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APÊNDICE III — ROL DE VOCÁBULOS COLETADOS DO PORTUGUÊS ARCAICO QUE CAÍRAM EM DESUSO AO LONGO DA HISTÓRIA DA

1 A LÍNGUA PORTUGUESA: DAS ORIGENS AO PERÍODO ARCAICO

As línguas naturais, independentemente do ramo genético-tipológico a que se adscrevem4, definem-se, constituem-se e se delineiam através da história, ou seja, deixam entrever o percurso temporal trilhado, ainda que de forma nem sempre muito clara, dada a existência de inúmeras lacunas históricas que esse trajeto apresenta. Através da linha oblíqua e ondulante que o tempo traceja e que, muitas vezes, comporta-se sob efeitos cíclicos, as línguas naturais formatam seus percursos, deixando pegadas que podem ser vislumbradas pelos seus utentes através de estudos científicos — ou mesmo amadores, motivados por simples curiosidade — de natureza diacrônica. Assim sendo, para a língua portuguesa, tal como para qualquer outra, é possível delinear um percurso temporal que englobe a sua gênese, a evolução de seu sistema intralinguístico e sua definição e difusão como língua de cultura, envolta hodiernamente numa realidade plurinacional.

Pode-se afirmar que a gênese da língua portuguesa arrima-se na expressão oral latina transportada à Península Ibérica e lá utilizada pelos conquistadores romanos (e demais utentes do latim peninsular) desde o início da romanização dessa região, iniciada na primeira quadra do séc. III a.C., em decorrência da terceira guerra púnica. O processo de romanização da Península Ibérica somente se completaria no séc. III d.C. (c. 216 d.C.), com a conquista definitiva do noroeste peninsular, correspondente à atual Galícia e ao norte de Portugal.

Segundo Coelho (2004), a complexidade relativa à gênese do português e das demais línguas românicas pode ser constatada ao se observarem os diversos fatores que envolveram a difusão do latim nas zonas conquistadas e a sua posterior diferenciação nas línguas descendentes, que passaram a constituir sistemas linguísticos independentes da língua de origem. São exemplos desses fatores, por exemplo, a diversidade dos substratos étnicos ibéricos (povos celtas, lusitanos, vascos etc.), as diferentes correntes de romanização, a origem social e geográfica dos agentes romanizadores, o modo de romanização, a diversidade dos superstratos associados às invasões ocorridas a partir do séc. V, com os vândalos, suevos, alanos e visigodos, além do contato com os adstratos árabes e berberes.

Apontar o latim vulgar, que se difunde através da romanização ibérica, como estrato linguístico basilar constitutivo do português não significa, contudo, deixar de lado as línguas

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Ou, em outros termos, sua classificação genética (genealógica) ou tipológica, donde são levados em consideração os padrões de ordenação, o alinhamento morfossintático e seu caráter sintético ou analítico, tal como indica Eliseu (2008).

de substrato e superstrato, adotando um ponto de vista equivocado que tende a ver a deriva intrínseca do latim como único fator constitutivo das línguas neolatinas, tal como é postulado por Nunes (1975) e por Vasconcelos (1911-1912) a respeito do português, considerada nada mais do que uma transformação lenta, progressiva e secular da língua latina. Pelo contrário, adotamos uma perspectiva que observa a formação e a constituição dos domínios românicos como um processo complexo (WARTBURG, 1971), que envolve fatores de várias ordens (BASSETO, 2005), sejam eles intralinguísticos (exempli gratia, a contribuição do estrato latino e dos substratos e superstratos) ou extralinguísticos (aspectos sociais, culturais, geográficos etc.).

Observa-se com certa regularidade a adoção dos conceitos de substrato, superstrato e adstrato como simples e pontuais contribuições dessas línguas ao estrato basilar constitutivo do sistema linguístico descendente, sobretudo envolvendo campos léxicos específicos. Assim, as línguas de substrato e superstrato são associadas a uma função de mero apoio vocabular ao estrato linguístico principal, tal como se fossem acessórias e até dispensáveis. Ao observamos o quadro da contribuição do adstrato árabe ao sistema intralinguístico do português, por exemplo, é recorrente encontrarmos nos manuais de história da língua apenas uma listagem de arabismos relacionados aos campos léxicos do vocabulário comum, da agricultura, dos pesos e medidas, das ciências ou da toponímia (FAULSTICH & CARVALHO, 2006), quando essa influência parece ter sido mais profunda, conforme aponta Frías Conde (2002). Segundo este último, o árabe forneceu contribuições ou influenciou a consolidação de fenômenos de natureza morfológica ou sintática (exempli gratia, prefixo/antepositivo árabe a(l)-, plurais duais típicos, impessoalidade verbal, construções oracionais sem cópula, infinitivo flexionado).

