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1. REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS: SOBRE O PENSAMENTO DE

1.4 REPRESENTAÇÃO, PRÁTICA E APROPRIAÇÃO

Como já referido anteriormente, o conceito de representação é um elemento fundamental nesta pesquisa, pois será a partir delas – as representações dadas a ver pelos textos literários presentes no livro didático de língua portuguesa para o Ensino Médio – que pretendemos entender como são constituídas e, ao mesmo tempo, constituem-se as noções de mulher e de feminino presentes nos livros didáticos de língua portuguesa do Ensino Médio.

Também já esclarecemos que nossa concepção de representação é tributária daquela defendida por Roger Chartier, pois, assim como ele, entendemos que cada grupo constrói representações a partir de suas práticas e realiza certas práticas em função das representações que partilha, de modo que essas práticas só possuam sentido no seio de um complexo de representações, ou seja, ―não há prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e afrontadas, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao seu mundo‖ (CHARTIER, 2002a, p. 66), no entanto, não é possível percebê-las em sua totalidade.

Nessa perspectiva, sempre há a possibilidade de rasura, de rompimento com certas representações, pois não são nem neutras, à medida que revelam os interesses e lugar que ocupam aqueles que as forjam, nem universais, já que ―não são uma expressão imediata, automática, objetiva, do estatuto de um ou do poder do outro. Sua eficácia depende da percepção e do julgamento de seus destinatários, da adesão ou da distância ante mecanismos de apresentação e persuasão postos em ação‖ (CHARTIER, 2002a, p. 177-178).

Se, por um lado, há uma distinção entre a representação e o representado ausente, por outro, a credibilidade é condição sine qua non para que a representação exerça toda a sua

potencialidade de ―fazer crer‖. O que não pressupõe uma aceitação automática do grupo ou mesmo do sujeito. Os contrassensos são sempre possíveis dada a multiplicidade de frestas por onde se esgueiram os atores sociais.

Tomando-se esses apontamentos iniciais, já é possível apresentar uma particularidade basilar do pensamento charteriano: representação, prática e apropriação são indissociáveis. Não podem ser compreendidos isoladamente. O autor explica que o seu trabalho sobre os múltiplos usos dos textos impressos, incluindo-se aí as diferentes formas de ler, possibilitou- lhe reelaborar esses conceitos sob a ótica da história cultural e, ao mesmo tempo, romper com uma abordagem clássica já desgastada que desconsiderava as apropriações históricas, móveis e diferenciadas e que entendia a representação como uma relação de equivalência entre a imagem presente e o objeto ausente. Chartier parte, então, de uma perspectiva de entrelaçamento das noções de representação, prática e apropriação e as sumariza:

[...] o conceito de representação possibilita articular, de acordo com a sociologia de Durkheim e Mauss, as representações coletivas e as formas de exibição da identidade social ou os signos de poder [...]; em seguida, a categoria de prática, que designa a irredutibilidade das maneiras de fazer aos discursos que as prescrevem ou as proscrevem, as descrevem ou as organizam; enfim, o conceito de apropriação, entendida ao mesmo tempo como controle e uso, como vontade de possessão exclusiva pelas autoridades e como invenção pelos consumidores comuns (CHARTIER, 2011a, p.26).

Apesar da notória relevância da abordagem charteriana acerca da representação e sua tentativa de compreender os sentidos conferidos ao mundo manifestados em palavras, discursos, imagens, objetos e práticas (PESAVENTO, 2004), não se pode, entretanto, obliterar a historicidade, os debates, as críticas e as múltiplas dimensões desse conceito que é basilar no campo da história cultural, uma vez que as representações possibilitam associar as relações sociais à maneira como os sujeitos percebem a si e aos outros, mas é um conceito inegavelmente anterior a história cultural, fundado na mímeses de Aristóteles, ainda que essa compreensão de representação siga outro ordenamento.

