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1. REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS: SOBRE O PENSAMENTO DE

1.3 A LEITURA E A ESCRITA: DIÁLOGOS COM CHARTIER

O interesse de Roger Chartier pela trajetória da leitura e da escrita como práticas sociais origina-se justamente da aproximação entre os objetos da História e da Literatura: num diálogo estabelecido com Carlos Ginzburg, o historiador francês esclarece que conhecimento e relato, prova e retórica, saber crítico e narração acham-se associados, e não opostos (CHARTIER, 2010, p. 16). Nesse sentido, as obras literárias surgem para Chartier como um elemento sui generis para pensar as representações e práticas sociais comuns, não apenas fundamentado no construto ficcional, da trama, mas, principalmente, a partir da materialidade

do objeto, da grafia das palavras, enfim, dos ―processos que dão existência à escrita em suas diversas formas, públicas ou privadas, efêmeras ou duradouras‖ (CHARTIER, 2007, p. 16). Nesse sentido, a recriação dos textos literários e da cultura literária por meio do livro didático de Ensino Médio passa por um processo de ressignificação à medida que suas inscrições num novo objeto cultural, com objetivos específicos como o livro didático, impõe novos modelos de leitura, portanto, outros protocolos de leitura, que, por sua vez, também podem ser rejeitados, adaptados ou redefinidos pelo próprio leitor – no caso, professores e alunos. O próprio Chartier explica que, a partir de um determinado ponto de sua pesquisa, concentrou-se em três objetos: a publicação de textos escritos à mão já na era do texto impresso; as relações entre leitura e escrita; além das tensões entre os poderes de censura e de transgressão da escrita. Nos três casos, os objetivos fundamentam-se nas ―mutações da cultura escrita no nosso presente, cujas transformações, ao longo dos séculos, modificaram os suportes do escrito, as técnicas de sua reprodução e as maneiras de ler‖ (2011a, p. 40). Desde o século XIX, as práticas e os hábitos de leitura e escrita definem as condições de acesso aos conhecimentos acumulados em cada cultura. Logo, parece óbvio julgar que o conhecimento sempre se serviu dessa técnica. Mas não se pode esquecer que a leitura e a escrita nem sempre constituíram a base do processo comunicativo: a oralidade já exerceu papel fundamental na transmissão dos saberes.

A substituição da centralidade da oralidade pela centralidade da leitura e da escrita parece um movimento ―natural‖ porque as formas de ingresso ao conhecimento são historicamente fluidas e mutáveis. A própria leitura passou e continua passando por esse processo evolutivo – cabe aqui um aparte em relação ao termo ―evolutivo‖, pois mesmo não sendo o mais apropriado, dada sua carga positivista, o sentido por nós pretendido não pressupõe que os modos atuais de leitura sejam uma versão melhorada dos modos do passado. Além do que o surgimento de novos modos de leitura não presume, obrigatoriamente, o desaparecimento dos anteriores: muitos gestos e comportamentos ultrapassam a barreira temporal e coexistem com novas práticas e maneiras de ler atuais.

Importa destacar que se o distanciamento histórico, muitas vezes, encobre formas, gestos, espaços, relações, hábitos, rituais, é fundamental recuperá-los a fim de que possamos, pela exemplificação, compreender e encarar as mudanças que ora se impõem e as que estão por vir. Principalmente, no que se refere à leitura, dada a sua susceptibilidade às condições

históricas, sociais e materiais. Desse modo, o fato de lidarmos com um objeto com o qual estamos familiarizados no seio de nossas práticas profissionais, como ocorre com nossa relação com o livro didático, ajuda-nos a recuperar de maneira complexa as formas, gestos, espaços, relações, hábitos e rituais que atravessam seus usos no seio de comunidades escolares brasileiras.

1.3.1 A invenção da leitura silenciosa

Tendo em vista que em nossa pesquisa discutiremos, além das representações da mulher e do feminino no livro didático de língua portuguesa para o Ensino Médio, as apropriações dessas representações por meio da leitura individual ou partilhada em sala, parece-nos necessário um breve excurso pela história da leitura no mundo ocidental, a partir da perspectiva de Roger Chartier, sobretudo para sublinharmos a atuação do leitor nesse processo.

