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PERÍODO PRÉ-LITERÁRIO PERÍODO LITERÁRIO Período Pré-

2 A FRONTEIRA ENTRE SINCRONIA E DIACRONIA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA O ESTUDO DA MORFOLOGIA HISTÓRICA

A sincronia, enquanto conceito teórico é um procedimento científico extremamente válido, mas é, antes de tudo, um método e não um modelo. Já a história faz parte da própria essência da língua, sendo verificável tanto na ontogenia do falante — que fala diferentemente aos três e aos setenta anos —, quanto na filogenia do sistema [...]. (VIARO, 2012a, p.279). [Grifos nossos].

É de conhecimento geral para os linguistas o fato de que a partir da divulgação do pensamento de Ferdinand de Sausurre, exposto na obra Cours de Linguistique Générale (publicada pela primeira vez em 1916), acirrou-se o embate entre duas macroperspectivas de estudo científico sobre a língua19: a abordagem sincrônica e a diacrônica. Desde então, para diversas correntes linguísticas — inclusive (e mormente) as que incidem sobre o componente morfológico da língua — tornou-se imperioso o estabelecimento de uma total separação entre as perspectivas sincrônica e diacrônica, com uma absoluta primazia da primeira20, algo que já havia sido preconizado pelo próprio Saussure (2004 [1916], p.105-106), como no excerto abaixo:

A distinção entre o diacrônico e o sincrônico se manifesta em todos os pontos. Por exemplo — e para começar pelo fato mais evidente —, não tem importância igual. Nesse ponto, está claro que o aspecto sincrônico prevalece sobre o outro, pois, para a massa falante, ele constitui a verdadeira e única realidade21. Também a constitui para o lingüista: se este se coloca na perspectiva diacrônica, não é mais a língua o que percebe, mas uma série de acontecimentos que a modificam.

19Afirmamos que a oposição sincronia/diacronia acirra-se (e não começa) com Saussure em virtude de antes da

publicação do Cours já se ter notícia do desenvolvimento (ao menos incipiente) dessa dicotomia, como em Gabelentz (MANOLIU, 1973).

20De tal forma que ficou estabelecida a hegemonia dos estudos sincrônico-descritivos, sendo relegados a um

plano secundário e tangencial os estudos histórico-diacrônicos (MATTOS E SILVA, 2008b).

21Compartilhando o posicionamento de Jakobson et al. (1929 apud VITRAL, 2010, p.79), discordamos

plenamente de Saussure (2004 [1916]) nesse ponto, visto que ―[...] num dado momento de uma língua, os falantes têm consciência de sua evolução, já que conseguem distinguir que formas são inovadoras e que formas são conservadoras.‖ Em outras palavras, os falantes têm uma noção — mais ou menos abrangente, a depender do nível de conhecimento linguístico e metalinguístico que possuem do seu idioma — de que a língua se constitui via um percurso histórico, com seus componentes a evoluir numa cadeia diacrônica, havendo aqueles que se circunscrevem apenas a sincronias pretéritas. Lembremo-nos, com Coseriu (1979, p.65), que ―A consciência humana é sempre consciência histórica [...].‖ [Grifos no original].

A separação total entre uma e outra perspectiva de estudo da língua fica reforçada em diversos trechos da obra saussureana, como quando se alega que ―[...] o fenômeno sincrônico nada tem em comum com o diacrônico [...]‖ (SAUSSURE, 2004 [1916], p.107) ou, mais ainda, quando se assevera que ―Querer reunir na mesma disciplina fatos tão díspares [i.e., fatos sincrônicos e fatos diacrônicos] seria uma empresa quimérica.‖ (SAUSSURE, 2004 [1916], p.101). Com Coseriu (1979) e com Vidos (1996), consideramos inadequado o estabelecimento de uma ênfase acentuada na separação dicotômica total entre diacronia e sincronia, já que isso não corresponde de forma verossímil à natureza da língua e à sua incontestável historicidade. Assim, nada mais acertado do que aquiescermos plenamente com Rangel (2007, p.12), em uma colocação através da qual manifesta que ―[...] como todo fato humano, e a despeito da abordagem imanente, a língua só existe em uso — e, portanto, na história.‖ (RANGEL, 2007, p.12). [Grifos no original].

Pensamos aqui que a melhor forma de enfoque científico deve ―[...] basear-se na realidade do objeto estudado.‖ (COSERIU, 1979). [Grifo nosso]. Assim, sendo a língua um fenômeno social, nos termos de Bakhtin (2004), cuja ―realidade‖ se pauta em seu devir histórico, pensamos que a melhor postura epistemológica para o cientista da língua assenta-se no enfoque histórico-diacrônico22, pois a língua é, por natureza, um objeto histórico (COSERIU, 1979), moldado e configurado através das marcas e vicissitudes temporo- espaciais.