Claro está que na formação das línguas romances obteve papel preponderante o latim, como sua matriz genolexical e estrutural primeva, mas isso não nos permite afirmar que as demais línguas com as quais manteve contato foram meros aportes para a constituição dos romances, já que favoreceram de forma substancial a diferenciação entre o latim e as línguas dele originadas. Concordamos, portanto, com Malmberg (1971), ao evidenciar a importância dos substratos para a explicação das transformações linguísticas, sendo um importante fator atuante na evolução histórica das línguas. De igual forma, aderimos também ao pensamento de González (2002, p.30), quando sinaliza que:

Ainda que a maioría dos restos de substrato e superestrato coñecidos na lingua actual pertencen ó léxico, por ser este o ámbito no que é máis fácil identifica-la orixe [sic], non hai dúbida de que tamén na fonética e na morfosintaxe as linguas de substrato e de superestrato tiveron que deixar tamén as súas pegadas.5

É interessante a visão desenvolvida por Mattos e Silva (2011), em que, ao observar a natureza sociolinguística (contexto socioeconômico e político) e intralinguística (a ordem (S)OV, a perda morfológica das flexões nominais, a perda do gênero neutro, a perda da passiva sintética em proveito de formas analíticas, a perda das marcas de concordância verbal) das línguas românicas (e também do inglês), enquadra-as numa classe de formação histórica do tipo crioulo (ou seja, frutos de um processo de crioulização), similar aos estágios imputados aos crioulos pós-quinhentos. Observa-se que a supracitada medievalista não é a única a defender esse ponto de vista, já que é preconizado por estudiosos de renome, como Glissant (1996) e Dewulf (2005), que chegam a defender que ―[...] todas as línguas, sejam elas o português, o neerlandês, o papiamento ou o japonês, poderiam ser consideradas línguas crioulas, já que cada uma delas é, no fundo, o resultado de um processo secular de contacto e de mistura.‖ (DEWULF, 2005, p.307).

Tomando como lastro engatilhador a perspectiva desenvolvida por Mattos e Silva (2011), ponderamos que talvez seja possível falar na existência de uma situação de transmissão linguística irregular na formação das línguas românicas (e, consequentemente, do português), visto que no surgimento desses sistemas linguísticos novilatinos encontravam- se as condições tidas como caracterizantes desse processo histórico-linguístico, a saber: a) um contato maciço entre povos falantes de línguas tipologicamente diferenciadas; b) a existência de situações em que a língua do grupo dominante (língua-alvo) se impõe, de modo que os falantes das línguas autóctones são forçados a adquiri-la em condições precárias de aprendizado, em situações de sujeição ou marginalização; c) a ocorrência de um aumento na frequência de uso de formas não marcadas, bem como a sua generalização paradigmática; d) a formação de variedades mais ou menos defectivas de segunda língua (com lacunas, simplificações, eliminações ou reanálises em relação aos mecanismos gramaticais da língua- alvo, sobretudo a perda — drástica ou mais amena — de morfologia flexional) moldadas nessas condições de contato e subjugação e que acabam fornecendo os modelos para a aquisição da língua materna para as novas gerações de falantes, na medida em que os grupos

5―Ainda que a maioria dos restos de substrato e superestrato conhecidos na língua atual pertençam ao léxico, por

ser este o âmbito no que é mais fácil identificar sua origem, não há dúvida de que também na fonética e na morfossintaxe as línguas de substrato e de superstrato deixaram também as suas pegadas.‖ [Tradução nossa].

dominados vão abandonando as suas línguas nativas (LUCCHESI & BAXTER, 2009; LUCCHESI, 2009a; LUCCHESI, 2009b).

Conjugando a ilação proposta por Mattos e Silva (2011) com os subsídios teóricos expostos por Lucchesi & Baxter (2009) e Lucchesi (2009a; 2009b), adotamos, ao menos por ora, uma perspectiva hipotética na qual a gênese e a formação histórica das línguas neolatinas podem ser encaradas como tendo sido ocasionadas por um processo de transmissão linguística irregular6, que, por sua vez, poderá ter originado uma das duas situações (próximas, mas distintas) apontadas adiante: a) o surgimento de línguas crioulas, i.e., sistemas linguísticos historicamente novos (seria essa a situação postulada por Mattos e Silva (2011)); ou b) o surgimento de novas variedades históricas da língua-alvo, que continuariam apresentando processos de variação e mudança. Com Mattos e Silva (2011), achegamo-nos à primeira alternativa, observando-a como a mais provável de haver ocorrido7.

