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2 O EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO CONSTITUCIONAL DE DIREITO BRASILEIRO

2.4 A JUSTIFICAÇÃO RACIONAL DAS DECISÕES JUDICIAIS NO PROCESSO EM CONTRADITÓRIO

73 É verdadeiro que teoria da argumentação jurídica e hermenêutica seguem sendo coisas

distintas, mas a matéria prima de que cuidam não deixa de aproximá-las em alguma medida para permitir a sua convivência.

A garantia da motivação das decisões judiciais possui natureza de direito fundamental do jurisdicionado, inserido na redação do art. 93, IX, da Constituição Federal74 e reproduzido no art. 11 do Código de Processo Civil de 201575, também como consectário da garantia constitucional do devido processo legal e de manifestação do Estado de Direito, cominando pena de nulidade para as decisões judiciais carentes de fundamentação.

A necessidade de que as decisões judiciais sejam fundamentadas é inerente ao Estado Democrático de Direito, pois se apresenta como uma garantia contra o arbítrio e ao devido princípio do devido processo legal, pois o processo justo não se compatibiliza com a desmedida discricionariedade jurisdicional, ou que não seja passível de controle por meio de racionalidade das decisões proferidas76

.

Além disso, se, por um lado, a Constituição exige dos juízes que fundamentem as suas decisões, por outro lado a Constituição confere aos jurisdicionados um direito à fundamentação; também não se trata de um direito a uma fundamentação qualquer, mas de um direito fundamental a uma fundamentação adequada ou legítima.

Ao contrário, uma fundamentação arbitrária, discricionária, subjetiva, solipsista, que se apresente escorada em meras convicções pessoais ou em posições pré-concebidas, por vezes submetida a justificativas meta-jurídicas de ordem ideológica, não se revela compatível com o estado democrático de direito e com o devido processo legal, nem com os princípios do contraditório substancial, segundo o qual as partes devem ter o poder de influenciar o

74 “Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o

Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

[...] IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.”

75

“Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.”

76 CUNHA, Rodrigo da. O dever de fundamentação adequada das decisões judiciais.

Disponível em <http://meusitejuridico.com.br/2017/04/15/o-dever-de-fundamentacao-adequada- das-decisoes-judiciais/> Acessado em: 3 mai. 2017.

resultado do processo, devendo os seus argumentos devem ser levados em consideração, impedindo-se, inclusive, as “decisões surpresa”77.

Também não se revela consentâneo com os princípios da boa-fé objetiva e da lealdade do magistrado com os demais sujeitos do processo e com a própria sociedade, princípio que exige do julgador que este não surpreenda o jurisdicionado com um discurso alheio à racionalidade e aos argumentos previamente submetidos ao debate no bojo do processo78.

Salutar ainda que a fundamentação das decisões judiciais atende ao princípio processual da cooperação, segundo o qual o magistrado tem o dever de esclarecer os seus pronunciamentos e de consultar as partes antes de resolver questões de fato ou de direito.

A fundamentação das decisões é, portanto, a garantia de que o juiz, ao decidir, irá fundamentar a sua decisão, utilizando os argumentos dos respectivos legitimados ao pronunciamento do órgão estatal, que serão diretamente afetados pela decisão.

Ricardo Tinoco de Goes também trata da efetividade do processo e da adequação da cognição do juiz, dizendo da irrestrita observância do dever de fundamentar as decisões judiciais, que segundo ele 79

[...] leva à atividade jurisdicional a certeza de que a cognição desenvolvida pelo magistrado servirá como elemento legitimador da decisão (NALANI, 2000, p. 111), sendo a sociedade a sua destinatária, bem como do convencimento jurisdicional nela estampado.

[...] Tem-se, pois, que motivando adequadamente a decisão estará o juiz expondo o seu convencimento, depurado pelo efetivo exercício da atividade cognitiva em todas as fases do procedimento.

77A vedação ao proferimento de decisão pelo juiz a respeito de fundamento não previamente

debatido pelas partes é objeto da enunciação do art. 9º do Código de Processo Civil de 2015: “Art. 9º. Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.”