Cabe esclarecer melhor essa postura por nós adotada, que preceitua para o estudo linguístico de teor científico uma incontornável recorrência à história da língua e à sua evolução nesse mesmo plano temporal. Claro está que é possível fazer linguística sem o concurso da observação histórica23, tal como vem sendo realizado por diversos estudiosos da área, desde a difusão da teoria de Saussure até os dias coevos. Essa postura atrela-se, sem dúvida, à aceitação da antinomia sincronia/diacronia, tal como preconizada pelo mestre genebrino, mas que não se constitui em algo que caracteriza per se a ―realidade‖ idiomática,

22De certa forma, pensamos ser possível concordar com Paul (1966, p.28) a respeito da estreita identificação

entre a linguística e a diacronia, negando-se a validade de qualquer método científico que se propõe a estudar a língua (e, a nosso ver, em especial a morfologia) fora de um eixo histórico: ―Aquilo que se considera como um método não histórico, e contudo científico, de estudar a língua, não é no fundo mais do que um método histórico incompleto, incompleto em parte por culpa do observador, em parte por culpa do material de estudo... E assim eu não faço ideia de como se pode reflectir com êxito sobre uma língua, sem averiguarmos um pouco qual foi a sua evolução histórica.‖.

23Ainda que Jakobson (1929 apud VITRAL, 2010, p.77) insista no fato de que ―[...] a descrição sincrônica não

pode excluir a noção de evolução; pois, até mesmo num setor considerado do ponto de vista sincrônico existe a consciência da fase em vias de desaparecimento, da fase presente e da fase em formação. Os elementos estilísticos percebidos como arcaísmos e, em segundo lugar, a distinção entre formas produtivas e não produtivas são fatos de diacronia que não poderíamos eliminar da linguística sincrônica.‖.

mas sim o objeto de estudo concebido, tratando-se nada mais do que um ponto de vista epistemológico, uma perspectiva ou um recorte metodológico (COSERIU, 1980). A sincronia é um modus cogitandi, um método de análise. A diacronia, em contraposição, é uma realidade perceptível em qualquer sistema linguístico, e que necessariamente faz parte da essência das unidades das línguas. Eis o que nos diz Viaro (2012b, p.283-284) sobre isso:

Se a postura sincrônica fosse uma realidade e se quiséssemos entender apenas o momento atual real, mesmo num recorte razoável de tempo, teríamos que fazer paradoxalmente incursões diacrônicas, para separar o trigo do joio. Veríamos que grande parte do que funciona numa língua seria subitamente visto como detrito de épocas passadas. Pairariam dúvidas justificáveis se é possível apenas estudar o que é

de fato presente, por exemplo: (a) a maioria dos substantivos abstratos derivados por

sufixação do português são de origem latina clássica ou francesa; (b) o hebraico foi reconstruído e hoje é língua materna de milhões de pessoas; (c) um substantivo de outra realidade pretérita permanece ainda hoje por causa da escrita que o congela na sua sincronia; (d) falamos de carruagens mas elas não existem mais a não ser nos livros, nos filmes e nos museus. O passado convive com o presente nos signos atuais. A sincronia é, como dissemos, uma ilusão ou, no máximo, um método. [Grifos no original].

Como bem pondera Viaro (2011, p.23), ―Toda língua viva pode ser definida como um sistema herdado em movimento. Abstrai-se dessa evidência que o sistema, por sua vez, foi herdado de outros sistemas pretéritos.‖ [Grifos no original]. Logo, para uma investigação acurada sobre a língua, cumpre satisfazer o requisito de aliar uma visão sincrônica a um lastro histórico-diacrônico (CUNHA, OLIVEIRA & VOTRE, 2012), ou seja, ―[...] ultrapassar a lógica disjuntiva em que assentava a antinomia diacronia/sincronia, e adotar uma filosofia de complementaridade [...].‖ (RIO-TORTO, 1998a, p.137), a fim de não se correr o risco de se deparar com obstáculos decorrentes de uma dicotomização artificial, de um convencionalismo (muitas vezes injustificável) que a delimitação — quer temporal, quer estrutural — de uma língua funcional e veicular implica (COELHO, 2004).