Se o percurso histórico traçado pela evolução das línguas por si só já se apresenta como algo lacunar, com diversos hiatos e obumbramentos para o linguista, necessariamente todo intento de periodização se vê envolvido por esse contexto. Toda e qualquer proposta de periodização linguística é, por conseguinte, um construto epistemológico (ou um artifício metodológico, adotando o rótulo empregado por Mattos e Silva (2010 [1989]), um expediente teórico elucubrado a posteriori, fruto de uma determinada perspectiva cognoscente, uma tentativa de sistematização da história da língua, não um quadro objetivo definitivo que reflete com completa similitude a sua realidade histórica, que por si só é resvaladiça, labiríntica e multifacetada. Comungamos, portanto, da postura adotada por Schmidt-Riese (2002), quando afirma que as periodizações constituem projetos ideológicos que refletem não a estrutura do

6Lucchesi & Baxter (2009, p.117) afirmam que da transmissão linguística irregular emergem dois níveis de

estruturação da variedade gerada: a) um mais profundo, responsável pela constituição das estruturas basilares da gramática, ―[...] em que concorrem os dispositivos da faculdade da linguagem com as estruturas das línguas de substrato e do superstrato que, consoante o contexto sócio-histórico, vão fornecer o input para o processo de expansão, e eventualmente, de nativização.‖; e b) outro plano, também constitutivo dessas estruturas, em que ocorre ―[...] a seleção dos itens lexicais que vão desempenhar suas funções e expressar seus valores.‖. Todas essas condições (além das quatro outras presentes na página anterior desta dissertação) parecem ser observadas na formação das línguas românicas, ao menos nas ibéricas, entre as quais se encontra o português. Daí apontarmos hipoteticamente que seu surgimento tenha sido plasmado via um processo de transmissão linguística irregular e, possivelmente, também sob um processo de crioulização.

7Pensamos não ser supérfluo salientar e esclarecer que não visamos a atribuir a nós nesse estudo um status de

crioulistas, ou de investigadores experientes dessas questões. Como se pode perceber, a formação sociohistórica do português e das demais línguas novilatinas é extremamente complexa, exigindo do historiador da língua anos a fio de pesquisa séria sobre os meandros que envolvem a gênese e constituição das línguas românicas. O que buscamos fazer nessa seção quanto a esse tema foi simplesmente observar o ponto de vista adotado por linguistas renomados e, a partir disso, tecer nossas próprias considerações e conclusões imediatas, baseadas, é claro — ao menos em parte —, nas contribuições desses estudiosos, tais como Mattos e Silva (2011), Dewulf (2005), Lucchesi (2009a; 2009b), Lucchesi & Baxter (2009) e Glissant (1996).

próprio tempo, mas a temporalidade e a territorialidade do grupo periodizante, tendo o escopo fundamental de servir para finalidades didáticas. Ainda que sempre se configurem como construtos epistemológicos provisórios, consideramos com Maia (1999) que as periodizações são úteis e até mesmo indispensáveis para os estudos linguísticos debruçados sobre diacronias parciais e para o tratamento da mudança das línguas no tempo8.

Segundo Mattos e Silva (2008a), para as delimitações temporais nas propostas de periodização das línguas, geralmente são levados em consideração fatores externos (sócio- históricos) e internos (linguísticos). Tal dicotomia é complexificada por Schmidt-Riese (2002), que a converte em um esquema tetrafatorial, que comporta desde o que é mais extrínseco à língua ao que é mais intrínseco a ela: a) fatores de cunho externo-externo (alterações políticas, demográficas, sociais e culturais); b) fatores de cunho externo-interno (alterações de necessidades comunicativas e discursivas; na avaliação das modalidades; do escopo demográfico, i.e., nível das línguas); c) fatores de cunho interno-externo (alteração na avaliação das variantes); d) fatores de cunho interno-interno (alterações das estruturas linguísticas).

Mattos e Silva (1991; 2006b) aponta uma síntese periodizante da história da língua portuguesa, com a qual concordamos; nesta, o tempo que precede o português arcaico é denominado de período pré-literário, podendo ser subdividido em pré-histórico (antes do séc. IX) — quando ainda não são detectáveis na documentação escrita remanescente em latim traços do futuro galego-português — e proto-histórico (do séc. IX ao XI), quando tais traços já podem ser detectados no latim tabelionesco escrito. O período arcaico, por sua vez, se assenta no arco temporal que recobre desde fins do século XII até meados do século XVI. Reproduzimos a seguir um quadro sinóptico que ilustra a perspectiva periodizante adotada pela supracitada linguista:

8Pertinente a essa discussão é a contribuição oferecida por Cardeira (1999, p.14), ao assinalar que ―A história de

uma língua torna, pela sua própria natureza, artificial qualquer tentativa de divisão cronológica precisa — podemos, mesmo, questionar a compatibilidade entre os conceitos ‗periodização‘ e ‗língua‘ — mas as vantagens que uma tal divisão apresenta para os estudiosos, enquanto instrumento de trabalho, têm conduzido à materialização de diversos ensaios de periodização.‖.