A partir do século VI a. C., com a expansão das escolas, os gregos passaram a difundir, nessas instituições, o alfabeto importado dos fenícios, acrescido de cinco vogais. Entretanto, a leitura oral e coletiva continuava sendo a prática predominante na Grécia clássica, por diversas razões: em primeiro lugar, esse projeto de democratização e conquista da autonomia leitora ainda contrastava com a escassez de livros; em segundo, para os gregos, a escrita estava, de um lado, a serviço da oralidade, sobretudo, da literatura épica, de outro, destinava-se à conservação do texto. Sobre isso, Cavallo e Chartier (2002), na ―História da leitura no mundo ocidental‖, afirmam que ―a Grécia antiga teve nítida consciência de que a escrita fora ―inventada‖ para fixar os textos e trazê-los assim novamente à memória, na prática, para conservá-los‖ (p. 10).

Na mesma obra, Jesper Svenbro (2002), poeta e filólogo sueco, em texto subsequente ao de Cavallo e Chartier, destaca também a noção de incompletude da escrita, que, do ponto de vista grego, necessita da leitura para realizar-se plenamente. Nessa perspectiva,

[...] o escritor conta com a chegada de um leitor disposto a colocar sua voz a serviço do escrito com a finalidade de distribuir seu conteúdo aos passantes, aos ―ouvintes‖ do texto. Ele conta com um leitor que seguirá a coerção da letra. Ler é, pois, colocar sua própria voz à disposição do escrito [...] É ceder a voz pelo instante de uma leitura. Voz que o escrito logo torna sua, o que significa que a voz não pertence ao leitor durante a leitura (p. 49).

Além da leitura em voz alta ser a mais difundida, era, normalmente, representada em ilustrações como uma prática coletiva:

[...] Esses leitores não são solitários, em geral, aparecem em contextos representativos de entretenimento e de conversação, sinal de que a leitura era vista sobretudo como prática de vida em sociedade (ou no interior de uma associação). Embora conhecida, a leitura solitária era rara, pelo menos a julgar pelos poucos – aliás, muito poucos – testemunhos iconográficos ou literários que sobreviveram (CAVALLO; CHARTIER, 2002, p. 11).

Entretanto, apesar da predominância da leitura em voz alta, os autores não descartam a possibilidade de que a leitura silenciosa também já ocupasse espaço nessa sociedade. Isso implica investigar quem e por que utilizava essa outra forma de leitura tão distante dos ideais de uma cultura que valorizava o som das palavras e que via no ―silêncio o sinônimo do esquecimento‖ (SVENBRO, 2002, p. 53).

Jesper Svenbro (2002) supõe, a partir do artigo ―Silent Reading in Antiquity‖, de Bernard Knox, que certos gregos praticassem a leitura silenciosa, mas era uma prática restrita a um grupo limitado de leitores e, seguramente, desconhecida da maioria dos gregos. Svenbro destaca a figura de Heródoto como um importante responsável na disseminação da leitura silenciosa e comenta:

[...] No século V, um Heródoto precisou abandonar realmente a leitura em voz alta no transcorrer de seu trabalho de historiador e, já durante a segunda metade do século VI, com uma finalidade quase filológica, aqueles que se ocuparam do texto homérico sob os Pisistrátidas em Atenas – como fez o poeta Simônides – sem dúvida tiveram a oportunidade de desenvolver esta técnica. Técnica reservada a uma minoria, bem entendido, mas uma minoria importante, na qual se encontram certamente os poetas dramáticos (p. 56).

Dessa forma, ainda que se considere a atuação de Heródoto, além é claro de outros elementos que concorreram para a instituição da leitura silenciosa na Grécia clássica, o fato é que ela permanecia distante da maior parte dos leitores. Assim,

[...] ela permaneceu um fenômeno marginal, e praticada por profissionais da palavra escrita, mergulhados em leituras suficientemente vastas para favorecer a interiorização da voz leitora. Para o leitor médio, a maneira normal de ler permaneceu sendo a leitura em voz alta, como se fosse

impossível apagar a razão primeira da escrita grega: produzir som, e não representá-lo (SVENBRO, 2002, p. 66).