Na Antiguidade Clássica, diferentemente das múltiplas e complexas concepções assumidas posteriormente, o conceito de representação ainda não comportava certas problematizações porque sua natureza era de outra ordem. Nesse contexto, o mito – narração de um rito que não é mais praticado – surge como uma forma de representação desses ritos; enquanto representação de valores e crenças; é, portanto, o mito, um ―programa de verdade‖ que não

entra em conflito com o real, pois, como definido por Paul Veyne (1984, p. 34), ele é a ―literatura anterior à literatura, nem verdadeira, nem fictícia, pois exterior ao mundo empírico, embora mais nobre que ele‖. Dessa forma, não há uma ―perversão da relação de representação‖, posto que o mito é anterior à historicidade, à autoridade dos especialistas, à fonte, à poética e, principalmente, à retórica. Portanto, a preocupação com o real, com a verdade, só surgiu no momento em que ―o campo do saber teve sua configuração transformada pela formação de novos poderes de afirmação (a pesquisa histórica, a física especulativa) que concorreriam com o mito e, diferentemente dele, colocavam expressamente a alternativa do verdadeiro e do falso‖ (VEYNE, 1984, p. 35).

Partindo-se desse cenário, conclui-se que pensar a representação no campo histórico, na qualidade de ―forma de entendimento segundo a qual os homens elaboravam formas cifradas de representar o mundo, produzindo palavras e imagens que diziam e mostravam mais além do que aquilo que era expresso e mostrados nos registros materiais‖ (PESAVENTO, 2004, p. 24), pressupõe duas matérias essenciais: a preocupação da história com a ―verdade‖ e, consequentemente, sua relação com a fonte. Serão as múltiplas interpretações e concepções desses princípios que compõem o fazer histórico que darão origem a uma série de debates de cunho epistemológico e metodológico acerca do conceito de representação, chegando alguns a sugerir até seu abandono. O próprio Chartier apresenta os argumentos daqueles que questionam a adoção desse conceito: ―a história das representações foi criticada como uma história idealista que supostamente ignora os comportamentos, as ações e ‗as situações nas quais se produzem e se manifestam os fenômenos sociais‖ (2011c, p. 16) e reconhece a complexidade de se defender uma noção estigmatizada como relativista e idealista.

Importante assinalar, entretanto, que não será a História a única a problematizar os fundamentos da representação, ainda que esse conceito quase tenha, por si só, designado a própria história cultural (CHARTIER, 2011d). Diferentemente, sua origem está vinculada à Sociologia, a partir da ideia de representação coletiva de Émile Durkheim e Marcel Mauss7 e ganha diferentes teorias em muitos outros campos como a Psicologia Social, a Antropologia, a Linguística, a Arte, o Direito, entre outros. Como se não bastasse esse caráter multidisciplinar, esse mesmo conceito é constantemente redefinido no interior de cada

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Sandra Jatahy Pesavento (2004) enfatiza o caráter pioneiro das pesquisas de Durkheim e Mauss sobre as representações dos povos primitivos contemporâneos. Em suas palavras, a introdução desse conceito-chave foi fundamental ―pela atenção que dava ao processo de construção mental da realidade, produtor de coesão social e de legitimidade a uma ordem instituída, por meio de ideias, imagens e práticas dotadas de significados que os homens elaboravam para si‖ (p. 24).

disciplina, o que dificulta qualquer tentativa de escrita de uma história do conceito de representação.

No campo da história cultural, Roger Chartier inicia sua defesa para o uso historiográfico da noção de representação recorrendo a antigas definições dicionarizadas dessa palavra: por exemplo, o dicionário de língua francesa publicado por Furetière, em 1690, no qual a representação permitiria ver o ―objeto ausente‖ que fora substituído por uma ―imagem‖ capaz de representá-lo adequadamente. Relacionada aos campos político e jurídico, isso significaria ocupar o lugar de alguém e exercer sua autoridade. Chartier destaca o vínculo dessa segunda definição com a ―efígie colocada no lugar do corpo do rei morto em seu leito funerário‖ (2011c, 16). O povo não tem acesso ao seu corpo físico ausente, mas o seu corpo político é perpetuado e torna-se visível na imagem de cera e madeira que o representa: ―Assim, a distinção é radical entre o representado ausente e o objeto que faz ele presente nos permite conhecê-lo. Postula-se, então, uma relação decifrável entre o signo visível e o que ele representa‖ (CHARTIER, 2011c, p. 16).

