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1. REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS: SOBRE O PENSAMENTO DE

1.1 HISTÓRIA E LITERATURA: ―CRUZANDO DISCIPLINAS‖

Durante muito tempo, a História negou qualquer relação com o universo da narração, do relato e reivindicou para si o status de ciência. Mas, a partir dos anos de 1980, essa posição passa a ser questionada e instaura-se uma ―crise da história‖. Em outras palavras, associar a História à Literatura e, portanto, ao ficcional, para alguns, inviabilizava o seu projeto cientificista. Para Chartier (2010), contudo, tratava-se de uma falsa querela, avaliando-se que ―reconhecer as dimensões retórica ou narrativa da escritura da história não implica, de modo algum, negar-lhe sua condição de conhecimento verdadeiro, construído a partir de provas e de controles‖ (p. 13). A História e a Literatura estão interligadas, mas guardam diferenças fundamentais. Não se trata de tomar uma pela outra ou de assentir com o relativismo.

O organizador da obra ―Roger Chartier – A força das representações: história e ficção‖, de João Cezar de Castro Rocha (2011), por exemplo, inicia sua apresentação destacando a

versatilidade e o caráter transdisciplinar da numerosa obra de Roger Chartier, principalmente, para justificar o bom trânsito do historiador entre estudiosos da Literatura, além, é claro, da sua importante contribuição na discussão sobre os ―papéis históricos do autor, do texto e do ato de leitura‖ (p. 9).

Nesse sentido, Rocha (2011) antecipa, a partir de uma seção denominada ―Cruzando disciplinas‖, uma questão que perpassará todo o livro: a interlocução entre história e literatura. O autor destaca a sensibilidade de Chartier ao analisar a relação complexa entre esses diferentes discursos sem, contudo, desconsiderar as especificidades tanto do discurso literário quanto histórico:

No fundo, a hipótese inicial que orienta o trabalho do historiador, quando, pela primeira vez, encontra-se diante de uma massa de documentos, não possui, ao menos parcialmente, o caráter de uma ficção a ser comprovada ou refutada pelos documentos a serem decodificados a partir da hipótese inicial? Contudo, [...] não se devem apagar as fronteiras entre as narrativas do historiador e do ficcionista, já que a mera busca de documentos que comprovem ou não as hipóteses esclarece a natureza diversa dos discursos (ROCHA, 2011, p. 11).

A História não deve temer, por exemplo, a concorrência do testemunho da memória, pois tanto história quanto memória ―conferem uma presença ao passado‖, mas seus instrumentos, seus estatutos, suas convenções, suas estratégias são específicas, sem serem refratárias:

[....] Não se trata de reivindicar a memória contra a história, à maneira de alguns escritores do século XIX, e sim de mostrar que o testemunho da memória é o fiador da existência de um passado que foi e não é mais. O discurso histórico encontra ali a certificação imediata e evidente da referencialidade de seu objeto. Mesmo que aproximadas dessa maneira, a memória e a história continuam sendo incomensuráveis. A epistemologia da verdade que rege a operação historiográfica e o regime da crença que governa a fidelidade da memória são irredutíveis, e nenhuma prioridade, nem superioridade, pode ser dada a uma à custa da outra (CHARTIER, 2010, p. 23-24).

De acordo com Sandra Jatahy Pesavento (2004), a ideia de que a História comporta estratégias de ficção vem rendendo muitos debates, pois

―a questão de admitir a ficção na escrita da História implica aproximá-la da literatura e, para alguns autores, retirar-lhe o conteúdo de ciência! A História seria, assim, rebaixada de estatuto, abdicando do seu direito de enunciar a

verdade. Trata-se, pois, de uma batalha que se trava dentro dos próprios domínios da História‖ (p. 52).

Entretanto, analisando alguns desses debates, Pesavento (2004) garante ser impossível negar o uso da ficção pela História porque

[...] Nada é simplesmente colhido do passado pelo historiador, como uma História dada. Tudo que se conhece como História é uma construção da experiência do passado, que tem se realizado em todas as épocas. A História inventa o mundo, dentro de um horizonte de aproximação com a realidade, e a distância temporal entre a escritura da história e o objeto da narrativa potencializa essa ficção [...] (p. 53).

E, apesar de compreender que haja diferenças claras entre a História e a ficção e que os regimes de verdade da História ainda não tenham caído por terra, Chartier não vê outro caminho para a História atual que não seja uma dose de relativização de certezas que se julgavam irremediavelmente alicerçadas, a julgar pelo trânsito livre de documentos, além do fim da busca de uma verdade absoluta:

[...] Escrever a história com tais categorias, admitindo uma margem de incerteza irredutível e renunciando à própria noção de prova, parecerá talvez decepcionante e um recuo relativamente ao propósito de verdade que constitui a própria disciplina. Contudo, não existe outra via, a não ser postular – o que poucos se propõem fazer, segundo creio – quer o relativismo absoluto de uma história identificada com a ficção, quer as certezas ilusórias de uma história definida como ciência positiva. (CHARTIER, 2002b, p. 88).