A despeito disso, importa ressaltar que a Grécia clássica deixou legados importantes: apresentou, ainda que numa configuração embrionária, a coexistência de diferentes práticas de leitura e fundou, dessa maneira, uma nova relação com o livro:

[...] na época helenística, mesmo que permaneçam formas de transmissão oral, o livro passa a desempenhar daí em diante um papel fundamental. Toda a literatura de época depende agora da escrita e do livro: a esses instrumentos são confiados a composição, a circulação e a conservação das obras [...] A filologia alexandrina5, em suma, impõe o conceito de que uma obra só existe se for escrita; obra é um texto escrito e de que podemos nos apropriar graças ao livro que a conserva [...] (CAVALLO; CHARTIER, 2002, p. 13-14).

Heranças que influenciaram diretamente, a partir dos séculos III-II a.C., as práticas de leitura de Roma: ―o uso do livro se expande e tal expansão se inscreve nas mudanças por que passa a sociedade romana. Porém, trata-se sobretudo de livros gregos [...] o próprio nascimento de uma literatura latina está ligado, nessa época, a esses modelos e a livros gregos‖ (CAVALLO; CHARTIER, 2002, p. 16). Contudo, Roma também ofereceu importantes contribuições e transformações nesse cenário, graças ao notável avanço da alfabetização e, por conseguinte, ao trânsito intenso da escrita em diferentes regiões e classes.

Essa crescente demanda exigia, naturalmente, novos espaços de leitura, novos textos e formatos. Nesse sentido, bibliotecas foram criadas, algumas, ampliadas; adequações dos textos ao novo público leitor, incluindo-se as mulheres; mas, especialmente, a produção e distribuição de um livro num formato diferente: o códex. Esse tipo de livro com páginas substitui o rolo a partir do século II d.C. e mostra-se mais apropriado ao novo público leitor e suas diferentes práticas leitoras. De acordo com Cavallo e Chartier (2002), ―o sucesso do códex – o livro ‗com páginas‘ – era assegurado por diversos fatores: antes de tudo um custo menor, visto que a escrita ocupava os dois lados do suporte‖ (p. 19), além, é claro, de

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A Biblioteca de Alexandria, modelar das grandes bibliotecas helenísticas, é a biblioteca ao mesmo tempo ―universal‖ e ―racional‖: universal, porque é destinada à conservação dos livros de todos os tempo e de todo o mundo conhecido, e racional, porque nela os próprios livros devem obedecer a uma ordem, entrar em um sistema de classificação [...] que permita organizá-los por autor, obra e conteúdo. Porém, essa ―universalidade‖ e ―racionalidade‖ dependiam diretamente da fixação escrita dos textos que podiam ser avaliados criticamente, recopiados, encerrados em um livro, classificados e dispostos junto com outros livros (CAVALLO; CHARTIER, 2002, p. 14).

proporcionar ao leitor uma liberdade maior em seus movimentos, interrupções na leitura e anotações.

A invenção do códex foi tão significativa para a história da leitura e da escrita no mundo ocidental que ele é considerado a principal conexão entre a leitura praticada na Antiguidade e a adotada a partir da Idade Média.

O Ocidente latino medieval realmente imprimiu grandes transformações nas relações estabelecidas com o livro e a leitura até então: a leitura do ócio literário ―foi substituída pela prática de leitura concentrada no interior das igrejas [...] geralmente limitadas às Sagradas Escrituras e a textos de edificação espiritual‖ (CAVALLO; CHARTIER, 2002, p. 20); mas, principalmente, a leitura em voz alta deu lugar à leitura silenciosa ou murmurada, pois ―os livros eram lidos sobretudo para conhecer Deus e para a salvação da alma‖ (CAVALLO; CHARTIER, 2002, p. 21).

Porém, mais do que uma transformação na modalidade, a leitura silenciosa configura-se uma revolução6 nas relações estabelecidas com o escrito que se possibilita ser:

[...] mais livre, mais secreta, totalmente interior. Ela [a leitura silenciosa] permite uma leitura rápida e ágil, que não desencaminhada nem pelas complexidades da organização da página, nem pelas múltiplas relações estabelecidas entre o discurso e as glosas, as citações e os comentários, os textos e os índices. Ela autoriza, também, utilizações diferenciadas do mesmo livro [...] (CAVALLO; CHARTIER, 2002, p. 28).