Como referido anteriormente, a concepção de representação adotada por Chartier decorre dos diálogos estabelecidos com pensadores que, assim como ele, negaram o positivismo, o estruturalismo e a concepção de sujeito universal ao refletirem sobre ―as relações que mantêm as produções discursivas e as práticas sociais‖ (CHARTIER, 2002a, p. 119). Nessa lista, os argumentos de Louis Marin sobre o poder da imagem ocupam lugar privilegiado. Em seu livro ―À beira da falésia‖, Chatier explica o interesse de Marin em resgatar e deslocar definições antigas como as que descrevemos no parágrafo anterior. Nesse sentido, inspirado na definição de Furetière, Marin destaca os mecanismos para tornar presente o ausente que pressupõem tanto a dimensão transitiva, à medida em que ―toda representação representa algo‖, quanto reflexiva porque ―toda representação se apresenta representando algo‖. Em outras palavras, toda representação envolve, ao mesmo tempo, transparência e opacidade asseguradas e identificáveis em dispositivos próprios à representação: ―nos quadros, a moldura, o enfeite, a decoração; para os textos, o conjunto dos dispositivos discursivos e materiais que constituem o aparato formal da enunciação‖ (CHARTIER, 2011d, p. 18).

Ao deslocar o olhar para as distinções possíveis entre a representação e o representado, entre o signo e o significado, o trabalho de Marin possibilita pensar, por um lado, nas frestas e, consequentemente, nas múltiplas formas de apropriações e, por outro, nas relações que os sujeitos ou os grupos mantêm com o mundo social. A partir dessa perspectiva e travando um

diálogo com o conceito de representação coletiva de Durkheim e Mauss, Chartier (2011c) afirma que a noção de representação mudou sobremaneira a compreensão do mundo social, fundamentalmente, graças a três razões:

[...] em primeiro lugar, as operações de classificação e hierarquização que produzem as configurações múltiplas mediante as quais se percebe e representa a realidade; em seguida, as práticas e os signos que visam a fazer reconhecer uma identidade social, a exibir uma maneira própria de ser no mundo, a significar simbolicamente um status, uma categoria social, um poder; por último, as formas institucionalizadas pelas quais uns ‗representantes‘ (indivíduos singulares ou instâncias coletivas) encarnam de maneira visível, ‗presentificam‘ a coerência de uma comunidade, a força de uma identidade ou a permanência de um poder [...] (p. 20).

Isso permite explicar, portanto, como as lutas simbólicas são potencializadas pelas representações em oposição à força bruta. Significa que a representação oferece dispositivos mais eficientes ao processo de dominação, considerando-se que a ―força aparece apenas para aniquilar a outra força em uma luta de morte‖, já os signos da força, portanto, suas diferentes formas de representação (armas, narrativas, imagens, etc.), persuadem, convencem sem que o outro precise ser destruído. Esse processo de ―pacificação‖ do espaço social, de acordo com Chatier, foi responsável pela transformação ―entre a Idade Média e o século XVII, dos confrontos sociais abertos e brutais em lutas de representações cujo objetivo é o ordenamento do mundo social, logo, a ordenação reconhecida a cada estado, a cada corpo, a cada indivíduo‖ (CHARTIER, 2002a, p. 172).

Entretanto, a simples substituição da força pelos dispositivos de representação não pressupõe a fidelidade e a submissão porque há uma tensão entre as ―modalidades do fazer-crer‖ e as ―formas de crença‖ que, conforme analisado por Marin, ajudam a pensar porque uma tal intenção é eficaz ou fracassa. Para além da descrição do vínculo entre as formas de utilização de certos dispositivos persuasivos e as condições necessárias para recebê-los, importa perceber que a injunção de uma determinada representação não pressupõe seu acolhimento irrestrito. Ao contrário,

[...] o conceito de representação leva a pensar o mundo social ou o exercício do poder de acordo com o modelo relacional. As modalidades de apresentação de si são, certamente, comandadas pelas propriedades sociais do grupo ou pelos recursos próprios de um poder. No entanto, elas não são uma expressão imediata, automática, objetiva, do estatuto de um ou do poder do outro. Sua eficácia depende da percepção e do julgamento de seus

destinatários, da adesão ou da distância ante mecanismos de apresentação e de persuasão postos em ação (CHARTIER, 2002a, p. 177-178).

