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2 O EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO CONSTITUCIONAL DE DIREITO BRASILEIRO

2.1 A LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DO EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO

Por carecer o Judiciário de um regime de escolha análogo ao do Legislativo e do Executivo, diz-se que há um déficit, na origem, de legitimidade de todo aquele que esteja investido de Jurisdição, à vista da não escolha, da não intervenção direta e popular nos processos de investidura de poder a que são submetidos os juízes.

Há, nesse modelo, uma dificuldade indeclinável de encontrar-se um fundamento democrático para a atividade desempenhada pelos órgãos de Jurisdição, sobretudo quando se considera a tradição ocidental do direito brasileiro, em que as bases democráticas para o exercício os poderes é expressão do princípio majoritário, característica singular das denominadas democracias representativas39.

39 Sobre o assunto, salutar a crítica do Prof. Ricardo Tinoco de Goes, para quem “Em

sociedades periféricas como a nossa, em que o grau de desenvolvimento, informação e participação popular é rarefeito, esse aspecto desponta de modo ainda mais grave, isso porque a própria compreensão comum de democracia não consegue ir além dessa percepção simplista, não ultrapassando os limites cognoscitivos do que representa a atuação do agente público, assim tido como o representante eleito para um dado mandato eletivo.” (GOES, Ricardo Tinoco de. Jurisdição democrática: uma visão procedimentalista para a tutela substancial dos direitos. Disponível em <https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/ 2011/49007/jurisdicao_democratica _uma_goes.pdf> Acesso em 21 Out. 2017)

Nesse sentido, Ricardo Tinoco de Goes afima que a problemática se torna ainda mais evidente quando se tem em mente que a escolha dos julgadores dá-se a despeito da forma usual de sufrágio e participação popular, por meio de concurso público e, até mesmo, da nomeação com base no mérito pessoal do pretendente ao cargo, decorrente do exercício de um juízo subjetivo, fundado na discricionariedade administrativa, como ocorre nas indicações de membros de tribunais40.

Justamente por serem os direitos fundamentais obstáculos intransponíveis à deliberação política, como destacado no tópico anterior, a atividade jurisdicional deve servir para conciliar a proteção desses direitos com a democracia, sujeita essa atuação, naturalmente, aos devidos balizamentos para evitar a paulatina absorção de competências afetas a outras esferas de poder, cuja margem de liberdade é própria da representatividade que ostentam. Para Dirley da Cunha Jr., um dos maiores óbices ao reconhecimento do controle judicial de constitucionalidade das leis é justamente esta invocada falta de legitimidade democrática dos juízes, que não são eleitos nem representam, consequentemente, a vontade popular; por isso, para ele, “o controle judicial de constitucionalidade não está livre do perigo de converter uma vantagem democrática num eventual risco para a democracia.”41

Entretanto, a ausência de escolha popular do magistrado não pode significar, necessariamente, a falta de legitimidade para agir de forma a criar ou revelar o direito diante do caso concreto42.

É possível, como se propõe, superar a crise do majoritarismo democrático que perpassa a atividade jurisdicional concebendo uma atuação

40 GOES, Ricardo Tinoco de. Jurisdição democrática: uma visão procedimentalista para a tutela

substancial dos direitos. Disponível em <https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/ 2011/49007/jurisdicao_democratica _uma_goes.pdf> Acesso em 21 Out. 2017.

41 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle de Constitucionalidade - Teoria e Prática. 7. ed.

Salvador: Editora Juspodivm, 2014.

42 Pertine, nesse ponto, a observação feita por Carla Patrícia Lopes, no sentido de que, ainda

que os membros da magistratura não sejam escolhidos pelo sufrágio, há sim fundamento democrático nessa escolha: “[...] há países em que parcela da magistratura é composta por membros escolhidos pelo sufrágio; de outro lado, onde assim não se dá, como no caso brasileiro, os mecanismos de nomeação dos julgadores se fazem, sim, de modo democrático, sob pena de arrostar-se o fundamento maior do Estado Democrático de Direito” (LOPES, Carla Patrícia Frade Nogueira. O problema da Criação Judicial do Direito. Revista Universitas Jus no 7. Brasília: Centro Universitário de Brasília, 1998, p. 50)

que encontre legitimidade tanto no plano conteudístico da decisão judicial, especialmente pela óptica do substancialismo democrático, como no aspecto procedimental do exercício da jurisdição estatal, este último pensado a partir do estudo do procedimentalismo discursivo habermasiano43.

Com efeito, para o substancialismo, a proposta de transposição dessa crise parte do pressuposto de que a democracia assume valores morais, em especial que cada cidadão merece igual consideração e respeito como possuidores de direitos autônomos, de modo que a constituição é necessária para assegurar que até mesmo leis feitas democraticamente irão aderir a estes valores morais.

Segundo elucidam Cristina Foroni Consani e José Orlando Ribeiro Rosário44, a visão substancialista, que tem como um de seus principais defensores Dworkin, está amplamente focada no papel e justificação dos dispositivos constitucionais que protegem os direitos individuais, sustentada pelo controle de constitucionalidade das leis.