Se de um lado, persiste, no campo da História, a defesa de um saber sobre o passado que, por ser controlado e supor operações técnicas específicas, é um saber mais ―autêntico‖, mais ―verdadeiro‖; ao mesmo tempo, nesse mesmo campo, não se nega o poder, a força das representações literárias do passado, que influenciam as percepções, a memória, as lembranças dos leitores. Como recriações a partir de acontecimentos ou eventos históricos, os textos literários carreiam o passado que nos chega. Isso, contudo, não significa que o texto literário possa ser reduzido a fonte ou documento para pesquisa histórica.

Chartier defende que a literatura e a ficção, além de servirem de base para o sujeito pensar sua relação consigo mesmo, com os outros e com o mundo, também produzem saber – uma perspectiva com a qual pactuamos e que se encontra no cerne de nossa pesquisa. Para ele, o conhecimento histórico é de uma outra ordem, porque repousa sobre técnicas distintas, sobre

operações e critérios de validação diferentes. Entretanto, mesmo não tendo o rigor ortodoxo das ciências, é preciso - e admite o desafio de sua proposta – reconhecer que as diferentes formas de ficção também carreiam o conhecimento, ainda que a serviço de um saber fundado sobre a própria arte, sobre a própria técnica, como evidenciado a seguir:

[...] A história não proporciona um conhecimento do real mais verdadeiro (ao menos) do que o faz um romance, e é totalmente ilusório querer classificar e hierarquizar as obras dos historiadores em função de critérios epistemológicos indicando sua maior ou menor pertinência a dar conta da realidade passada que é seu objeto [...] (CHARTIER, 2002a, p. 97).

Além disso, é importante ressaltar que a literatura passa por tantos constrangimentos quanto os discursos historiográficos; diferentemente do que julgam algumas interpretações superficiais, a literatura não é mais livre, como se o ficcional lhe concedesse esse status, haja vista os sistemas de legitimação e de inserção nos regimes discursivos da arte, com todo um complexo de normas, tensões e disputas.

Dessa feita, os espaços e objetos da história e da ficção, antes muito bem delimitados, por diversos motivos, passam a confundir-se. Em ―A história ou a leitura do tempo‖, num diálogo com Paul Veyne, Hayden White e Michel de Certeau acerca das formas com as quais a história, a literatura e a memória relacionam-se com o passado, Chartier explica que a distinção entre esses campos foi ofuscada, principalmente, por três motivos: primeiro, porque certas obras literárias, como realizado em algumas peças históricas de Shakespeare, moldaram representações coletivas do passado mais ―vivazes e mais efetivas‖ do que alguns escritos de historiadores; segundo, porque a literatura utiliza técnicas e artifícios próprios da disciplina histórica, a fim de criar o ―efeito de realidade‖4 e, em alguns casos, a ilusão de um discurso histórico para, assim, forjar o seu caráter verossímil; e, em terceiro, na tentativa de afirmar ou de justificar identidades, há uma tendência de se deformar, esquecer ou ocultar certas ―operações historiográficas‖, ou seja, certos critérios objetivos de validação interpretativa. Sobre essa última razão, Chartier alerta que

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O conceito de ―efeito de realidade‖ foi desenvolvido por Roland Barthes para explicar, a partir da obra de Flaubert, o tipo de verossimilhança adotada na literatura realista do século XIX – ancorada nos pormenores, nos elementos supérfluos e no ―excesso descritivo‖. Considerada uma das principais modalidades da ―ilusão referencial‖ (CHARTIER, 2010, p. 27), esse recuso narrativo rompe com a lógica da representação à medida em que a literatura apropria-se do princípio ―realista‖ da história e estabelece um novo tipo de verossimilhança, diferente daquela perpetuada desde Aristóteles, em que a própria narrativa se apresenta em função do detalhe, do indício, para, dessa forma, simular uma relação direta com o real.

[...] Numa época em que nossa relação com o passado está ameaçada pela forte tentação de criar histórias imaginadas ou imaginárias, é fundamental e urgente a reflexão sobre as condições que permitem sustentar um discurso histórico como representação e explicação adequadas da realidade que foi [...] (2010, p. 31).

No que parece um caminho sem volta, aceitou-se a diluição de algumas dessas fronteiras e ―os historiadores tentaram pensar os funcionamentos sociais fora de uma partição rigidamente hierarquizada das práticas e das temporalidades (econômicas, sociais, culturais, políticas) e sem que fosse dada primazia a um conjunto particular de determinações (fossem elas técnicas, econômicas ou demográficas) (CHARTIER, 1991, p. 176-177).

O discurso de Chartier defende, portanto, a necessidade de uma relativização dos limites desses campos, sem confundi-los. O conhecimento não deixou de ser o propósito constitutivo da intencionalidade histórica, e ainda ―que escreva em uma forma ‗literária‘, o historiador não faz literatura‖ (CHARTIER, 2002a, p. 98), basicamente, por duas razões: por um lado, sua escrita está fundada em operações inerentes à disciplina: ―construção e tratamento dos dados, produção de hipóteses, crítica e verificação dos resultados, validação da adequação entre o discurso de saber e seu objeto‖ (CHARTIER, 2002a, p. 98); por outro, há o que Chartier chama de dupla dependência: ao passado e aos critérios de cientificidade próprios do ofício.