E, ainda que Marin não tenha se dedicado à história da leitura, Chartier assinala que sua concepção de representação já apontava para a autonomia do leitor para negar, alterar ou burlar as imposições dos discursos e das imagens, pois ―assujeitá-lo ao sentido não é fácil, e a sutileza das armadilhas que lhe são armadas é proporcional à sua capacidade, sábia ou desajeitada, de usar de sua liberdade‖ (CHARTIER, 2002a, p. 174).

Admitir a distância entre a representação e o representado, a força das representações nas lutas simbólicas, os dispositivos de persuasão e as possibilidades de subversão, enfim, todas as implicações dos conceitos de representação, das práticas sociais e das formas de apropriação, tal como descrito até aqui, não significa, na perspectiva charteriana, entretanto, nem a negação do real – o que Chartier chama de ―reviravolta linguística‖, que não admite que haja realidade fora dos discursos e que tudo se resume a jogos de linguagem –, nem a invalidação das fontes. Dito de outra maneira, o conceito de representação, tal como reelaborado por Chartier, recusa o viés relativista, apenas entende que ―qualquer fonte documental que for mobilizada para qualquer tipo de história nunca terá uma relação imediata e transparente com as práticas que designa. Sempre a representação das práticas tem razões, códigos, finalidades e destinatários particulares‖ (CHARTIER, 2002c, p. 16), e isso não significa refutar a existência dessas práticas, apenas que suas formas de representações – que são também realidades – não são neutras.

Dessa feita, é importante evidenciar que essas formas de representações estão subordinadas tanto a dispositivos de coerção ou de persuasão, quanto ao próprio estatuto do texto, a regras específicas de funcionamento, a ―categorias, esquemas de percepção e de apreciação‖ (CHARTIER, 2002b, p. 63), seja ele literário ou documental. O que Chartier (2002b) rejeita, portanto, são interpretações que tratam os textos como ―reflexos realistas de uma realidade histórica‖ desconsiderando os seus processos e suas condições de construção. Sua perspectiva segue um outro curso:

São essas categorias de pensamento e esses princípios de escrita que é necessário atualizar antes de qualquer leitura ‗positivista‘ do documento. O real assume assim um novo sentido: aquilo que é real, efetivamente, não é (ou não é apenas) a realidade visada pelo texto, mas a própria maneira como ele a cria, na historicidade da sua produção e na intencionalidade da sua escrita (CHARTIER, 2002b, p. 63).

Além de defender que os discursos são agenciados por recursos, lugares e regras limitados histórico e socialmente, outro aspecto importante envolvido no conceito de representação de Chartier é a materialidade do texto, como mencionado anteriormente, quando tratamos das múltiplas relações estabelecidas entre o leitor e as formas do impresso. Isso equivale a dizer que ―as formas produzem sentido‖ e estão, portanto, implicadas no sistema de representação. Os sentidos de um texto são produzidos, entre outros aspectos, pelo suporte que o materializa, pelos dispositivos tipográficos, pelas escolhas editoriais, pois ―cada forma, cada suporte, cada estrutura da transmissão e da recepção do escrito afeta profundamente seus possíveis usos e interpretações‖ (CHARTIER, 2011e, p. 44-45).

Logo, os leitores não têm acesso a textos abstratos. Esse contato se dá sempre por meio de alguma forma de materialidade e seus dispositivos responsáveis por orientar a leitura:

[....] Contra a representação, elaborada pela própria literatura, segundo a qual o texto existe em si mesmo, independente de qualquer materialidade, deve-se lembrar que não há texto fora do suporte que o dá a ler (ou ouvir) e que não há compreensão de um escrito, seja qual for, que não dependa das formas nas quais ele chega ao seu leitor. Por isso, a distinção indispensável entre dois conjuntos de dispositivos: aqueles que dizem respeito às estratégias de escritura e às intenções do autor, aqueles que resultam de uma decisão de editor ou de uma imposição de oficina (CHARTIER, 2002a, p. 181).

A premissa do suporte, porém, não implica em eliminação dos contrastes entre as diferentes formas de ler. Ou seja, os usos e apropriações possíveis de um texto e suas representações são susceptíveis a convenções constituídas socialmente de modos desiguais que não prescindem do suporte, mas vão além dele.