Adota uma concepção de democracia distinta da democracia majoritária, o que o permite defender que a constituição e os direitos fundamentais por ela incorporados são passíveis de interpretação por meio de uma leitura moral, que poderá ser realizada tanto pelo povo e seus representantes, quanto pelo Poder Judiciário, embora seja este o ambiente mais adequado para a interpretação constitucional.

Para Dworkin, há um problema na concepção majoritária de democracia, segundo a qual o povo governa a si mesmo quando o maior número de pessoas possui o poder político fundamental, razão porque faz uso de uma concepção à qual chama de coparticipativa, em que a comunidade deve aceitar que precisa agir com igual respeito e consideração por todos os outros associados.

43 Essa é a proposta do Prof. Ricardo Tinoco de Goes, esposada no substancioso artigo

intitulado “Jurisdição democrática: uma visão procedimentalista para a tutela substancial dos direitos.” (GOES, Ricardo Tinoco de. Jurisdição democrática: uma visão procedimentalista para a tutela substancial dos direitos. Disponível em <https://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/ 2011/49007/jurisdicao_democratica _uma_goes.pdf> Acesso em 21 Out. 2017)

44 CONSANI, Cristina Foroni; ROSÁRIO, José Orlando Ribeiro. Jurisdição constitucional e

democracia: as divergências entre Dworkin e Habermas. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/jurisdicao_constitucional_e_democracia.pdf>. Acesso em 7 Out. 2017.

Nessa circunstância, a legitimidade é definida pelo respeito e segurança oferecidos pelas instituições governamentais à dignidade humana e aos seus princípios políticos relativos ao valor intrínseco da vida humana e da responsabilidade pessoal.45

A partir da definição da democracia como uma concepção coparticipativa, segundo a qual o respeito e a preservação de direitos e liberdades individuais são colocados como um limite ao autogoverno popular, é que Dworkin sustenta que a melhor forma de interpretar a constituição como aquela realizada por meio de uma leitura moral, partindo do pressuposto que em um ordenamento jurídico não existem apenas regras claras, mas também princípios que podem ser demasiadamente abstratos, a serem objeto de interpretação no momento de sua aplicação.

Essa interpretação, ao tempo em que ocorre base numa leitura moral da Constituição, é realizada de forma construtiva e restringida tanto pela história quanto pelo ideal político da integridade, compreendido como um princípio por meio do qual é possível cobrar do Estado e das instituições políticas e jurídicas uma ação coerente pautada em normas e princípios.

Dworkin aposta, portanto, que um judiciário independente é capaz, pela justa construção e efetivação da lei constitucional, de cumprir seguramente certas condições racionais para a identificação do indivíduo com sua agência legislativa ou com sua comunidade política e que se a discussão pública de questões de justiça e de moralidade fossem deliberadas pelo Legislativo, ao

45 A respeito dos referidos princípios, esclarecem Cristina Foroni Consani e José Orlando

Ribeiro Rosário: “A conciliação entre os ideais do constitucionalismo (direitos) e democracia (autogoverno do povo) é feita por meio da tentativa de compatibilização entre os dois conceitos clássicos de liberdade definidos por Berlin (2002, p. 226-272): a liberdade negativa e a liberdade positiva. A ligação entre ambos os conceitos é feita pelo princípio da responsabilidade. Dworkin (2006) considera que a dignidade humana possui dois princípios políticos: a) o valor intrínseco da vida humana, segundo o qual toda vida humana tem uma espécie de valor objetivo; b) a responsabilidade pessoal, de acordo com o qual cada pessoa é responsável pela realização do sucesso de sua própria vida (princípio que suporta os direitos liberais tradicionais – liberdade de expressão, consciência, atividade política, religião, etc.). É a este segundo princípio, o da responsabilidade pessoal, que ele se refere para fazer a conexão entre os conceitos negativo e positivo de liberdade (DWORKIN, 2006, p. 09-10).” CONSANI, Cristina Foroni; ROSÁRIO, José Orlando Ribeiro. Jurisdição constitucional e democracia: as divergências entre Dworkin e Habermas. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/jurisdicao_constitucional_e_democracia.pdf>. Acesso em 7 Out. 2017.

invés de pelo Judiciário, não ganharia em qualidade e em mobilização dos cidadãos46.

Para os procedimentalistas, entretato, a tomada de decisões democráticas deve estar aberta para todos os cidadãos e para todos os pontos de vista e, ainda, desde que as minorias estejam devidamente representadas, deve-se decidir por meio dos procedimentos democráticos as questões controversas sobre direitos.

Entre os procedimentalistas, figura com proeminência John Hart Ely, autor de “Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review” a respeito de uma jurisdição constitucional democrática. Embora sua concepção de democracia não difira da democracia representativa liberal, assume o processo político como um “mercado político” no qual atores privados, movidos pelo auto-interesse e atuando estrategicamente, competem entre si pela capacidade de influenciar os representantes dos poderes Legislativo e Executivo, a fim de obter os resultados desejados ou de negociá-los em termos vantajosos.

