada “segundo a personalidade dos réus”. Liszt abandona o pressuposto de retribuição da culpabilidade225, assinalando que a sua missão fundamental da pena era atuar sobre a pessoa do criminoso, por meio de uma sanção diferenciada para cada espécie de infrator e, secundariamente, a proteção de bens jurídicos226.

O que extraímos, desse breve resumo das principais teorias da prevenção especial apontadas, é que todas concebem, em maior ou menor grau, a possibilidade de intervenção na pessoa do criminoso, concordando com o “uso do direito penal não apenas para prevenir delitos, mas também para transformar as personalidades desviantes por meio de projetos autoritários de homologação ou, alternativamente, de neutralização [...]”227

. Os fundamentos desse projeto de atuação na pessoa do infrator é que vão ser distintos, mas, de toda forma, vão partir

224

ROSA, 2004, p. 216.

225

Cf. ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Tradução de Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz. 3. ed. Lisboa: Vega, 2004, p. 54.

226

Ibid., p. 54-55.

227

da premissa de anormalidade do condenado, seja de um ponto de vista moral, biológico ou social.

Verificamos, portanto,o primeiro ponto criticável das teorias da prevenção especial: não há um consenso sobre qual é a correção que vai ser realizada sobre a pessoa do criminoso, tampouco, quais seriam os meios para essa melhoria dos ofensores corrigíveis.

Acrescentemos, à incerteza conceitual, outra crítica igualmente importante. Ainda que fosse possível conceituar, univocamente, a ressocialização, esse conceito esbarraria na ausência de normas de conduta social validamente aceitas por todos.

Não duvidamos, nas sociedades atuais, do pluralismo de ideias, dos “distintos sistemas de valores e distintas visões de mundo”228

, consoante bem destacou Raul Cervini. Numa democracia, é impossível admitirmos a existência de uma sociedade uniforme, monolítica, com valores iguais e universalmente aceitos. Diante dessa conjuntura, a ideia de ressocialização esbarra na seguinte questão: qual seria a norma de conduta e o sistema de valores a ser incutido no condenado, durante a sua pena-terapia? Essa crítica, sem sombra de dúvidas, só foi percebida com vigor a partir da crise da modernidade gerenciadora.

Sobre este ponto, conclui Cervini, com razão, que “a autêntica ressocialização só será possível quando o indivíduo a ser ressocializado e o encarregado da ressocialização tenham, aceitem ou compartilhem o mesmo fundamento moral que a norma social de referência"229.

E esse aspecto é particularmente difícil de concretizar, porque o que observamos, em regra quase absoluta, é que aquele que pretende ressocializar, ainda que diga o contrário, ignora o conjunto de valores sociais e morais intrínsecos ao condenado, bem assim o conjunto social no qual se pretende incorporá-lo, por acreditar que a sua visão de mundo é a melhor a ser seguida. E, por ser assim, o socializador impõe ao sujeito condenado uma “ordem social”, que considera perfeita e isenta de críticas230.

228

CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 41.

229

Ibid., p. 41.

230 “Sem embargo, e ainda que o conceito de ressocialização que maneja essa teoria seja definido

cepticamente como mera adaptação funcional à coletividade, cabe questionar sua pretendida neutralidade axiológica, posto que o vocábulo evoca uma admissão ritual e coativa dos valores,

Essa imposição de um conjunto de valores, tido como perfeito, à pessoa do condenado, com vistas a torná-lo uma pessoa melhor, afeta, sobremaneira, os seus direitos231.

Se é certo que “todos têm o direito de irem para o céu ou o inferno como quiserem, desde que no caminho não violem as pessoas ou seus bens”232

, outra conclusão não há, senão a de que a ressocialização – enquanto teoria que visa incutir valores e transformar o delinquente em uma pessoa boa – só pode operar se (e quando) o destinatário dela concorde. Qualquer imposição de uma socialização é uma violência ao indivíduo, uma afronta ao seu direito de ser quem se quer ser.

A doutrina de fins da pena mais vanguardista, defendida por Roxin, Figueiredo Dias e Eduardo Correia, absorve algumas dessas críticas para reformular o conceito de prevenção especial positiva. Essa concepção reformulada da prevenção especial vai trazer um conceito de ressocialização que tenta inserir, na pauta da reabilitação, o discurso de inclusão do outro, com vistas a relegitimar esta função preventiva da pena. Nesse sentido, tal posicionamento mais recente vai defender que a prevenção, que incide positivamente na pessoa do criminoso, não pode abstrair a questão da voluntariedade do indivíduo apenado, no sentido de que a ressocialização só poderá ser bem sucedida se, e quando, esse indivíduo se dispuser a colaborar com o Estado.