Esses contrastes são de diferentes naturezas e não estão restritos à distância entre letrados e os ―leitores menos hábeis‖. Concorrem também as práticas e normas de leitura de prestígio e as expectativas de diferentes grupos de leitores. Daí a relevância do conceito de apropriação para os postulados de Chartier, pois entende que as formas de apropriação resultam da comunhão de múltiplos elementos que vão além das condições intelectuais, entre os quais encontram-se as comunidades interpretativas – um conceito elaborado por Stanley Fish e que se insere na perspectiva que deslocou a atenção do texto, para o leitor. Fish enuncia que a leitura não se restringe à descoberta do significado do texto, mas configura-se um processo de sentir aquilo que ele nos faz. Essa subjetividade, entretanto, é influenciada pela comunidade ou grupo ao qual pertence. Nesse sentido, os leitores empregam certas estratégias de

interpretação comuns a sua comunidade: ―a comunicação ocorre somente dentro de um tal sistema (ou contexto, ou situação, ou comunidade interpretativa) e que a compreensão conseguida por duas ou mais pessoas é específica a esse sistema e determinada unicamente dentro dos seus limites‖ (FISH, 1992, p. 192).

Ancorado, portanto, nessa noção de comunidades interpretativas, Chartier (2002a) ressalta que ―a leitura não é somente uma operação abstrata de intelecção: ela é o uso do corpo, é inscrição em um espaço, relação consigo ou com o outro‖ (p. 70) e que a apropriação, tal qual a compreende, não está vinculada à vontade dos discursos e das normas. De outra forma,

[...] visa uma história social dos usos e das interpretações relacionados às suas determinações fundamentais e inscritos nas práticas específicas que o produzem. Dar assim atenção às condições e aos processos que, muito concretamente, sustentam as operações de construção do sentido (na relação de leitura, mas também em muitas outras) é reconhecer, contra a antiga história intelectual, que nem as inteligências nem as ideias são desencarnadas e, contra os pensamentos do universal, que as categorias dadas como invariantes, sejam elas filosóficas ou fenomenológicas, devem ser construídas na descontinuidade das trajetórias históricas (CHARTIER, 2002a, p. 68).

Enfim, Chartier entende a complexidade de se lidar com ―uma temporalidade escoada, com o não-visto e o não-vivido‖ (PESAVENTO, 2004, p. 42) e reconhece que resgatar expressões do passado é, antes de mais nada, também criar suas próprias representações, pois a História é ―também uma narrativa de representação do passado, que formula versões – compreensíveis, plausíveis, verossímeis – sobre experiências que se passam por fora do vivido‖ (PESAVENTO, 2004, p. 42-43). Porém, tão complexo quanto representar o já representado ou decifrar para em seguida cifrar códigos de um outro tempo, é também fazê-lo em seu próprio tempo. Pois se os filtros do passado obstruem o acesso às formas como os atores sociais se viam ou viam o mundo, não teremos passe livre simplesmente porque lidamos com representações que nos são contemporâneas. A proximidade com objetos, representações e práticas sociais do presente pode ser tão ou mais constrangedora, ilusória, enganadora, coercitiva porque não nos torna mais independentes, imunes ou neutros aos seus mecanismos de legitimidade e credibilidade.

Por fim, é capital reiterar que a escolha dos pressupostos teóricos, focalizados até aqui, foi orientada, sobretudo, pela natureza do nosso estudo: lidamos com elementos historicamente dissociados, ignorados ou, deliberadamente, rejeitados no processo interpretativo – as

representações culturais presentes nos textos literários; o livro didático e, sobretudo, a possibilidade de subversão do sentido imposto ao leitor por essas mesmas representações ou pela materialidade do suporte.

Quando Roger Chartier discute os critérios de validação do texto literário enquanto possibilidade de acesso ao conhecimento histórico; quando trata da (des)valorização de certos objetos culturais; quando destaca a força desses objetos na perpetuação de estereótipos; quando questiona binarismos interpretativos já consagrados; mas, acima de tudo, quando considera a possibilidade que o sujeito tem de subverter, inverter e reverter essas representações; certamente, ele não pensava na questão da mulher/feminino presentes, ou não, no livro didático. Entretanto, esses pressupostos são as lentes necessárias para equiparmos nosso olhar e enxergarmos as condições sociais, históricas e materiais da negociação estabelecida, diariamente, entre o livro didático e os seus usuários – professores e alunos de escolas públicas brasileiras.