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3 O MODELO DE PRECEDENTES BRASILEIRO

3.3 OS INSTRUMENTOS PROCESSUAIS DE APLICAÇÃO DOS PRECEDENTES NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE

Há alguns anos o Brasil vem anunciando um novo Direito Processual, que coloca em destaque a atuação paradigmática dos órgãos jurisdicionais, notadamente dos tribunais superiores, objetivando maior segurança jurídica, coerência, celeridade e isonomia as demandas de massa, as causas repetitivas, ou melhor, as causas cuja relevância ultrapassa os interesses subjetivos das partes.

É equivocado pensar que os precedentes judiciais no Brasil surgiram apenas após a promulgação da Emenda Constitucional nº. 45/2004, que introduziu em nosso ordenamento os enunciados de súmula vinculante, editadas exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal.

121 CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade,

mudança e transição de posições processuais estáveis. Salvador: Editora Juspodivm, 2013.

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“Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.

A observância das decisões proferidas pelos tribunais superiores para a prolação das casos que a sucederem remonta ao ano de 1990, quando a Lei n. 8.038 permitiu ao relator, no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de Justiça, decidir monocraticamente o pedido ou o recurso que tenha perdido o objeto, bem como negar seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível ou improcedente, ou ainda, que contrariar, nas questões predominantemente de direito, Súmula do respectivo Tribunal123.

Além da legislação apontada, a Emenda Constitucional nº. 03/1993, que acrescentou o § 2º ao art. 102 da Constituição Federal e atribuiu efeito vinculante à decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em Ação Declaratória de Constitucionalidade, pode ser considerada marco normativo da aplicação dos precedentes judiciais no Brasil.

No Código de Processo Civil de 1973, diversos dispositivos aprovados ao longo dos anos demonstram que a teoria dos precedentes também ganhou corpo no âmbito processual, a exemplo do antigo art. 285-A; do parágrafo único do art. 481; do art. 557, a respeito dos poderes do Relator para negar seguimento liminar aos recursos manifestamente improcedentes ou contrários à súmula ou jurisprudência dos tribunais superiores; art. 475, § 3º; e, ainda, o art. 518, § 1º.

No entanto, a Emenda Constitucional nº. 45/2004, conhecida com a emenda da Reforma do Judiciário, é o marco de maior referência no estudo dos precedentes judiciais, eis que inseriu em nosso ordenamento jurídic as súmulas vinculantes e a repercussão geral nas questões submetidas a recurso extraordinário (art. 102, § 3º, da Constituição Federal), que estará presente, por exemplo, quando o recurso extraordinário impugnar decisão contrária à súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal (art. 543-A, § 3º, CPC).

Logo, a gradativa ênfase ao caráter paradigmático das decisões dos tribunais superiores nos confere a noção da importância do tema, sobretudo

123 Lei n. 8.038/90. “Art. 38. O Relator, no Supremo Tribunal Federal ou no Superior Tribunal de

Justiça, decidirá o pedido ou o recurso que haja perdido seu objeto, bem como negará seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível ou, improcedente ou ainda, que contrariar, nas questões predominantemente de direito, Súmula do respectivo Tribunal.” Este artigo foi revogado pela Lei n º 13.105, de 2015.

quando pensamos nos precedentes como instrumentos que podem conferir efetividade aos princípios elencados no texto constitucional, como o da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI), da isonomia (art. 5º, caput) e da motivação das decisões judiciais (art. 93, IX).

O atual Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015), como destacado em momento anterior deste trabalho, consolida o retorno do direito processual à teoria do direito ao abandonar a visão tecnicista do processo como alheio às mudanças culturais e filosóficas que afetaram a nossa ciência, convocando a comunidade jurídica um maior debate quanto à interpretação e aplicação do direito (arts. 489, §§ 1º e 2º, e 926 do CPC/2015) e a respeito do modelo de precedentes normativos formalmente vinculantes (arts. 489, § 1º, V e VI, 926 e 927 do CPC/2015).

A leitura do código processual civil de 2015 demonstrará, como prova do que aqui se afirma, a incorporação de terminologia hermenêutica de Ronald Dworkin relativa à integridade do direito, ao dispor que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (art. 926, caput).

Também a terminologia analítica de Robert Alexy está presente no contexto filosófico do código, quando determinou-se que “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência” (art. 8º) e que “no caso de colisão entre normas (considerando as normas-princípios), o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão” (art. 489, § 2º)124.

O Código de Processo Civil de 2015 exige, assim, uma compreensão operacional na aplicação do direito, ou seja, toda e qualquer decisão deve levar em consideração a convivência harmônica entre os planos infraconstitucional e

124 DONIZETTI, Elpídio. A força dos precedentes no novo código de processo civil.

Disponível em <http://www.revistas.unifacs.br/index.php/redu/article/view File/3446/2472> Acessado em: 3 abr. 2017.

constitucional, não mais se coadunando com interpretações arbitrárias, solipsistas e descontextualizadas da ordem jurídica, compromete-se, ao contrário, com a solução realista-moderada e responsável da interpretação, como revelam os dispositivos que dão conta da eliminação do “livre” convencimento judicial (art. 371) a partir da imprescindibilidade de uma fundamentação adequada (art. 489, § 1º), da justificação interna e externa do ato decisório, com exigências da utilização da ponderação como método de solução da colisão entre normas (art. 489, § 2º) e dos deveres de estabilidade, coerência e integridade (art. 926, caput).