Assim, para ele, o processo político pouco tem a oferecer para reforçar a democracia representativa, seja porque, não propicia nenhum tipo de integração comunitária mais profunda, como destacou Dworkin, seja porque não proporciona os meios para uma formação racional da opinião e da vontade política, como demonstrará Habermas.

Este autor, por seu turno, na sua obra “Faktizität und Geltung”, traduzida como “Direito e Democracia: entre facticidade e validade”, embora adote uma perspectiva procedimentalista, admite que as cortes empregam, invarialmente, julgamentos substantivos no exercício de sua atividade.

Trata Habermas sobre a relação entre direito e democracia a partir de um modelo procedimental do direito e da política, debatendo sobre a fundamentação legítima do direito a partir de sua gênese no processo democrático e a relação entre os poderes do Estado, o que importa na

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Nesse sentido: CONSANI, Cristina Foroni; ROSÁRIO, José Orlando Ribeiro. Jurisdição constitucional e democracia: as divergências entre Dworkin e Habermas. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/jurisdicao_constitucional_e_democracia.pdf>. Acesso em 7 Out. 2017.

discussão a respeito da legitimidade das cortes constitucionais para exercer o controle de constitucionalidade.

Segundo Habermas, a legitimidade do direito, em uma época pós- metafísica, só pode ser alcançada se o direito for produzido por meio de um procedimento democrático que abrigue tanto a soberania popular quanto preserve os direitos fundamentais dos cidadãos, de sorte que só pode resultar de consenso não coercitivo e racional entre indivíduos autônomos47.

Contudo, há em Habermas a compreensão de que, quando se trata da fundamentação de normas, apenas o legislador político tem o poder ilimitado de lançar mão de argumentos normativos, de maneira que os tribunais não podem dispor arbitrariamente dos argumentos enfeixados nas normas legais, embora, indiscutivelmrnte, façam uso desses argumentos na aplicação do discurso jurídico a casos concretos, objetivando a preservação da coerência do sistema jurídico em seu todo48.

Nesse contexto, emerge com acertamento, entre os extremos dos substancialistas e os procedimentalistas, a perspectiva de compreensão da legitimação democrática da jurisdição para “para além de Habermas”, proposta por Ricardo Tinoco de Goes49.

47 A respeito desta autonomia, elucidativas as condiderações de Cristina Foroni Consani e José

Orlando Ribeiro Rosário: “Os direitos imprescindíveis para que os cidadãos participem do processo democrático em igualdade de condições devem estar contidos, de modo abstrato, no sistema de direitos. Em primeiro lugar, assegura-se a autonomia privada a partir de três categorias de direitos, a saber: a) direitos a iguais liberdades subjetivas de ação; b) direitos que garantam o status de um membro igual e autônomo da comunidade jurídica; c) direitos que afirmem a possibilidade de postulação judicial. Em segundo lugar, assegura-se a autonomia pública conferindo-se (d) direitos de igual participação em processos de formação da opinião e da vontade e de criação do direito legítimo. Por fim, os direitos de autonomia privada e pública implicam (e) “direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento” (HABERMAS, 1997, v.1 , p. 159-160), em condições iguais dos direitos elencados acima.” (CONSANI, Cristina Foroni; ROSÁRIO, José Orlando Ribeiro. Jurisdição constitucional e democracia: as divergências entre Dworkin e Habermas. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/jurisdicao_constitucional_e_democracia.pdf>. Acesso em 7 Out. 2017).

48CONSANI, Cristina Foroni; ROSÁRIO, José Orlando Ribeiro. Jurisdição constitucional e

democracia: as divergências entre Dworkin e Habermas. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/jurisdicao_constitucional_e_democracia.pdf>. Acesso em 7 Out. 2017

49 GOES, Ricardo Tinoco de. Democracia deliberativa e jurisdição: a legitimidade da decisão

Reconhece o mencionado autor que a Jurisdição assume um papel reconhecidamente político, na medida em que as decisões produzidas se dirigem à tutela de direitos, inclusive fundamentais, a despeito da ausência de uma regulamentação legal específoca para o caso (adotando uma visão procedimentalista); bem como exige que essa deliberação judicial ocorra com prestígio à participação política, criando um universo discursivo no exercício desta jurisdição, “para além das tímidas fronteiras da relação processual e guiado por procedimentos que, institucionalizados, favoreçam a permanência do debate, sempre em busca de consensos” (no que adota uma postura procedimentalista).

Adotando essa perspectiva de que devam também os órgãos jurisdicionais valer-se de um procedimentalismo democrático para a promover a proteção substancial de direitos, procura-se fazer uma crítica à aplicação dos precedentes judiciais como conteúdo decisório pretensamente legitimador da decisão judicial, por meio de um projeto de defesa da segurança jurídica assegurado por meio da previsibilidade das decisões judiciais, elaboradas a partir de um dado parâmetro decisório, ou porque inspiraria uma maior confiança por parte do cidadão na atuação do Estado-juiz.