78

Dispõe o art. 10 do CPC/15: “Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”

79 GOES, Ricardo Tinoco de. Efetividade do processo e cognição adequada. São Paulo: MP

A importância de que o magistrado confira legitimidade à sua atuação por meio da justificação é ainda maior quando se tem em vista que o convencimento judicial normalmente está fundado em um juízo de verossimilhança ou na ideia da “verdade possível” processual.

Em um modelo constitucional de processo, o contraditório é uma garantia fundamental das partes de participar na construção da decisão e de exercer o controle da fundamentação das decisões, visto que o juiz deve motivar as decisões através de argumentos jurídicos debatidos pelas partes para que a decisão seja aceitável e racional.

É a partir da relação entre Constituição e processo que se pode verificar a aproximação entre os princípios do contraditório e da fundamentação das decisões, aliados à possibilidade de ampla argumentação e da garantia de imparcialidade do julgador. O contraditório que, para Elio Fazzalari, compreende a própria definição de processo, significa o espaço argumentativo em que às partes, em simétrica paridade, será garantida a participação na construção da decisão80.

Nesse sentido, a linguagem do Juiz nos autos não é imune ao contraditório; não se trata aqui do contraditório horizontal, que se estabelece entre as partes na igualda de situacao processual, mas do contraditório vertical, resultante da interlocução do Juiz com as próprias partes, especialmente com o vencido, ao qual deve-se dar razões bastantes para a aceitação da decisão que contraria seus interesses.

Há ainda que se dizer sobre a direção vertical da enunciação do Juiz para com os julgadores de instância superior, que, devido ao duplo grau de jurisdição e à necessária uniformização da aplicação da jurisprudência, devem vir a ser destinatários da mensagem do juiz. Pertine, nesse contexto, destacar o escólio de Sidnei Agostinho Beneti, que muito bem descreve a respeito da linguagem processual pela dicção do magistrado, na produção do que diz ser a

80 De outro modo, a teoria instrumentalista do processo, visivelmente influenciada pela Teoria

de Bülow, que concebia o processo a partir da relação jurídica entre as partes e o juiz, era definido como um instrumento da jurisdição que tinha como objetivo realizar os escopos metajurídicos e a pacificação social; reafirmava o solipsismo judicial e admitia que o juiz fosse o único intérprete no processo, podendo fundamentar sua decisão em argumentos metajurídicos.

“obra de engenharia jurídico-psicossocial-artística, que é a decisão judiciária”81:

A linguagem do Juiz é técnica e participa da linguagem processual, e esta é a linguagem do contraditório. Toda linguagem visa à comunicação de uma mensagem de um ser a outro. [...] A linguagem processual é mais complexa, é a linguagem da polêmica, porque necessariamente contém a contradiççao dialética. Cada vez que o Advogado se manifesta nos autos, procupa ele transmitir sua mensagem, mas não para nessa transmissão positiva, pois, devido ao contraditório ínsito à lide, acrescenta à comunicação positiva outro elemento da maior importância, que é a mensagem negativa, de destruição da mensagem alheia.

A atenção ao contraditório, a análise de cada argumento posto no debate judiciário, a explicitação esclarecedora dos fundamentos da decisão, são indispensáveis na manifestação do Juiz ao exercer a parcela do poder político que lhe foi entregue pela sociedade.

Sobre essa mesma arte, enuncia Sidnei Beneti sobre a preocupação com a interlocução com os sujeitos processuais e com a sociedade que deve ter o julgador82:

Daí a preocupação que deve nortear o Juiz ao proferir a

decisão – sentença ou despacho – de comunicar-se bem com

o maior número possível de pessoas que virão a socorrer-lhe o decidido, formando legião anônima que venha a suprir a solidão do ato judicial de sentimento contido na sentença. Deve o Juiz preocupar-se com os termos da decisão, colocando-se na situação de quem os produz para serem lidos pelas partes, pelos Advogados, pela intelectualidade jurídica universitária, ou, ainda, para serem publicados nos jornais de grande circulação, divulgados pela televisão e pelo rádio, entendidos pela grande massa do povo, via sentimento inato de Justiça. Produzir a decisão imaginando que poderá, com seus familiares e círculo de parentes e amigos, leigos ou técnicos, ouvir-lhe sem constrangimento a leitura em telejornal de grande audiência, ou ver-lhe os termos estampados para todos os tempos nas folhas dos jornais e revistas. Se, ao assinar a decisão, o Juiz puder imaginar que atingiu esse objetivo, aí, sim, estará diante da boa decisão, do grande escrito, ainda que humilde e destinado somente às mudas sombras dos arquivos judiciários, coroado apenas do orgulho do dever cumprido.

81 BENETTI, Sidnei Agostinho. Da conduta do juiz. São Paulo: Saraiva, 1997.

82

Não à toa o §1º do art. 489 do CPC83, ao concretizar o comando constitucional de todas as fundamentação das decisões judiciais, exemplifica em rol extenso situações nas quais não se consideram fundamentadas, exigindo que a fundamentação esposada seja racional, lógica, previsível, acessível e controlável84

.

É importante destacar, oportunamente, que fundamentação sucinta ou objetiva não se confunde com falta de fundamentação ou com fundamentação deficiente, sendo possível que o juiz desenvolva uma fundamentação objetiva e ao mesmo tempo analítica, o que será legítimo; o contrário também acontece, de se ter uma decisão de conteúdo extenso, mas carente de fundamentação, eis que a sua “retórica” apresenta-se permeada por precedentes judiciais desconectados com o caso, longos textos doutrinários, mas olvida-se do enfrentamento das alegações trazidas pelos sujeitos processuais e do material probatório.

A ampla argumentação é a garantia do tempo necessário para a efetiva construção de argumentos a serem utilizados pelas partes, no processo. A imparcialidade do juiz é definida a partir do desvencilhamento do seu

83

“Art. 489. [...]

§1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.”

84 Com o novo código processual, têm-se voltado a discutir se a fundamentação per

relationem ou referencial ou aliunde é compatível com o modelo de racionalidade e de aproximação entre a fundamentação e argumentação, estabelecido pelo §1º do art. 489 do CPC, como forma de concretizar a Constituição; para Rodrigo da Cunha, não se deve admitir essa forma de fundamentar as decisões, especialmente quando se trata de simples menção ou de mecânica reprodução de pareceres do Ministério Público ou de decisões judiciais anteriores, sem qualquer atenção às particularidades do caso concreto.

subjetivismo, que decorre dos escopos metajurídicos do processo85.

Se o juiz fundamenta sua decisão em argumentos não-jurídicos, ou em argumentos não utilizados pelas partes, é patente a violação do princípio da fundamentação da decisão e, conseqüentemente do contraditório, visto que as partes não participaram na construção do processo. Estará infringida também a necessidade da ampla argumentação, já que o tempo processual foi insuficiente para que as partes construíssem de forma efetiva a argumentação a ser utilizada na preparação de sua ampla defesa.

Ainda, terá o magistrado violado o seu dever de ser o terceiro imparcial no processo e o de colaborar com as partes para o resultado justo e a promoção de uma tutela efetiva de direitos, uma vez que, ao decidir com base em argumentos pessoais, o juiz passa a ser o único intérprete do direito, fechando as possibilidades interpretativas e interativas da sociedade e, principalmente, das partes do processo, reforçando uma indevida carga subjetiva da decisão como processo de escolha.

Logo, referidos princípios constituem uma base principiológica harmônica e são indissociáveis. É através da fundamentação da decisão que as partes poderão fiscalizar o respeitou ao contraditório pelo magistrado condutor do processo, a ampla argumentação e analítica fundamentação que deve empreender na motivação do ato decisório e se houve imparcialidade no curso do processo e no julgamento do conflito. É exatamente o respeito a esses princípios que indicará ser a decisão aceitável, racional e legítima.