Essa perspectiva de complementaridade entre sincronia e diacronia é igualmente tida como válida por Viaro (2012a, p.279), pois afirma, com justa razão, que indubitavelmente ―[...] não há paradoxo, nem desdouro ao articularem-se sincronia e diacronia: o recorte sincrônico é um método, já a descrição diacrônica flagra a essência de um ser específico, denominado língua, a qual, por sua vez, é um objeto unificado pela nossa abstração.‖. Heckler, Back e Massing (1994) também legitimam essa simbiose entre a visão sincrônica e a diacrônica, afirmando, em outro momento, que ―[...] estas duas áreas do conhecimento lingüístico não estão muito distantes entre si.‖ (HECKLER, BACK, MASSING, 1984, p.XV).

Coadunando-nos ao pensamento de Pena (1995b, p.171), temos a plena consciência de que ―[...] una lengua natural es un sistema en parte formal y funcional y en parte también un sistema resultado de estados anteriores de lengua.‖24

, o que imperiosamente nos leva a considerar os componentes lexical e morfológico de uma língua como instâncias de manifestação de sua história e de sua evolução, conduzindo-nos à realização de uma leitura muito mais histórico-diacrônica do que sincrônica, haja vista se tratar ―[...] de uma leitura acumulada de um mundo que não surgiu agora.‖ (GALVÃO, 2006, p.32). Adotamos essa postura não por mero sectarismo ou por uma vã inclinação teórico-metodológica, mas por considerá-la a mais adequada para o tratamento da morfologia lexical em português, sobretudo por termos consciência de que uma análise exclusivamente sincrônica apresenta para esse fim numerosas dificuldades, sobretudo na análise e classificação dos elementos formativos das palavras complexas (SANDMANN, 1991). Assim, apresentamos total aquiescência com o que é elucubrado por Santana Suárez et al. (2004, p.09), ao afirmarem que:

Las palabras están plenamente ligadas a una historia, tanto en el aspecto morfológico como en el semántico, que determina generalmente su lexicografía y su semántica actuales, por lo que se hace laboriosa su catalogación sin tener en cuenta sus referencias etimológicas. Algunas palabras, ya obsoletas o bien pertenecientes a lenguas madres como el latín o griego, soportan información relevante del processo histórico-morfológico sobre una secuencia generacional de vocablos, que completa las conexiones o interferencias entre los distintos sistemas de formación del léxico actual.25

Em geral, no âmbito da literatura linguística referente aos estudos de morfologia, tem- se acatado a dicotomia diacronia/sincronia26, com a eleição da perspectiva sincrônica como a mais adequada e efetiva para a descrição e análise do nível morfológico da língua. Assim, tal como pontua Coelho (2004), se passarmos em revista alguns dos mais emblemáticos

24―[...] uma língua natural é um sistema em parte formal e funcional e em parte também um sistema resultante de

estados anteriores da língua.‖ [Tradução nossa].

25―As palavras estão plenamente ligadas a uma história, tanto no aspecto morfológico quanto no semântico, que

determina geralmente sua lexicografia e sua semântica atuais, pelo que se faz penosa sua catalogação sem levar em conta suas referências etimológicas. Algumas palavras, já obsoletas, assim como as pertencentes a línguas- mãe como o latim ou o grego, comportam informações relevantes acerca do processo histórico-morfológico sobre uma sequência geracional de vocábulos, que completa as conexões ou interferências entre os diferentes sistemas de formação do léxico.‖ [Tradução nossa].

26Antinomia essa muitas vezes não somente acatada, mas, muito mais do que isso, proposta imperiosamente por

alguns estudiosos como conditio sine qua non para a efetivação de uma descrição ou análise linguísticas acuradas. Basta-se observar o que postula Freitas (1997, p.09): ―Os fatos gramaticais devem ser descritos de acordo com a função dos elementos que compõem a estrutura de um sistema num determinado estado de língua. Torna-se, portanto, indispensável ao pesquisador adotar um método de trabalho: ou usa um critério sincrônico ou um critério diacrônico.‖.

expoentes da teorização sobre a formação de palavras, como Spencer (1991), Corbin (1987), Sciullo & Williams (1987), Bybee (1985), Aronoff (1984), Basílio (1980), Halle (1973), constataremos a generalizada e dominante adoção de um paradigma sincronicista- contemporaneista, quando não até mesmo anti-histórica da geração lexical, da formação de palavras. Observando o arco temporal que recobre as últimas décadas, é possível notar apenas uma tímida produção científica a respeito da formação de palavras em português sob o ponto de vista exclusiva ou predominantemente histórico, principalmente com os estudos gerais ou específicos — um tanto quanto isolados — de Campos (2004a), Coelho (2004), Santos (2009), Rio-Torto (1998a) e Viaro (2012a, 2012b, 2010, 2009).

