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PERÍODO PRÉ-LITERÁRIO PERÍODO LITERÁRIO Período Pré-

3 UMA PROPOSTA DE REVISÃO DO CONCEITO DE MORFEMA E DE

3.2 ESBOÇOS DE CONTINUA LÉXICO-MORFOLÓGICOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA

3.2.2 O continuum mórfico

Do ponto de vista da morfologia, as dicotomias têm sido abundantemente exploradas para a descrição das línguas. A oposição entre léxico e gramática, composição e derivação,

75Observe-se que, em termos de vocábulos, qualquer item da língua parece ter um nível mínimo de significação,

não sendo identificados itens vocabulares ou vocábulos mórficos desprovidos de sentido e/ou função, ainda que, às vezes, seja difícil precisar os traços semânticos ou funcionais de determinados elementos.

76De acordo com Barreto (2012, p.409), a gramaticalização pode ser caracterizada como o processo segundo o

qual ―[...] itens lexicais com referências extralinguísticas desenvolvem significados gramaticais ou itens já gramaticais se tornam ainda mais gramaticais. A gramaticalização parte do léxico em direção à gramática, abrangendo mudanças fonológicas, morfológicas e sintáticas.‖. Quanto a essa caracterização do fenômeno da gramaticalização, similarmente parece concebê-la Fernández Jaén (2009).

sintagma e paradigma, flexão e derivação tem sido algo basilar para os estudos morfológicos da língua, desde o gramático latino Varrão (116 a.C – 27 d.C), que distinguiu as formas vocabulares complexas entre derivatio naturalis e derivatio voluntaria. É patente, contudo, que essas divisões até então difundidas têm gerado inúmeros problemas de descrição linguística.

Na descrição da morfologia (ou morfossintaxe) do português, é particularmente inquietante a definição e identificação de certos elementos linguísticos, que apresentam comportamento semelhante, mas não idêntico e, no entanto, são enquadrados como pertencentes a uma dada categoria linguística previamente definida. Por exemplo, elementos que ora podiam se comportar como núcleo do SN e ora como modificadores, estavam arbitrariamente descritos como pertencentes a uma ou outra classe: substantivos e adjetivos.

Perini (1995), em sua Gramática Descritiva do português, aponta, quanto aos problemas para a definição de classes um possível continuum entre substantivos e adjetivos, estabelecendo para a categoria dos chamados nomes um feixe de traços que opunham três categorias: substantivos de uma tipologia I, substantivos de uma tipologia II e adjetivos (prototípicos), cabendo no que chama de substantivos tipo II elementos fronteiriços do tipo: O fazendeiro nordestino sofre com a seca. / O nordestino fazendeiro sofre com a seca. /O nordestino sofre com a seca. / O fazendeiro sofre com a seca. Tal proposição, ainda que inacabada, teve por mérito apontar uma direção no sentido de buscarmos compreender a língua não mais a partir de elementos encaixotados em categorias estanques, mas sim, como um sistema fluido capaz de possibilitar o intercâmbio e o fluxo de itens de uma categoria a outra. A formulação de Perini (1995) não difere de outras propostas para solucionar um problema de descrição linguística criado pela visão dicotômica, isto é, a introdução de uma categoria intermediária, ou uma terceira via.

A terceira via também foi a saída proposta por Câmara Jr. ao introduzir as chamadas formas dependentes na dicotomia léxico-mórfica bloomfieldiana constituída por oposições entre formas livres e formas presas. De uma dicotomia, passou-se a uma estrutura trifacial, em que as formas dependentes mostrariam-se como intermediárias entre as livres e as presas. A respeito dessa nova categoria, chama a atenção a inclusão dos clíticos, que claramente estariam na fronteira entre formas dependentes e presas.

No nível dos morfemas, é possível observar que a proposição de um continuum se complexifica, pois este passa a ter o escopo de abarcar uma gama bem mais heterogênea de elementos, quando comparado ao continuum léxico-gramatical. A significação veiculada (ou

não) pelos morfemas varia em termos mais complexos, definindo uma tipologia classificatória mais multifacética, tal como expomos no esquema reproduzido a seguir, fruto de nossas primeiras reflexões sobre essa questão:

Esboço de um continuum mórfico para o português77

[+ lexical] [+ gramatical]

MLB (radicais) MLS MD MG Interfixos MFMT SL livres pseudoprefixos sufixoides MFNP CL presos prefixoides sufix. semânticos MFG VL fósseis prefixos lexicais sufix. semântico-funcionais MFN

prefixos gramaticais sufix. funcionais VT verbal prefixos distintivos sufixos de grau VTI prefixos expletivos VTN Zero

Figura 03. Esboço de um continuum mórfico para o português.

No âmbito do estudo da morfologia, quando aludimos a um nível [+ lexical], o que estamos querendo fazer é uma referência ao campo da estruturação genolexical, em que se assentam as informações semânticas relacionadas ao contexto extralinguístico, associadas ao que Câmara Jr. (1997a) denomina de conceitos biopsicossociais. Em contrapartida, quando nos referimos a um nível [+ gramatical] remetemos a um âmbito em que se agregam as informações estritamente linguísticas, que dizem respeito à estruturação e ao funcionamento da língua enquanto sistema (COELHO, 1999). Cabe apontar, contudo, que não há uma separação discreta entre esses dois níveis prototípicos, já que, no interior do quadro tipológico

77Esse nosso esboço visa a englobar exclusivamente as formas presas da língua portuguesa, ou seja, os

constituintes mórficos (a única exceção, que ocorre para ilustrar a prototipicidade, é a inserção da categoria dos radicais livres ou MLBs livres). Pode ser caracterizado, dessa forma, como um continuum tipológico mórfico

da morfologia portuguesa, ―Alguns morfemas podem se instaurar na fronteira entre a gramaticalidade e a lexicalidade. É o caso principalmente de sufixos e prefixos que podem desempenhar simultaneamente os dois papéis, ou ora um ora outro [...].‖ (COELHO, 1999, p.26).

Através do esquema reproduzido imediatamente acima, é perceptível que quanto mais achegados à esquerda do continuum mórfico, mais lexicais (extralinguísticos) se mostram os constituintes morfológicos, sendo os mais prototípicos os morfemas lexicais básicos livres, envolvidos em processos genolexicais de teor compositivo. Por sua vez, quanto mais próximos da direita do continuum, mostram-se mais gramaticais ou mais gramaticalizados os morfemas, sendo os mais prototípicos os que se relacionam a processos flexivos. À extrema direita há os interfixos, que não são dotados de carga semântica depreensível e que, portanto, de certo modo chegam até a afastar-se de qualquer um dos pólos prototípicos, da mesma forma que os segmentos de ligação (incluindo-se entre eles as vogais e consoantes de ligação) e as partículas prefixais expletivas.