Desume-se, dessas reflexões, que a supressão ou violação do contraditório efetivo enseja a violação de todos os demais princípios, pois a decisão será construída somente pelo juiz, fundamentada por argumentos desse único intérprete, solipsita, que não garantiu às partes a ampla argumentação.

Sobre a perspectiva de um contraditório substancial, a fundamentação

85 Sidnei Agostinho Beneti, fazendo alusão ao mito da caverna de platão, considera que,

através da fundamentação, a “decisão [...] precisa satisfazer à consciência do próprio Juiz, único ser capaz de intuir o que as sombras da realidade exterior, projetadas atraves dos autos, vieram a significar para o seu senso de Justiça, bem como tem de satisfazer objetivamente à consciência de quem vier a ler os motivos racionais em que se tenha explicitado Inevitável a menor relevância, no primeiro momento de consciência, dos postulados teóricos que em tantos pontos fornecem arrimo ao sistema jurídico.”

tem implicação substancial e não meramente formal. Em virtude disso, não pode o juiz, embora seja bastante comum essa situação, ao, por exemplo, julgar procedente um pedido, fundamentar a sua decisão com base apenas, ou ao menos predominantemente, nos argumentos e provas produzidos pelo auto; revela-se imprescindível que indique também por que as alegações e provas trazidas pela parte vencida não lhe bastaram à formação do convencimento86.

Dessa forma, não basta que à parte seja dada a oportunidade de manifestar-se nos autos e de trazer as provas cuja produção lhe incumbe; é necessário que sua manifestação, seus argumentos, as provas que produziu sejam efetivamente analisados e valorados pelo magistrado.

Além disso, o julgador deve expor na sua decisão os motivos por que tais argumentos e provas não o convenceram, inclusive para viabilizar que a parte vencida, acaso não convencida, possa se insurgir contra a decisão, lançar mão dos meios de controle cabíveis, especialmente dos recursos às instâncias superiores.

Retomando o que foi mencionado na abertura deste capítulo, a respeito das “vocações” do ato decisório, é sabido que a exigência da motivação das decisões judiciais tem dupla função87: primeiramente, uma função endoprocessual, ao permitir que, conhecendo as razões que formaram o convencimento do magistrado, possam saber se foi feita uma análise apurada da causa, a fim de controlar a decisão por meio dos recursos cabíveis, bem como para que os juízes de hierarquia superior tenham subsídios para reformar ou manter essa decisão; a outra função, sobre a qual não devemos descurar,

86 Nesse sentido: DIDIER JR., Fredie. Sobre a fundamentação da decisão judicial.

Disponível em: <http://www.frediedidier.com.br/wp-content/uploads/2012/02/sobre-a-fundamen tacao-da-decisao-judicial.pdf> Acessado em 8 Nov. 2017.

87 Segundo a filosofia analítica do direito da Escola de Gênova (Giovanni Tarello, Riccardo

Guastini e Pierluigi Chiassoni), a intepretação é um ato pelo qual se descreve, adscreve e/ou cria significados textuais e extratextuais através de métodos, argumentos e teorias estruturadas discursivamente. O intérprete poderá identificar um significado (descrição), identificar dois ou mais significados e decidir por um deles (adscrição) ou então poderá identificar um ou mais significados e decidir por um novo (criação, sic., reconstrução, como se verá), estruturando argumentativamente suas escolhas e valorações no discurso de justificação, que lhe confere racionalidade. A justificação, assim, é externalização da interpretação de forma estruturada, permitindo o controle intersubjetivo das razões utilizadas pelo intérprete em relação às escolhas realizadas. Disponível em: <http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/ documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_200 6/RPro_n.259.01.PDF> Acessado em: 5 Abr. 2017.

corresponde à vocação exoprocessual ou extraprocessual, que viabiliza o controle da decisão do magistrado pela via difusa da democracia participativa, exercida pelo povo (em cujo nome a decisão dever ser pronunciada no contexto democrático)88.

2.5 A CRIATIVIDADE DECISÓRIA JUDICIAL NO SISTEMA DE CLÁSULAS