Assim, da mesma maneira que retomamos a perspectiva de Roger Chartier acerca da relação imbricada da História e da Literatura, entendemos que recuperar a história da leitura no mundo ocidental, à luz da abordagem não historicista de Chartier, justifica-se à medida que ele privilegia o papel da leitura individual ou partilhada no processo de apropriação das representações histórico-culturais; à medida que ele sublinha tanto a atuação do leitor na ―evolução‖ dos modos de leitura, quanto a interferência desses modos na constituição desse mesmo leitor. Trata-se, portanto, de um processo igualmente imbricado de transformações

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Os organizadores do livro História da leitura no mundo ocidental, Cavallo e Chartier, sem invalidá- la, mas advertindo para o caráter simplista desse tipo de categorização, explicam que posterior à primeira revolução da leitura – a passagem da leitura oralizada, para a leitura silenciosa – seguiram-se mais duas: a segunda identificada ao trânsito da leitura ―intensiva‖ para a leitura ―extensiva‖; e a terceira revolução referente à transmissão eletrônica dos textos, que impõe ao escrito uma nova materialidade e altera, portanto, o elo ―físico‖ com o leitor estabelecido pelo códex até então.

que caminharam juntas e cujo efeito incide tanto na leitura enquanto sistema, quanto nos modos de ler dos leitores.

A história da leitura é marcada por sua interação com o leitor. Se ela se adaptou, alterou-se ou moldou-se aos novos leitores, eles também foram transformados por ela. As convenções e hábitos tanto delineiam quanto são delineados pelas práticas de leitura. E, se ―os gestos mudam segundo os tempos e lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Novas atitudes são inventadas, outras se extinguem‖ (CHARTIER, 2009, p. 77) é porque o leitor negocia com o texto a perfeita medida entre reverenciar e subverter.

No que diz respeito ao livro didático contemporâneo, isso permite pensar que ainda que os protocolos de leitura, nele inscritos, objetivem, por exemplo, a pedagogização da literatura ou a perpetuação do cânone e de visões hegemônicas, não podemos perder de vista que a ―recepção e, portanto, a significação de um texto varia conforme as competências, convenções, usos e protocolos de leitura próprios a diferentes comunidades interpretativas (DALVI, 2010, p. 133).

1.3.2 Usos e apropriações

Para além da reconstituição histórica dos caminhos percorridos pela leitura e pela escrita feita até aqui, é necessário enfatizar questões fundamentais: primeiro, que as formas e as concepções de leitura variaram e continuam variando ao longo dos tempos: da leitura oral e coletiva à leitura silenciosa e individual, do manuscrito ao impresso, do códex à tela, muitas rupturas e permanências possibilitaram e ainda possibilitam o acesso ao passado, às representações e às práticas de diferentes culturas. Nesse sentido, a materialidade do texto, sua disseminação e apropriações, elementos indissociáveis segundo Chartier, revelam como a modalidade e as circunstâncias alteram o processo de leitura. Para ele, ―a leitura também tem uma história (e uma sociologia) e o significado dos textos depende das capacidades, das convenções e das práticas de leitura próprias das comunidades que constituem, na sincronia ou na diacronia, seus diferentes públicos‖ (CHARTIER, 2010, p. 37).

Segundo, o conceito de leitura envolve dimensões culturais e políticas que não se materializam apenas no universo de apropriação da cultura letrada na/por meio da escola, como aponta Regina Zilberman (2012) em ensaio que trata exatamente desse assunto. De

acordo com a autora, mais do que uma questão conceitual, trata-se de corrigir uma trajetória de alijamento da cultura não letrada, pois a ausência do mundo letrado não impede que o indivíduo leia e interprete o mundo que o cerca, considerando-se que

[...] a leitura não consiste tão-somente em uma prática adquirida, conforme sugerem as definições dos dicionários. Constitui primordialmente um modo de relacionamento com o real, indispensável para a compreensão desse e para o estabelecimento de um modo de agir. O ser humano não exerce sua supremacia diante do mundo de que faz parte se não interpretá-lo, ação que decorre da leitura que faz de seu contorno existencial (p. 64).

Em dado momento, a leitura passou a ser encarada como um traço distintivo entre o homem alfabetizado e o analfabeto à medida que se afastavam da cultura oral. Dessa forma, ela ―cooperou para acentuar a clivagem social, sem, contudo, revelar a natureza de sua ação, pois colocava o ato de ler como um ideal a perseguir. O ainda não leitor apresenta-se na situação primitiva de falta, que lhe cumpre superar, se deseja ascender ao mundo civilizado‖ (ZILBERMAN, 2014).