Obviamente, a língua que utilizamos como veículo de comunicação e de cultura não surgiu hic et nunc, aqui e agora. Pelo contrário. Ela é fortemente subsidiada pelo material linguístico herdado de fases pretéritas de sua existência, sem o qual seria impossível qualquer intento de comunicação entre indivíduos de gerações distintas ou mesmo a aquisição da linguagem sob a forma de língua materna ou segunda língua. Assim, impraticável se torna desconsiderar a evidente associação entre língua e história, entre sistema linguístico e percurso diacrônico. Para um estudo aprofundado sobre a morfologia (flexional ou derivacional) do português faz-se ainda mais necessário um recurso ao lastro diacrônico, às camadas históricas sedimentares de estágios pretéritos da língua, que funcionam como alicerce genolexical para a constituição e configuração de sua atualização hodierna. O nível morfológico atrela-se visceralmente à história da língua, sobretudo na estruturação e no funcionamento dos processos de formação de palavras, o que é corroborado por Rio-Torto (1998a, p.138)27, quando assim discorre:

27E também por Pena (2009, p.16), pois assegura que ―La dimensión histórica de las lenguas naturales es muy

perceptible en el campo de la formación de palabras. Ignorar este hecho al estudiar la morfologia léxica supone una carencia enorme que acarrea descripciones incompletas, cuando no deformaciones en la visión de los hechos morfológicos. Dicho con toda claridade, para investigar al menos con certo grado de profundidad el dominio de la formación de palabras de una lengua románica como el español [o el portugués], es necesario [...] tener buenos conocimientos de la historia de la lengua, de su gramática histórica, así como unos buenos conocimientos de latín.‖. Em vernáculo português: ―A dimensão histórica das línguas naturais é muito perceptível no campo da formação de palavras. Ignorar este fato ao estudar a morfologia léxica supõe uma carência enorme que acarreta descrições incompletas, quando não deformações na visão dos fatos morfológicos. Dito com toda clareza, para investigar ao menos com certo grau de profundidade o domínio da formação de palavras de uma língua românica como o espanhol [ou o português] é necessário [...] ter bons conhecimentos da história da língua, de sua gramática histórica, assim como bons conhecimentos de latim.‖ [Tradução nossa].

Um dos domínios em que o concurso da perspectiva histórica e da perspectiva sincrónica se revela extremamente profícuo é o da formação de palavras. É que uma análise exclusivamente sincrónica pode, ao ignorar o passado, distorcer ou falsear a verdade histórica dos factos e, subsequentemente, do presente das unidades lexicais. O actual estatuto sincrónico destas pode mesmo ser deturpado por falta de informação histórica. Efectivamente, uma abordagem meramente sincrónica pode conduzir a incorreta análise da estrutura interna das palavras, atribuindo, por exemplo, o estatuto de produtos genolexicais a palavras que efectivamente não o têm, pese embora a sua estrutura (aparentemente) compósita, e pode ainda considerar indevidamente como construídos num dado momento produtos de fases mais recuadas.

Para a compreensão de diversos pontos da morfologia da língua constata-se a necessidade compulsória de se recorrer à diacronia, pois se trata de um módulo linguístico que ―[...] não raro não prescinde de explicações históricas, que evidenciam o percurso diacrónico dessa língua, feito tanto de continuidade quanto de mudanças, e que em larga medida ajudam a esclarecer o presente.‖ (RIO-TORTO, 1998a, p.137). Arrolamos a seguir alguns exemplos- situações que ilustram essa realidade:

a. Só a ponderação da origem, da história e da evolução paradigmática dos vocábulos

mórficos permite diferenciar verdadeiros produtos morfolexicais das palavras não derivadas (COELHO, 2004). Somente esse ajuizamento propicia uma verdadeira diferenciação entre palavras efetivamente construídas em português de outras cuja estrutura morfolexical foi derivada em estágios anteriores, no latim ou no grego, mas verdadeiramente pertencentes ao léxico geral ou especializado do vernáculo, ou ainda em casos em que ―[...] a derivação é própria do português, contudo os componentes morfolexicais já existiam no sistema latino.‖ (COELHO, 2004, p.60). A própria noção de palavra primitiva e palavra derivada depende, forçosamente, de uma aceitação da perspectiva diacrônica de estudo da língua, de uma plena consideração de sua natureza incontestavelmente histórica28.