Além de tratar das súmulas vinculantes e do efeito vinculante das ações diretas de inconstitucionalidade e declaratórias de constitucionalidade (que possuem estatura constitucional), o novo códex previu outros mecanismos infraconstitucionais com o objetivo de uniformização e estabilização da jurisprudência nacional, qual sejam, o julgamento dos recursos repetitivos; o incidente de assunção de competência; o incidente de resolução de demandas repetitivas; e, ainda, a reclamação, destacada de um imperativo constitucional.

O sistema de precedentes, portanto, encontrando alicerce nos ideais de segurança jurídica, a concebe com a necessidade de desvencilhamento, tanto quanto possível, da decisão em relação às idiossincrasias de seu autor, deduzindo-se a segurança da previsibilidade que se possa conferir à sociedade civil, com razoável probabilidade de acerto, de que forma e em que sentido será prolatada a norma jurídica individual produzida no e pelo Poder Judiciário.

Fato é, assim, que se verificou uma verdadeira “virada epistemológica” com as mudanças elementares nos fundamentos do direito processual civil, tendo em vista a inserção sistematizada de diversos dispositivos jurídicos voltados para coletivização e democratização do processo judicial, a exemplo da ampliação da atuação do amicus curiae, como também o estabelecimento do Incidente de resolução de demandas repetitivas, apenas para exemplificar.

Mas não apenas do ponto de vista epistemológico foi reformado o processo civil, como também metodológico, no que se refere ao procedimento,

sendo estabelecido um procedimento comum único, ampliando, por exemplo, os poderes do juiz para adaptar o procedimento nas hipóteses do art. 139, VI; contemplando a previsão do negócio jurídico processual (art. 190); a inserção da mediação/conciliação como etapa anterior à defesa do réu; a possibilidade de se conceder a antecipação de tutela antecedente ainda que sem formulação do pedido principal (art. 303)

Nesse contexto, é indeclinável que o processo decisório passa a ser centrado menos na condução solipsista do julgador e muito mais na atividade colaborativa dos sujeitos processuais, atuantes numa estrutura dialógica decisória.

Revela-se, assim, uma perspectiva para a construção teórica da decisão judicial sob o aspecto referente à argumentação, elaborada a partir dos discursos das partes do processo, afastando-se, naturalmente, de uma lógica meramente subsuntiva do caso à lei e aos precedentes judiciais, devendo-se estar atento às particularidades do caso concreto e da apreciação/conformação dialética das teses construídas pelas partes na defesa dos seus interesses.

Ademais, essa “virada” passa a exigir uma fundamentação qualitativa da decisão judicial por parte do julgador, compreensão destacada inclusive da leitura do art. 489 do Código Processual Civil, sob pena de invalidade do ato decisório.

A exigência de uma fundamentação robusta se opera não somente no que diz respeito ao enfrentamento das teses jurídicas trazidas ao processo, bem como no que diz respeito à aplicação dos precedentes judiciais, revelando o magistrado que, a par das circunstâncias de fato reveladas na hipótese, há de aplicar ou não a mesma ratio decisória de julgado anterior, por tais ou quais motivos.

É nesse cenário que se exige, senão uma nova teoria da decisão judicial, ao menos uma reconstrução teórica do que se pensou para o contexto processual anterior, que será proposta mais adiante neste trabalho.

Sobre o dever de fundamentação da decisão, a insuficiência ou generalidade do que dispunham os arts. 165 e 458, II, do CPC/73 - embora

tenha ganhado reforço com a previsão constitucional do art. 93, IX, em 1988, que contribuiu para evitar decisões judiciais arbitrárias, sem fundamentação jurídica ou com razões de decidir obscuras - ensejou uma preocupação do legislador do Código de 2015 com o verdadeiro enfrentamento das teses jurídicas invocadas pelas partes e, com igual destaque, no sentido de vincular o julgador ou colegiado a um sistema de decisões judiciais com fundamentação estruturada, a que chamamos “precedentes judiciais”.

Dessa forma, o novel código estabelece a necessidade de uma fundamentação qualificada, exigindo do julgador uma justificação acerca da sua convicção e das questões jurídicas que foram fundamentais para a solução conferida ao caso; exige, também, a adequada aplicação do sistema de precedentes, determinando o dever de justificar o critério de distinção como também evidenciar de forma inequívoca a ratio decidendi do precedente aplicável à hipótese.

Um outro aspecto da maior relevância é que a decisão judicial passa a ser considerada não apenas pela sua conclusão, constante da parte dispositiva, mas a partir da conjugação de todos os seus elementos, estabelecendo o art. 489, §3º do CPC/15 um eficiente critério de justificação e validade das decisões judiciais a partir da estruturação e adequação de seus fundamentos.

O que aqui se defende é que a eficácia normativa dessas inovações depende, em grande medida, da superação de uma cultura jurídica voltada para a criação solitária da decisão judicial pelo julgador, tornando-se necessário refletir, inclusive, sobre a formulação de uma nova teoria da jurisdição e sobre o próprio conceito de interpretação e produção das normas, proposta pelo positivismo kelseniano.

A preocupação reside, portanto, em última instância, em reforçar o papel essencial da jurisdição com a promoção da pacificação social, revelando a justiça para o caso concreto a partir da argumentação, como produto de uma dialogicidade processual.

4 CONCLUSÃO: UMA PROPOSTA DE EXERCÍCIO DEMOCRÁTICO DA