Nesse sentido, Eduardo Correa vai assinalar, em um primeiro momento, que o conceito de ressocialização deve ser entendido como a inserção “no delinquente de um puro sentimento de responsabilidade social, fornecendo-se-lhe, através dos Serviços Sociais de Justiça, elementos para uma aprendizagem visando a que não

modelos e pautas de conduta do grupo pelo infrator, que os internaliza, resolvendo, assim, um conflito de sistemas normativos. De outro lado, a teoria da socialização, enquanto modelo explicativo do delito, tem validez somente parcial e corre o risco de perigosas falsificações empíricas. Pois, evidentemente, a criminalidade não é patrimônio dos grupos marginalizados e mal integrados”. CERVINI, 2002, p. 372.

231 Com efeito, assinala Cervini, baseado nas lições de Garcia Valdez, que: “O direito de não ser

tratado é parte integrante fundamental do direito a ser diferente, que toda sociedade pluralista é obrigada a reconhecer, e a imposição mais ou menos grave oculta, mais ou menos consentida, de um tratamento implica um grave perigo para os direitos do preso como pessoa”. CERVINI, 2002, p. 42.

232

MORRIS; HAWKINS apud QUEIROZ, Paulo. Tráfico de droga: artigo retirado de um jornal datado do ano 2.097. Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/trafico-de-droga-artigo-retirado-de-um-jornal- datado-do-ano-2097/>. Acesso em: 10 maio 2012.

pratique crimes no futuro”233

. Em outros termos, a preocupação principal das concepções mais atuais sobre a prevenção especial diz respeito à inclusão de valores positivos no condenado.

Figueiredo Dias vai assinalar que a função de prevenção especial deve incluir noções positivas no criminoso, para afastá-lo do mundo do crime, quando este for “carente de socialização"234

. Essa inclusão, contudo, deve partir da premissa “respeito pelo modo de ser do delinquente, pelas suas concepções de vida e o mundo”235

.

Roxin, por fim, afirma que “uma pena que pretende compensar os defeitos de socialização do autor só pode ser pedagógica e terapeuticamente eficaz quando se estabelece uma relação de cooperação com o condenado (tradução nossa)”236

. O que percebemos, então, é que, nessa nova visão de prevenção especial, a doutrina defende que o Estado deve atuar como colaborador do indivíduo, auxiliando-o, caso queira, a sair do mundo do crime: “auxílio não coactivo, repetimos, mas de ensinamento e ajuda e aprendizagem, através de um discurso cognitivo em que se radique a ideia de que o crime não compensa; que cada homem tem responsabilidade pelos seus atos como pelo dos outros”237

Não podemos negar a tentativa de avanço que essa concepção mais recente de prevenção especial apresenta. Nada obstante, é possível observarmos que, em que pese o respeito pelo “modo de ser do delinquente”, o discurso mantém a afirmação de que o criminoso é um ser diferente, de que falta nele “algo” que os outros possuem e de que é função do Estado reabilitar e ressocializar essa pessoa que cometeu um crime, ainda que estabelecendo o limite de voluntariedade do apenado.

Diante de tantas vertentes apresentadas, o que podemos esboçar como conclusão é que este conceito de prevenção especial é plurissignificativo, a

233

CORREA, Eduardo. Ainda sobre a o problema da ideologia do tratamento: algumas palavras sobre o serviço social de justiça. Revista de Legislação e Jurisprudência, Coimbra, n. 3794, ano 123, p. 129-131, set. 1990, p. 130.

234

DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais de direito penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 133.

235

Ibid., loc. cit.

236 No original: “Una pena que pretende compensar los defectos de socialización del autor sólo puede

ser pedagógica y terapéuticamente eficaz quando se estabelece uma relación de cooperación com el condenado”. ROXIN, 1997, p. 96.

237

depender da concepção que seja adotada, o que denota uma ausência de definição concreta do conceito próprio de ressocialização, das suas metas, dos objetivos intermediários, dos procedimentos, e dos limites238. Dessa forma, não há como aplicar aquilo que mal se consegue compreender por completo.

Ultrapassadas às críticas à ressocialização, cumpre destacarmos que, ainda que se tratasse de um conceito perfeito e logicamente aceitável, a prevenção especial não obteria sucesso. E o fracasso desta tem uma explicação simples: a deficiência do meio precípuo utilizado para alcançar o fim proposto, qual seja, a prisão.

Sobre o tema, é imprescindível fazermos uma pequena digressão da prisão, apta a narrar o seu surgimento e o porquê de se acreditar tanto que ela possa cumprir finalidades que, de fato, não lhes são possíveis de executar.