b. Para a análise de vocábulos cuja base é fóssil no vernáculo, visto ser própria de um

sistema linguístico anterior (o latim), é imprescindível o aporte a aspectos

28

Trata-se justamente da mesma constatação explicitada por Viaro (2006, p.1444): ―Mesmo alguém que, hoje em dia, preconize ainda a primazia do elemento sincrônico, não poderia negar que, ao obter, por meio de comutação, um lexema {sapat} e um morfema {eir}, a partir de sapateiro, chamar isso de derivação não deixa de ser paradoxal. Pois derivar pressupunha, na visão tradicional de onde vem o termo, que uma palavra provinha da outra ou que vinha antes da outra: sapato surgiu primeiro e daí veio sapateiro. Mesmo quem postula a falta de necessidade diacrônica pensa assim hoje. A diacronia está, portanto, implícita na derivação, pois duas palavras não surgiram ao mesmo tempo.‖ [Grifos no original].

históricos da constituição linguística. É o caso da seguinte tríade de famílias léxicas paradigmáticas: 1) aferir, auferir, conferir, deferir, disferir, inferir, preferir, proferir, referir etc.; 2) conceber, perceber, receber etc.; 3) atribuir, contribuir, retribuir etc. Para esses casos, ainda que seja possível identificar os segmentos prefixais atuais, não há como estabelecer na sincronia presente as bases lexicais desses verbos derivados, uma vez que elas não subsistiram de forma autônoma na língua. Somente através do percurso histórico torna-se possível reconstituir a significação de cada uma dessas bases. Essas palavras de origem e de estrutura erudita não são produtos derivacionais do português, mas palavras prefixadas no latim, e preservadas no vernáculo (daí o termo bases fósseis). Os segmentos mórficos que, em latim, comportam-se como bases, não têm esse mesmo estatuto em português. Da mesma forma, os segmentos prefixais nelas presentes não podem ser analisados senão à luz do valor que sempre apresentaram nos vocábulos mórficos a cuja base se agregaram. (COELHO, 2004).

c. Na análise de determinados prefixos, como ab- e ob-, faz-se necessária uma

intervenção do conhecimento diacrônico, em virtude do caráter fóssil de muitas bases a que se adjungem, além das mutações morfofonológicas ocorridas no decurso temporal, que não raro impedem uma identificação transparente desses formativos prefixais. Como afirma Duarte (1999a, p.113-114), ―Se fizermos tábula rasa dessas considerações diacrônicas que vêm, não para perturbar a descrição, mas para simplificá-la, caímos em artifícios logicigistas [...].‖.

d. Numerosas alomorfias em português (da mesma forma que em espanhol e,

provavelmente, nas demais línguas neolatinas) só logram ser devidamente explicadas quando se recorre à história interna da língua (DUARTE, 1999a). Como explicar a distribuição complementar e a alternância alomórfica vigentes na sincronia atual entre as bases chumb- (como no substantivo chumbo) e plúmb- (como no adjetivo plúmbeo) ou entre os vocábulos marfim e ebúrneo sem levar em consideração o aporte histórico-diacrônico? Partindo-se para algo ainda mais pertencente ao léxico comum, como seria possível explicar as irregularidades verbais sem o concurso da diacronia? Como explicar a variação alomórfica entre as bases das formas verbais sou, era, fui, fora, fosse, serei, morfemas lexicais básicos (MLBs) constituídos por diferentes segmentos fonéticos, mas possuidores

de idêntico significado? Nota-se, portanto, que mesmo se se atém à sincronia, uma referência à diacronia se interpõe na análise como um critério necessário e até mesmo obrigatório para se explicar fenômenos como o da alomorfia.

e. Os aspectos mórficos referentes à constituição dos antropônimos na língua

portuguesa somente se mostram compreensíveis a partir da consideração do processo histórico que lhes deu origem. Os antroponemas, ou seja, os morfemas imbrincados na formação morfológica dos nomes personativos (e sua carga semântica respectiva) são recuperáveis tão-somente através do plano histórico- diacrônico (COELHO, 2012).

f. A produtividade — denominada prolificidade por Viaro (2012a; 2010; 2006)

em relação à formação de palavras só pode ser determinada quando se tem em mente uma perspectiva diacrônica. Como rastrear a força produtiva de um afixo, por exemplo, sem observar a sua trajetória no eixo temporal, ou seja, o rol de palavras derivadas que gerou no decorrer do tempo? Indubitavelmente, essa noção exige de forma imperiosa uma aproximação com o fenômeno da diacronia29.

g. Uma captação verossímil das vogais temáticas nominais30 em português é decorrente apenas quando se toma como perspectiva observacional a diacronia, a evolução temporal do sistema intralinguístico. As vogais temáticas sempre