Entretanto, essa oposição, necessária, mas restrita, não é suficiente para explicar as múltiplas formas de ler e as relações estabelecidas entre o leitor e o objeto lido. Segundo Chartier (2011c), esses contrastes são de naturezas múltiplas: tanto podem estar relacionados às competências de leitura – leitores mais ou menos hábeis – quanto às convenções que definem os usos legítimos do livro, os modos de ler, os instrumentos e procedimentos de interpretação. Dessa maneira, os usos e as apropriações que o leitor faz de cada texto, de cada obra, escapam a classificações muito rígidas e são mais fluidas do que se possa imaginar. Chartier explica que um mesmo objeto impresso concebido e destinado a determinado público, de determinada classe social, por exemplo, pode extrapolar essas divisões socioculturais e circular em classes bastante distintas:

[...] De fato, hoje estão bem atestados tanto o manuseio de textos eruditos por leitores que não o são quanto a circulação, nem exclusiva e talvez nem mesmo majoritariamente popular, dos impressos de grande difusão. Os mesmos textos e livros são objeto de múltiplas decifrações, socialmente contrastantes [...] (CHARTIER, 2011c, p. 79).

Logo, o domínio da leitura não garante ao leitor, mesmo os mais proficientes, uma condição de autonomia ilimitada. E, ainda que a capacidade de ler, pela força de discursos históricos, produza em nós a representação de uma atmosfera de liberdade, o leitor é, constantemente, submetido a um conjunto de constrangimentos e regras, que, em contrapartida, o obrigam a

traçar estratégias para ―subverter as lições impostas‖, conforme apontado por Chatier (1998) em sua obra ―A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII‖. Para ele,

O livro sempre visou instaurar uma ordem; fosse a ordem de sua decifração, a ordem no interior da qual ele deve ser compreendido ou, ainda, a ordem desejada pela autoridade que o encomendou ou permitiu a sua publicação. Todavia, essa ordem de múltiplas fisionomias não obteve a onipotência de anular a liberdade dos leitores. Mesmo limitada pelas competências e convenções, essa liberdade sabe como se desviar e reformular as significações que a reduziram (p. 8).

Os livros didáticos, por sua vez, não escapam às coerções editoriais, à lógica do mercado, às ideologias políticas, às imposições do Estado, enfim, aos constrangimentos que, de alguma maneira, atuam também nas formas de recepção, ou seja, nos ―usos que dele se faz ou que dele se espera‖ (BITTENCOURT, 2008, p. 11). E, assim como adverte Circe Bittencourt, em sua obra ―Livro didático e saber escolar: 1810-1910‖, há que se considerar a ambiguidade e as brechas desse objeto cultural, cujo objetivo, em geral, é ―cimentar a uniformidade de pensamento, divulgar determinadas crenças, inculcar normas, regras de procedimento e valores, o livro pode também criar as diferenças porque a leitura que se faz nele ou dele não é única‖ (BITTENCOURT, 2008, p. 15).

Além desse caráter contraditório do vínculo estabelecido entre o leitor e o texto, Chartier aponta outro elemento fundamental para se pensar essa relação. Ele declara ser impossível analisar as identidades dos leitores, suas diferentes formas de apropriação ou subversão, sem considerar os efeitos forjados pela materialidade do texto. Se manuscritos, impressos ou digitais, se publicados em edições de luxo ou populares, enfim, ―os livros são objetos cujas formas comandam, se não a imposição de um sentido ao texto que carregam, ao menos os usos de que podem ser investidos e as apropriações às quais são suscetíveis‖ (CHARTIER, 1998, p. 8).

Portanto, essa pluralidade e mobilidade das práticas de leitura estão intrinsecamente ligadas ―à obra e ao objeto que é suporte de sua transmissão‖ (CHARTIER, 2002c, p. 106). Assim, as leituras não são desencarnadas da sua materialidade e orientam, como dito anteriormente, os sentidos atribuídos aos textos, pois eles ―não existem fora dos suportes materiais (sejam eles quais forem) de que são os veículos. Contra a abstração dos textos, é preciso lembrar que as

formas que permitem sua leitura, sua audição ou sua visão participam profundamente da construção de seu significado [...]‖ (CHARTIER, 2002c, p. 61-62).

Chartier transpõe, dessa forma, o dualismo texto/leitor, tão caro a algumas correntes teóricas, e insere um terceiro elemento determinante na apropriação dos textos, que realmente não existem sem leitores que os signifiquem, mas que se constituem também na diversidade de